sexta-feira, 5 de julho de 2013

Mais um desses perdidos...


                                                              “Há um pássaro azul no meu coração,
                                                              que quer sair.
                                                              Mas eu sou demasiado duro para ele.
                                                              E digo, fica escondido, queres arruinar-me?”
                                                                                                             (Charles Bukowski)

Tem dias que não são feitos pra dar certo. Mas, os dias que dão certo são desconfortáveis demais, não consigo ser dono de um e continuar de consciência limpa. Mas é assim que tudo flui acorde mais um dia, tome um banho gelado, uns goles de café com vodka, e siga a vida.
_Não te preocupa, amigo, é normal que seja assim.
      Chegar ao inferno é assim, mas não é normal. Só não me confesso pra evitar de acabar lá, porque de certa forma, se eu me confessar alguém me manda pra lá mais cedo.
      Devia ter um carro, Mercedes Benz, isso sim é classe. Mas por, algum motivo qualquer, ainda não tenho. Nem minha bicicleta anda bem das pernas – ou rodas – foi uma vítima quase fatal dos dias que não dão certo. Mas logo seria consertada. Questão de sorte, ou então, questão de algum dia de consciência suja.
      Devia parar de me empolgar com as coisas. No geral elas dão errado, de uma forma ou de outra. Mesmo quando dá certo, tá errado. E aqueles caras que lêem livros, eles dizem saber disso. Não... não. Se eles soubessem mesmo, já teriam feito dos livros uma fogueira, e teriam dançado ao redor dela. Estuprar o cadáver já não é mais crime quando se tem uma cara permanentemente carrancuda.
      Aquele egípcio que inventou o relógio, ele sim, devia tratar de desinventar aquilo ali. Eu o odeio cada vez que toca o alarme. Cinco e meia da manhã. Meu anjo despertador é alguém falando sobre o trânsito. Rádio relógio não é caro. Esse aí... foi de graça. São Paulo tem um charme, mas ele só era visto da Avenida Paulista. Daqui da Baixada do Glicério ninguém vê. E mesmo às cinco e meia da manhã, quando a cidade está ainda dormindo, é possível ver a sujeira se mexendo nas ruas lá embaixo. Como se faz pros dias darem certo? Minha vida é um conjunto de dias que deram errado.  
      Morando no pior lugar que meu dinheiro pode pagar, e vivendo do pior jeito que consigo. É um esforço fracassar em tudo que se tenta, eu mesmo, fracassei até nisso. E mesmo assim, minha roupa de dormir continua sem rasgos evidentes, e por coincidência, vai ser minha roupa de trabalhar também. A outra muda de roupa tinha ficado pra da janela, secando. Mas minha roupa não sabe secar com chuva. Os pequenos detalhes que fazem o dia dar errado.
      Um passo a menos. Acordado e vestido. Dois detalhes a menos, talvez hoje o dia não dê tão errado. Pão, café de ontem, é isso aí.
_Temos ainda dois dedos da garrafa, é o suficiente pro café da manhã.
      Não é todo dia esse luxo. Quarto e banheiro. Eu teria o prazer em fazer faxina, se tivesse alguma coisa pra faxinar. É o lado bom, e o lado ruim de não se ter nada em casa. Donas de casa não parecem ser tomadas pelo tédio enquanto limpam o teto com aspirador de pó Max 3000 super-plus. Eu lavaria meu colchonete se isso não fosse jogar sabão fora. E, se tivesse uma mesa, ela estaria limpa. Mas o frigobar, dele sim eu me orgulho. Vazio e limpo, e está assim desde que um motel o abandonou. Logo compro também uma vassoura, sim, quem sabe um rodo. Até mesmo uma lata de cera. Encerar o chão, deixá-lo brilhando. Olhar para o teto e não ver nenhuma teia com aranhas nojentas que moram e comem melhor que eu, e isso ainda na minha casa.
      Barriga cheia.
_Sim, quase isso.
      Falar sozinho é um hobby saudável, melhor que a época em que costumava dançar com a música da rua. O eco fica mais divertido quando eu conto alguma piada. Às vezes até moldo meu cobertor na forma de um boneco. Assim não me sinto totalmente louco. Eu nunca me apeguei aos detalhes. E o cobertor parece mais humano que eu.
