sexta-feira, 16 de novembro de 2012

Braços, pernas, penas e cartas.

Esse é o quarto mês que vou usar a grana que ganho jogando cartas pra pagar o aluguel. Eu não posso reclamar de pagar o aluguel com "dinheiro de bar", mas não me sinto confortável, parece que estou roubando de alguém, ou tirando comida da boca de uma família inteira. Talvez eu esteja, mas, antes a boca deles que a minha. E os caras que sustentam família não deveriam andar no tipo de boteco que eu vou. Se estão lá, sabem da encrenca que vão encontrar - eu, e os caras piores -, então, tiro esse peso de cima de mim. Eles merecem perder a grana, e eu jogo suficientemente bem pra poder ganhar deles.

Eu nem sempre vivi assim, eu trabalhava antes, era um "bom sujeito", não ganhava bem, e tinha um desses empregos dos quais nunca ninguém sonha em ter, mas ainda assim, eu tinha um emprego, uma vida, uma rotina, e essas coisas de gente normal... eu odiava. Trabalhava numa grande gráfica, eu era o operador da impressora maior daquele lugar, meu trabalho se resumia em apertar oito botões, puxar uma alavanca e retirar os banners, panfletos e qualquer coisa que saísse daquela coisa, e ai levar para um outro cara empacotar e jogar num caminhão... Como eu disse, um "empreguinho" que não tem nenhum tipo de emoção, mas ainda assim, eu fiquei nele por um bom tempo - cinco anos, mais ou menos -, e mesmo assim, nunca consegui gostar de nada que fazia durante o dia.

Aquela rotina me fez um cara deprimido e irritado. Conhecer a miséria humana me deixou assim. Todo dia, para ir trabalhar eu andava de trem, o pior lugar do mundo é um trem lotado às seis da manhã. Eu sempre ri da comparação que ouvi um dia, de que um trem era igual aos caminhões que transportam frangos... Nunca achei engraçado, pois é a mais pura verdade. Se você já viu um caminhão de frangos, vai entender tudo que eu estou falando. Num trem, os olhares são iguais aos olhares dos frangos quando estão nos caminhões... vazios, cinzas, sem rumo ou esperança, brilho, ou qualquer coisa que não seja só a resignação, e a coisa mais triste é ver esse mar de olhos perdidos logo ao acordar. E logo que o trem lota, a semelhança aumenta ainda mais, todos espremidos e reclamando, até que o trem vira um mar de braços, pernas - talvez penas - e olhos vazios. Todos indo para os seus empreguinhos medianos, todos se odiando por nada, mas ainda assim, nenhum deles faz nada além de aceitar o próprio "destino". E eu fazia parte desses frangos... Mas não faço mais!

Chegou o dia que eu cansei, cheguei naquele gordo que eu chamava de chefe, e simplesmente derrubei-o com um soco na cara, arranquei-lhe três dentes. Fui processado, e perdi, claro... aquele cara tinha mais advogados que jogador de futebol. Levou meu carro, e ainda me fez pagar pelos dentes que tirei, e ele fez questão de ir nos dentistas mais caros que conseguiu achar... Mas eu não ligo, toda vez que o via eu comentava sobre como o sorriso dele estava lindo, e fazia questão de salientar a palavra "sorriso". Ele ficava uma fera, mas sabia que nenhum dinheiro no mundo iria mudar o fato de que eu tinha lhe arrancado os dentes, e colocado de volta!

Obviamente fui despedido, e então comecei a andar pelos botecos, no começo foi só pra passar o tempo, nada demais, beber, conhecer algumas das problemáticas de bar - quase sempre bonitas e problemáticas - e talvez arranjar alguma boa briga com algum sujeito que tivesse dignidade de me dar um soco com força. E foi numa dessas noites que descobri que levava jeito para jogar cartas. Numa roda de jogo numa mesa engordurada e meio torta, e com gente que fede a cachaça e suor, no canto mais afastado e cheio de fumaça daquele bar  perto do mercado. Me chamaram pra jogar, e eu logo estava descolando uma grana com eles... no começo era só pra pagar a bebida, mas logo eu estava lucrando mais até que quando trabalhava, ainda que não fosse tão honesto, dinheiro é dinheiro,  e eu estava precisando dele.

Talvez o mais interessante de frequentar os mesmos bares, seja ver as mesmas pessoas, porém, diferente dos trens, nos bares você sempre vê as pessoas que possuem aquele brilho no olhar, aquelas que não devem sair durante o dia. O tipo de pessoa que não anda de trem é o tipo de pessoa que frequenta os bares mais sujos que você pode encontrar, e é o tipo de pessoa mais incrível também...Encontrei desde executivos de grandes empresas - algumas eram clientes daquele gordo - até mesmo algumas figuras que eram da televisão, mas que depois de velhos, foram jogados fora como lixo, assim como qualquer coisa que seja usada pelas pessoas...

Uma dessas pessoas era Suzane. A primeira vez que vi Suzane foi numa mesa de jogo, em uma noite na qual eu não estava lucrando bem. Ela se sentou, colocou a garrafa de cerveja na mesa, jogou vinte paus no centro da mesa, e tomou o baralho da minha mão. Embaralhou e distribuiu com destreza todas aquelas cartas. Na hora eu soube que havia nela algo especial, e eu teria de conhece-la. Lembro-me que ela era uma ótima jogadora, deu-me a melhor partida da minha vida... e por sorte - muito pouca sorte - ganhei dela. Fiz questão de gastar todo o dinheiro que tinha ganho naquela mesa com ela. Era o tipo de mulher que é difícil de dizer oi, e pior ainda de manter um assunto por mais de três minutos, tinha respostas curtas, grossas, e conseguia sempre me fazer parecer um bobo. Ironizava cada frase minha, mas nunca recusava outra cerveja, ou outra dose de uísque... bebida vai, bebida vem, e eu consegui conversar com ela.

Não era má pessoa, nem problemática - em parte -, tinha deixado um ex-namorado que era viciado em cocaína, e ia ser despejada no semana seguinte, tinha dívidas até o pescoço, e estava andando pelos bares pelo mesmo motivo que o meu, precisava de grana, e tinha ficado muito preocupada após ter perdido para mim... Isso significava que não teria dinheiro para começar as apostas na noite seguinte. Era mais uma perdida, que nem eu, talvez eu tenha visto isso no olhar dela, talvez eu tenha sentido que nela havia algo que eu não tinha encontrado em nenhuma outra pessoa antes...Ela possuía o brilho no olhar, sim, eu sabia!

Passamos a noite conversando, rimos bastante, ela abriu o jogo, contou-me toda sua vida - meu deus, não sabia que alguém com vinte e cinco anos pudesse ter tanta historia -, não sei se era tudo verdade, mas na hora eu estava encantado demais para pensar nisso. Ela fez questão de me ouvir também, não que eu tivesse muita coisa pra contar, e não sou muito bom com as palavras, mas ela gostou da parte de ter trocado meu carro por três dentes de um chefe presunçoso - ela colocou desse jeito, e eu gostei. Contei-lhe que nunca tinha tido muitas aventuras durante a minha vida (na parte amorosa, financeira, e em todas que eu consegui pensar), e que eu estava vivendo com dinheiro da jogatina, e que não era tão ruim, apesar do remorso que às vezes me deixava com pena daqueles pobres homens.

Logo estava quase amanhecendo, o bar tinha fechado, e nós estávamos sentados na calçada, tomando as ultimas garrafas de cerveja, e basicamente, estávamos naquela fase de "amigos de longa data em uma noite", quando o papo se resume nos "detalhes finais" e na despedida... combinamos de sair mais vezes, e jogarmos juntos, para assim ganharmos mais, e talvez, se nos déssemos bem, ela poderia vira morar comigo. Na hora, me pareceu perfeito, e pela cara dela, também, pois ela tinha perdido pra mim por detalhe, jogava tão bem quanto eu, talvez melhor, nós seríamos uma ótima equipe de dois...