     Meu tênis tem uns buracos. No pé direito. Alguns eu consegui que remendassem, outros quase conversam comigo. Me orgulho desse par. Ganhei num sorteio. Mas abrir buraco é jogar sujo demais. Alguma coisa deu errado. Chuva, um cachorro molhado. É que, quando chove parece que essa parte de cá da cidade se dissolve em lixo e merda. Tudo vira um grude só. Tem aspecto de uma pasta preta, que fede igual mijo de mendigo. Não que perca meu tempo pensando nisso, mas faz parte. E no momento que pisar pra fora do apartamento sei que água vai encharcar minhas meias. E que a sensação que vou ter o dia todo é de como se estivesse patinando naquela bosta.
      Mas mesmo assim, não é tão ruim. Não pense nisso, dois dedos de vodka ajudam um pouco. Sempre odiei destilados, mas nem devem ter destilado essa porra. Podia ter roubado alguma coisa de qualidade. Passar o dia ouvindo o barulho que as meias encharcadas fazem no buraco dos meus tênis é aturável. Não quer dizer que deu errado. Característica não pode ser defeito.
      Quando eu por o pé pra fora desse lugar, nada mais é defeito, tudo é característica. É... andar um pouco faz pensar. Ver o charme da cidade, aquele que ninguém vê. Devia começar a acordar mais tarde. Só saio às seis e meia. E não consigo demorar uma hora pra me arrumar, e mesmo assim insisto em acordar com uma hora de antecedência.
      E aqueles espelhos na parede, eles incomodam ao mesmo tempo em que me confortam. Peguei-os não sei por qual motivo. Não couberam no elevador, e subir doze andares com eles me cortando os dedos não foi pouca coisa. Tanto é que só descem se forem quebrados ou carregando meu corpo. Têm o tamanho da parede toda. Seis espelhos de um metro de largura e um e oitenta de altura cada um. De alguma loja ou coisa assim, escondiam muito bem a tinta amarela e descascada da parede. Mas a umidade fazia o mofo se espalhar que nem... As outras três paredes pareciam suar quando chovia, de tanta água que escorria...
      Se eu tivesse energia elétrica, tomar banho seria um desastre. Meu banheiro parecia ter o teto mais baixo do que o resto do apartamento, fácil notar isso. Com um e sessenta e dois, só entrava curvado nele. E o vapor solto pelo chuveiro era absorvido pela parede, e depois cuspido na forma de mais mofo ainda... Quem sabe uns azulejos em vez de tinta...Seria o máximo. Vermelhos ou azuis, grandes azulejos brilhantes e decorados. Sim...
      Seis e meia, hora de mais um charmoso dia de chuva. Pelo menos a viagem era confortável. Quarenta minutos andando até meu trabalho pela área que mais gosto. O Centro. Do mundo, da cidade, o meu, tem hora que não sei quando um acaba e o outro começa. E mesmo assim, sigo firme e ironicamente centrado.
      A parte mais legal de ter dado errado – em tudo – é o caminho até o meu trabalho. Passo pelos lugares que mais amo. Eu amo aqueles que falharam, tanto quanto à mim mesmo. E no caminho tudo vejo são pessoas amáveis. Logo depois de sair do meu prédio, debaixo de uma garoa fina e sibilante como se fosse navalha, dou de cara com meu próprio lar. Meu covil. Pobres olhos turvos como as portas de aço das lojinhas, ainda todas fechadas. Glicério, você se supera cada dia mais. Cada par de olhos é um sonho que, por ter dado errado, se dirige ao metrô. Quantos sonhos cabem num vagão às seis da manhã? Eu nunca fui meu super-herói favorito. Não posso me dar ao luxo de pegar metrô, não quando tenho de caminhar pouco mais do que duas estações.
      Mas a simples caminhada até a praça da Sé me inebria com todo seu calor de gelar o sangue. Cerca de dez minutos de casa até a Sé. Tranquilo. Seria melhor se não estivesse garoando. Meu dedão já deu um beijo na chuva. E  o cabelo escorre rebelde na minha cara. Gosto da garoa. Ela me desconforta e acorda. Sinto-me mais vivo quando sou a falha. E chegar a Sé me explode em arco-íris e lhamas. Lhamas são ovelhas misturadas com girafas, melhor combinação? Uma lhama em São Paulo.