Nós nos despedimos, e quando estávamos quase indo embora, nos beijamos. Foi um beijo natural, espontâneo, sem pressa, mas ainda assim, incrível. O beijo dela tinha gosto de cerveja e de paixão. Tinha emoção e vontade nele. Eu certamente nunca tinha beijado outra mulher assim... eu juro que senti meu mundo todo rodar. Eu nunca pensei que fosse dizer isso, mas, meu mundo parou naquela hora, não sei se ficamos nos beijando por cinco segundos, ou duas horas, mas eu sei que não queria deixar ela ir, eu queria beijá-la pelo resto da eternidade. Mas, assim, meio de repente, o beijo acabou, ambos sentimos a vontade de parar, nos olhamos, e sem mais uma palavra, cada um foi pro seu canto.

Fiquei mais ou menos uma semana sem vê-la, eu tinha pensado nela todos os dias desde aquele dia, eu pensava nela incessantemente - ou pelo menos parecia isso -, será que aquele maldito beijo estragou toda a conversa? Será que tudo que tínhamos combinado foi jogado no ralo com aquele único beijo? Eu tentava me convencer que não, mas a ausência dela me dizia o contrário... Até que, meio do nada, ela aparece em um desses bares pelos quais eu andava lucrando mais, e começou a falar comigo como se já fossemos amigos de longa data, eu estranhei isso, mas de qualquer jeito, eu só tinha visto Suzane uma vez, e ainda que tivéssemos passado a noite inteira conversando, e que nossas vidas fossem agora um livro aberto, tinha sido apenas uma noite....

Suzane me puxou de canto, e começou a tagarelar - literalmente, abrindo a matraca - sobre como poderíamos lucrar mais, e em qual mesa, e com quais métodos, eu estava meio pasmo com a situação, mas "entrei no jogo" e comecei a negociar qual seria a melhor forma de lucrar como uma dupla. Logo decidimos que iríamos entrar no bar como desconhecidos, e iríamos, nos desafiar, e fazer subir as apostas, e a medida que mais pessoas fossem aparecendo, um de nós iria perder de forma humilhante - no caso quem perderia seria eu, pois ela dizia que um homem que perde fica sem honra, e uma mulher que perde ganha bebida de graça a noite toda, só ela riu da piadinha -, e que após perder, eu no caso, iria tentar recuperar meu dinheiro com apostas menores, e como eu teria perdido para uma mulher, eles iriam achar que eu não jogava nada, e logo iriam apostar comigo, e a partir daí, eu começaria a ganhar deles, até que eles apostassem tudo em nome da "honra de bar" deles - foi esse o termo que ela usou - enquanto isso, ela iria tentar a sorte com apostas menores por aí.

No começo da noite isso não funcionou tão bem, lucramos muito pouco no primeiro bar, só o suficiente para pagar as bebidas e começar as apostas no próximo bar. Era só questão de tempo, logo estávamos agindo como um time, e começamos a lucrar pesado a partir do segundo bar, e cada vez aparecia mais gente querendo ganhar daquela "mulherzinha que acha que joga", pobres homens, perderam tanto pra ela, que muitos foram pra casa após perderem todo o dinheiro que tinham na carteira. E os que não iam embora, tentavam recuperar jogando comigo, nada esperto da parte deles, eu tirava deles qualquer coisa que tinham, cheguei a ganhar um relógio de um cara meio louco. Muitas famílias ficaram com fome naquela noite, e eu não me sinto mal por isso. Fomos ao todo em cinco bares naquela noite, lucramos em torno de setecentos e vinte paus...isso era mais que meu aluguel! Antes da noite acabar, compramos dois fardos de meia dúzia de cervejas, e sentamos numa praça bem quieta para beber e conversar um pouco, tínhamos trabalhado demais naquela noite...

Jogamos papo fora por mais de uma hora, mas estava muito tarde - ou cedo, depende do ponto de vista - e eu estava caindo de sono, nos despedimos, sem beijo dessa vez, apenas combinamos de qualquer dia dessas jogarmos mais por ai, em outros bares, ela queria ir nos bares das áreas mais chiques da cidade, dizia que lá iríamos lucrar duzentos - ou mais - por mesa. Eu. claro, concordei, não era bom em discordar dela, tudo que ela falava parecia legal, e certo demais pra ser contrariado. Talvez fosse. Quando ela virou as costas e saiu andando, eu tive de ficar olhando até não conseguir vê-la mais, devo ter ficado mais de cinco minutos em pé, só olhando ela se afastar. E ela não olhou uma única vez para trás. Fui para casa, com o bolso cheio de dinheiro, e o coração cheio de esperança. Deitei, e dormi, deve ter sido a noite mais bem dormida da minha vida, pois quando acordei, eu era um homem novo.

Decidi não jogar naquela noite, tinha dinheiro suficiente, e não estava com muita vontade de sair de casa. Fui no mercado comprar comida e umas cervejas, eu já não cozinhava tinha duas semanas, e estava na hora de usar aquele fogão, e as panelas. Fiz um almoço decente pra mim, e queria Suzane lá, ela iria gostar da minha comida. Fui assistir televisão, e lembrei-me dos comentários que ela fazia sobre como a televisão era coisa de gente burra. Eu gosto de televisão. Passei o dia na cama, e dormi depois de tomar minha ultima cerveja.

Bom, gente honesta precisa trabalhar, e eu precisava voltar a jogar. Não era uma única noite que iria me fazer perder uma semana de jogo. E apesar de não ter muita vontade de jogar,  eu fui perambular pelos bares costumeiros. Joguei com as pessoas de sempre, que perdiam as quantias de sempre, mas que nunca aprendiam, ainda bem, era esse o tipo de gente que pagava meu aluguel. E eu suspeito que eles jogavam comigo mais pelo papo que eu proporcionava, do que qualquer outra coisa. Tem muita gente por aí que, igual a mim, não tem família, mas tem dinheiro, e não ligavam de perder dez ou vinte paus se fosse pra ter quinze minutos de companhia. Eu não tinha emprego, não tinha dinheiro, e não estava precisando de companhia. Bom pra mim, assim não tinha nenhum peso na consciência ao ganhar deles. E passou-se mais uma noite, mais duas, três noites. Logo completou mais uma semana que eu não via Suzane. Mesmo assim, eu continuava jogando, e lucrando o mesmo de sempre. Parece que eu tinha um novo emprego, só que esse deixava-me beber, e conhecer gente nova. Era muito interessante, eu até comecei a gostar dessa rotina, ainda que visse muita gente nos mesmos lugares todos os dias, essas pessoas eram mais dignas de estarem lá. Mas sem Suzane não era a mesma coisa, eu tinha visto ela duas vezes na minha vida, e parecia que ela tinha tomado as rédeas da minha vida.

Fato é que hoje faz um mês que não vejo mais aqueles olhos faiscantes, um mês sem conversas sobre minha vida, ou a dela. Eu já estou aprendendo a saber que nunca mais irei vê-la. E sabe, não é de todo mal, a unica vez que ganhei dela, fiquei sem minha grana. Eu ainda acho que ela seja um pássaro, desses mais bonitos, que saibam voar, e ela voou, viu que não tinha nada pra fazer aqui do meu lado.  E talvez eu seja um frango, não dentro de um trem, mas agora seja um cara com o olhar perdido que trabalha em um bar, ganhando dinheiro de gente honesta. Agora talvez eu entenda o motivo de tanta gente não ter esperanças. O motivo que faz as pessoas trabalharem em empregos que odeiam, viver vidas que as fazem sentir nojo. Eu agora entendo isso... Todos somos pássaros e sabemos voar, mas sempre tem uma pessoa que aparece, e nos rouba a vontade de voar. E por isso nós nos tornamos frangos, sem vontade de voar, nem de lutar, apenas deixando que cada dia passe, sem sabor, nem cor, e sem o aroma dos cabelos de Suzane.