      Tudo que se vê na Sé é fruto do homem. Vejo uma bela catedral. Li num jornal que ela é uma das cinco maiores construções góticas do mundo. Aquele jornal não foi meu melhor cobertor. Um marco-zero. Desse ponto minha cidade começa. Sim, minha, desposei-a. E agora vejo meus semelhantes, espalhados pelos tantos metros quadrados dessa praça encardida. Moradores de rua, dizem eles. Eu chamo de “os verdadeiros moradores de São Paulo”. São eles que sentem a cidade, que passam verões e invernos aquecendo-se no solo infértil daqui.
       Sempre tive como ponto máximo da evolução urbana a terra dos canteiros daqui. Sim, se andar um pouco por aí, com certeza vai ver várias praças, a Praça da República é um ótimo exemplo. Aqueles canteiros contendo terra argilosa, de tom marrom-alaranjado. Aquela terra é essa cidade. Representa-a perfeitamente. Quando qualquer garoa cai sobre ela, se espalha por tudo ao redor, impregnando e dominando tudo. Manchando o calçamento com uma cor que me causa náuseas. Encardindo praças, ruas e mais. E quando faz sol, então sim, ela se mostra verdadeira. Seca e rachada. Fica dura que nem pedra, infértil como um vagão lotado de metrô. E ainda assim... a amo, linda terra deslumbrante.
      Realmente, a Sé me conforta, mas no caminho até a Sta. Efigênia parece que tudo conspira à meu favor. A garoa e o céu nublado fazem-me reverberar por dentro, e esboçar um leve sorriso por fora. Todas as ruas do centro histórico. Direita. Nela eu me sinto um amante que é beijado e mordido. Todos lá. Beijam-me e me mordem, e minha esposa nada faz. Deve gostar disso, tanto me trata bem, deve ficar de longe, me vendo viver, e então, inebriar-se com todos os meus suspiros de ódio. Gosto mais desse caminho. Prefiro evitar a entrada pra Vinte e Cinco de março, ela desvirtua minha cidade. Aquela ruazinha que liga a R. Boa Vista com essa outra rua infernal devia ser fechada. Sempre que sou forçado a ver aquela descida pra inferno, sinto meu coração palpitar. Como se fosse uma bomba...
_Não chego mais perto que isso, senão explode.
      Então acabo embrenhado nas ruelas centenárias daquela parte tão viva – e velha – da cidade. Até a prefeitura. Que se impõe. Como um bloco maciço de mármore. Com um jardim suspenso que parece imortal. E mesmo com todo quebra-quebra que rolou por aqui, não reclamo. Protestos acontecem, eu protesto contra dias que dão errado. Mas gosto deles todos, os jardins, os blocos de mármore, e até mesmo os dias que dão errado. E sim, magnífico como só ele. O Viaduto do Chá.
      Sempre paro pra olhar os carros passando. É uma visão peculiar. Todo mundo que passa por ali sempre tem algo há fazer. Como num formigueiro. Um médico, outro advogado, um professor. Não, se fosse professor estaria tomando chuva junto comigo. E sem sapatos. Não gosto de professores. Queriam sempre mandar em mim. Professores gostam de mocorongos namoradores de livros. Nunca poderiam gostar de mim. Gosto de realidade. De ver o circo pegar fogo. O som de uma página virando me faz ter cólicas. E além do mais, carros são muito poluentes. Fazem fumaça. Nunca quis um carro. Mas poderia, sem problemas ser professor. Ensinar sobre a Galeria do Rock. E todos os perdidos que moram lá. Parecem brotar das lojas, e a partir de então começam a virar parte do prédio. Sempre passo lá por dentro, evitando o andar dos chineses. Aquele é o andar de compras – que é, na verdade um térreo. Eu gosto do primeiro andar. Gente com cabelos coloridos, piercings, espaçonaves e guitarras. Tudo combina com uma música do The Doors que sempre toca numa loja hippie.
_Qual o ápice?
_Hein?
_Da tua viagem! Me conte...
      Sim, tem um ápice. Melhor que a Praça da Sé. Bem melhor. Ali, logo depois de atravessar a Avenida São João, na frente da Galeria do Rock, aquela praça é o começo do auge. O auge negativo de São Paulo. É o lugar que mais amo odiar. Dali até meu trabalho, sim. O lugar meu encardido pela terra argilosa, o lugar com os piores amantes de São Paulo. O mais fétido, pútrido e nítido retrato do Centro. Nunca soube o nome daquela praça. Tem uma placa, mas não tomo ordens de placas, só de bobões. É uma de minhas tantas regras. O tédio me fez criar regras. Não tomar ordens de objetos. Quem é um adesivo pra me dizer se devo ou não ultrapassar a faixa amarela? Ou então, minha regra favorita: Nunca conheça pessoas novas. Muita conversa, besteiras, elogios, e falsidade dispensável. Vivo sem isso. Eu sempre quis ter uma máquina de algodão doce. Brotam fios de açúcar como se fosse mágica, e grudam-se no palitinho como se atraídos por força magnética. Devia ter seguido mais meus sonhos. Só é uma pena que seja tão enjoativo e doce.
   Descer a João de Barros é sempre uma comemoração. Mesmo com o cheiro da urina já impregnado nos cantos daquele lugar, e com alguns irmãos que parecem mais cadáveres que gente viva. E com a carranca de sempre, vou cantando I Will Survive enquanto desço aquela rua me sentindo como num grande filme de faroeste.
And I
Bang bang
I will survive...
     E ver a catedral da Santa Efigênia... Alivia-me. Uma construção muito imponente. Meio escura... demais, lembra-me minha casa. Isso desconforta e alivia. E ainda que todos aqueles pares de olhos passem batidos. Sem me notar, sem notar, com precisão, a real grandeza daquele edifício magnífico, imponente e intimidador, faço aquele bom sinal da cruz. Quem sabe a Santa não me ajude um pouco mais. Ou então atrapalhe tudo de vez. Mate-me de vida. Vai que numa dessas perco meu medo de altura. De cachorros, e de não poder fracassar em mais nada. Confundo-me muitas vezes. A cidade e Eu. Virando-me e desvirando tudo logo após. Tantas as ideias. Tantos milhões de sonhos. Uma pena que ninguém preste atenção. Quem entrega panfleto da loja de celular sabe.
     Não que seja um empreguinho ruim. Só é miserável. Faz você se sentir pior que lixo. Quando os caras acham que estão num filme do Matrix, e desviam dos panfletos como se fossem balas. Não posso muito reclamar, não ganho por panfleto entregue, se fosse assim eu engolia todos. Mas parece que eu tenho bafo. Não disse que não tinha. Mas desviar desse jeito joga qualquer um no chão. Aquele monte de gente indo e vindo, e muito raramente alguém pega um panfleto ou coisa do tipo. Me acostumei. Sinto-me um lixo quando nem as tias velhas pegam o panfleto por educação. Elas vão pra igreja, rezam, falam com papai do céu, e depois ficam com essa. Se não pegar meu panfleto eu enfio o inferno no teu cu. E depois o lacro à pregos.
    Pelo menos não sou tipo o Pulinho. Ele sim é feio. Chamam de pulinho porque uma vez sofreu um acidente de carro – atropelado enquanto entregava panfletos na Av. Paulista. Contam que ele saiu pulando numa perna só. Hoje em dia tem ainda o nariz quebrado, e uma perna grotescamente mais fina que a outra. Quem entrega panfletos não tem fisioterapia. Ele sim é feio. Eu só preciso de um trato... Coisa assim.
    Ou tipo o Leandrão. Vive de sofrer. Sempre apaixonado, sempre traído. Nunca quis que eu copiasse minhas regras num papel e colocasse num envelope, e fizesse de presente. Mas tem grana. Vive lá só pra ajudar o pai, que tem três lojas pela Efigênia. O tipo playboy que paga de trabalhadorzinho, que entende da vida. Tirou uma foto comigo e postou no Orkut esses tempos. Cara gente fina, fuma maconha pra caralho.
    Se eu abrisse uma loja eu não venderia panelas. Até hoje só cinco pessoas apareceram perguntando por panelas. Eu teria vendido só cinco panelas numa loja cujo custo seria mais de trezentos reais. É um absurdo. Eu devia pedir bolsa família. Ajudaria bastante se eu recebesse ajuda. Eu moro com o boneco de cobertor, serve Dilma?
   Oito da manhã, hora de pegar meus panfletos. Hoje tem chuva, e a rua vai ficar mais vazia ainda. E pelo jeito, esse tanto de polícia espanta os malandros velhos, que vendem produto chinês de contrabando. Mas os clientes gostam daqui por isso. Então de que me adianta? Quando o dia começa errado, só conserta se você não ultrapassa a faixa amarela, rapaz.
  


sexta-feira, 14 de junho de 2013

Dia dos namorados? Hmm, como eu pude me esquecer?



A praça da liberdade muitas vezes me lembra um deserto. Deve ser por causa do espaço aberto e plano, e eu vou lá geralmente quando está ensolarado, calor, e cheio de pessoas que andam de um lado pro outro como se fossem besouros rola-bosta. Curiosamente estava assim da última vez que eu estava lá, apesar das nuvens escuras que se aproximavam. Era mais ou menos onze e cinqüenta quando cheguei à estação de metrô que fica no centro daquela praça. Quarta-feira, dia dos namorados, não que na hora eu soubesse disso...

Meio-dia, e eu estava esperando meu amigo, Júlio. Tínhamos um plano. Parecia uma novela, mas era só um plano, e ele já estava atrasado. Gosto de muitas coisas, atrasos não é uma delas. Eu gosto de regras. Sempre tive um afeto especial por elas. E eu recém tinha lido “O Clube da Luta”, não me impressionei tanto pelo livro. Criativo, legal, umas frases bacanas pra ter impacto, mas niilismo nunca foi minha onda. Mas uma coisa me chamou atenção, uma coisa salvou o livro todo. Regras, ele falava de regras. Sete eram as regras, e apesar delas serem sobre gente estúpida se batendo, ainda assim eram regras. Isso me fez colocar num papel as minhas regras. Escrevi oito. Não cabiam apenas sete na minha vida.
I-) Tenha uma rotina, não a quebre.
II-) Seja pontual e honre compromissos.
III-) Não conheça pessoas novas.
IV-) Não fale nada útil, caso não seja extremamente necessário.
V-) Nunca é realmente necessário, portanto, silêncio é teu aliado
VI-) Seriedade anda de mão dadas com a chatice, e você fecha o círculo.
VII-) Mentir é obrigatório quando se tem interlocutor, e sentimentos são considerados como verdades.
VIII-) Nunca, jamais, em hipótese alguma quebre as regras, nenhuma delas.

Essas são as regras, e até o momento as três primeiras e a última já tinham sido quebradas. Eu suava, por causa do calor, do nervosismo, e ainda mais por ter quebrado meu conjunto perfeito de regras. Estava ouvindo Pink Floyd. “Jogando fora os momentos que fazem um dia tedioso”, dizia a música logo que David Gilmour começava a tocar. Não jogue momentos fora, é contra as regras. Mas Júlio não entendia minhas regras, sempre dizia que era baboseira de gente velha. Eu sou velho, ele que não entende.

Meio-dia e cinco, nada de Júlio. O plano era o seguinte. Saímos da escola onze e trinta, ele pegava o irmão dele na escola ao lado, enquanto eu ia de metrô até a Liberdade. Ele iria até sua casa, e deixaria seu irmão lá mesmo. Iria para a Liberdade, e onze e cinqüenta nos encontraríamos na praça. Regra um quebrada. Ele não trocaria de roupas, não comeria, nem sequer respiraria dentro de sua casa, ele iria para a Liberdade. Mas ele estava dez minutos atrasado. Como as pessoas não entendem muito bem o quanto minhas regas são importantes, eu tolero cinco minutos de atraso, ele estava dez. Isso era muito mais do que o tolerável. Regra dois tinha sido quebrada.

Não era o melhor dia da minha vida desde o começo. Estouraram o zíper de um dos bolsos da minha mochila novinha no metrô. Eu tinha comido aquele macarrão da escola. Ainda bem, quando eu espetei ele com o garfo amarelo de plástico ele quase me mordeu. Aqueles garfos sempre estão engordurados. E aquele macarrão não tinha me deixado legal, estava meio enjoado, e o calor não ajudava. Minhas roupas pareciam estar coladas no meu suor. Minhas costas estavam molhadas de suor, minha cueca estava apertando minhas bolas, e eu estava me coçando por causa da sensação de aperto. Quinze minutos atrasado e eu no Sol.
Ah, como pude me esquecer. A terceira regra. Ela também tinha sido quebrada. Minhas três principais estavam mortas. Eu me sentia horrível por isso, mas eu tinha lido que uma bomba que não explode não tem motivo pra ser feita. Talvez essas regras fossem bombas. Eu preferia elas inteiras, eram mais bonitas de serem admiradas. Maldito seja o facebook. Três semanas, três regras. Coincidência, claro. Era uma foto engraçada. Ela tinha postado uma foto com uma lhama grande e branca, mais bonitas que os grandes cavalos de raça que corriam em hipódromos. Mais bonita que... mais bonita que as minhas regras. Eu tive que mandar uma mensagem. Começou normal, ela gostava de lhamas também. Eu gosto mais, é claro, mas o assunto rolou. E por três semanas nós conversamos. Todo dia. Mais de três mil mensagens. Foi-se a regra três. E eu não conseguia acreditar que, depois de três semanas com a regra quebrada ainda nada de ruim tivesse me acontecido. Me causou uma grande dúvida sobre a legitimidade do meu sistema. Amanda era seu nome. Era bonita, sem ser exageradamente bonita. “Eu não teria vergonha de sair na rua com ela”. O papo era bacana. Ela disse que gostava de ler. É, não teria vergonha.

A idéia do plano tinha sido dela. Não gosto de planos. Era, pra ela, simples, só buscá-la na porta da escola, levá-la em casa, conversar um pouco. Eu não queria conversar, acho que gostava dela. Vinte minutos atrasado. Dentro da estação tinha uma máquina que vendia garrafas de refrigerante, água e salgadinhos. Dois reais por uma garrafa d’água, que seja. Sorvia a água enquanto esperava Júlio. Ele não podia ter demorado tanto, não era possível. Planos não são legais, mas são compromissos, então há de se honrá-los. Amanda estava nos esperando, eu tinha certeza. Tudo tinha ido por água abaixo. Viu? Quebre as regras, olhe agora como tudo está, dia de sair é Domingo, não Quarta-feira.

Com trinta minutos de atraso ele chegou. Seis vezes o tolerável. Eu realmente o considerava demais. Senão teria ido embora após cinco minutos. Júlio tinha trocado de roupas, e estava com um pacote de salgadinho na mão. Ótimo, da regra dois tinha sobrado só o papel que estava na minha carteira do Batman.
_Vamo logo, cara. Cê ta lerdo? – ele falou, ainda de longe, como se o atrasado fosse eu.
_Já estamos atrasados. Ela nem está mais lá.
_Claro que está, eu liguei pra ela, tá te esperando.
_Então vamo rápido.

E fomos o mais rápido o possível. Demorou cerca de oito minutos até chegarmos lá. Já era quase meio dia e quarenta quando chegamos. Lá estava ela. Eu estava suando de nervoso, não pelas regras, mas por vê-la. Era mais bonita que nas fotos. E sorriu quando me viu. Um dia de sorte? Regras podiam ser descartadas? Talvez, por aquele sorriso... talvez. Ela estava ainda na frente da escola dela, me esperando. Júlio tinha visto ela ainda de longe. Visão não é uma das minhas virtudes. Conseqüentemente ele foi o primeiro a falar com ela, pra me deixar por último... como um gran finale das comprimentos. Um “e aí” e um beijo no rosto. E então ela me abraçou. Regras? Quem precisa delas? Esqueceria as regras de qualquer coisa por aquele abraço.
_Oi, Bruno, como é que tá? – perguntou Amanda, era a primeira vez que escutava a voz dela, combinava perfeitamente com ela. E o cheiro de seus cabelos, vão ficar pra sempre na minha memória.
_To tranqüilo – respondi, tentando não parecer eufórico, não deve ter funcionado, ela riu. A risada dela era alta, e percebi que ela gostava de falar alto. Eu não falo alto, é horrível. Tenho nojo de quem grita. Ou melhor, eu tinha, pois, a partir de agora, eu também pensaria em começar a gritar. A regra cinco teria de ser repensada.

E então fomos escoltando-a até sua casa. Não era tão longe. Quinze minutos andando. Minhas costas doem quando eu fico em pé por mais de meia hora, ou então quando ando demais. E à essa altura elas pareciam chiar e ranger de tanta dor, mas eu estava segurando a mão dela. Quem liga pra dor, hein? Fomos conversando coisas banais. Principalmente comentando as conversas na internet. Sabe como é, eu não levo muito jeito com pessoas novas. Regra três tem motivos para existir, e não é só por causa disso, tem alguns outros, mas isso não é importante do lado dela. Júlio parecia ter mais assunto com ela do que eu. Normal, ele é treinado nisso, passou a vida fazendo isso. E talvez, prestando atenção na conversa deles eu conseguisse achar algum nicho, e então conseguiria fazer ela olhar pra mim. Mas eu me contentava em apenas contemplar a imagem de nossas mãos juntas. Era definitivamente algo realmente incrível, que valia mais que regras bestas.

Quando chegamos na frente do prédio onde ela morava, ela perguntou se alguém queria água, ela subiria e iria pegar. Júlio não é do tipo contido, basicamente mandou ela subir. Ela foi, rindo. Estávamos na parte de fora do prédio, que fica numa rua bastante inclinada. O prédio dela tinha duas portas antes de se chegar ao saguão. Uma era feita de barras de ferro, e a outra parecia madeira pesada, ou até mesmo ferro pintado, pra parecer madeira. Ela tinha desaparecido quando Júlio falou:
_ É, cara, parece que hoje é um dia bom.
_Né, eu quebrei metade das minhas regras e nem morri.

Júlio riu. Ele não leva as regras à sério, eu levo. Ou pelo menos levava. Quando Amanda voltou trazia uma garrafa e um copo de plástico. A garrafa estava suada de tão gelada que estava a água que continha. Ela tomou o primeiro gole. Até tomando água ela parecia bonita. Me pergunto até hoje o motivo de ter reparado nisso. Eu enchi o copo novamente e tomei-o todo de uma só vez. Então Júlio pegou o copo, a garrafa, e encheu ele mesmo, rindo como se aquilo fosse algo fora do comum. De certa forma era. Ele tomou meio copo, e então jogou o resto fora.
_Cê cuspiu na água, né, filho da puta?
_ Só um pouco – respondi.

Amanda riu alto mais uma vez, e me lançou um daqueles olhares que quase me fazem desmaiar. Eram profundos, negros, brilhantes e felizes aqueles olhos. Incrível como eu não pensava em nada enquanto ela me olhou. A sensação de tempo era descartável. E então ela desviou o olhar, como se quisesse me fazer vontade. Ela queria, e tinha conseguido.

Eu não agüentava mais ficar em pé, tive de me sentar, Júlio se sentou, e então ela sentou do meu lado. E então voltou a conversa. E novamente Júlio era o centro das atenções, ele é bom com isso. Mas eu participava do assunto, na medida do possível, mas a regra seis é mais parte de minha personalidade do que apenas uma regra. Júlio não entendia as regras, e ele era engraçado, tem boas piadas sempre. Eu gosto de silêncio e de ser chato. Amanda pelo visto gostava de gente menos contida. Ela ria, e ria, e não parava mais de rir, e de vez em quando ria das minhas piadas, cada vez que seus olhos brilhavam e ela soltava uma gargalhada com uma piada minha meu coração vibrava. Mas as piadas acabam, mesmo as piadas de Júlio, mas mesmo quando acabavam ele sabia ser engraçado:
_Aí, acabou o assunto – disse ele olhando pro céu. Nuvens cinzentas e pesadas estavam chegando mais perto. Provavelmente logo encobririam o sol. Nem gosto de sol mesmo. Aquela estúpida bola de fogo que só me torra o saco. Mas que ele fique lá, não gosto de frio.
_Pois é, mas eu posso pegar meu violão e meu skate, oque vocês acham? – Amanda tinha solução. Ela parecia entender das coisas. Eu entendo das coisas.  
_Pode ser, ainda que eu não saiba tocar – respondi. E ela riu, mais uma vez ela riu. Respirar é difícil quando se está maravilhado.
_Ok, vou lá, já volto!

Júlio me olhou com cara de quem gostava de tudo que estava acontecendo. Ele é meu co-piloto. Eu não sou o carismático, mas ele faz com que eu pareça. E eu o sério, na maior parte do tempo ele é bem mais útil. Carisma é melhor que seriedade.
_É, parça, acho que ela gosta de você. – Era legal ouvir aquilo dele. Eu posso entender de Senhor dos anéis e Schopenhauer, mas ele entende de mulher, e se ele diz, é verdade. Ele dizia que a regra dele era não mentir. Eu nunca precisei mentir pra ele, mas achava admirável o quanto ele gostava de ser sincero.
_Espero que goste mesmo, acho que gosto dela, cara.
_Ihh, cara, sai dessa. Sem relações lembra? É uma das tuas regras!
_Eu já quebrei tantas, dane-se as regras.
_Então tá, já é. – o significado dessas palavras? Não entendi até hoje, mas nunca significava alguma coisa ruim.

Amanda voltou com um violão em uma capa, que estava feito uma mochila em suas costas, e um skate debaixo do braço direito.
_Vamos ficar na pracinha, ai ninguém enche o saco, minha mãe pode chegar daqui a pouco, aí vai mandar eu subir.
_Vamo logo então, caraio! - Júlio riu, Amanda também, eu fingi que tinha achado graça, forçar uma risada é natural...

Júlio pegou o skate dela, e foi um pouco na frente. Eu levava o violão, não podia deixar uma dama carregando peso, falta de educação, e como chato, eu tenho que me comportar como um velho. Velhos são chatos e cavalheiros, eu também tenho esse hábito. Ela pelo menos tinha me dado a mão de novo. Tão pequenas eram suas mãos. Eu olhava espantado. Pareciam delicadas demais para serem tocadas. Mas eu não as soltaria por nada.

Chegamos à pracinha bem rápido. Não conversamos no caminho. Eu me sentia bem. Apreciar o silêncio era ótimo, uma das minhas coisas favoritas. Ela não parecia gostar. Estava sempre olhando pro celular. E pro horizonte, observando as nuvens, ou qualquer coisa desse tipo. Era bem pequena, a tal praça. Nunca tinha ido antes, ainda que já tivesse andado o bairro da Liberdade quase todo. Talvez apenas não lembrasse. Sentamos nos bancos de pedra, e ela pegou o violão.

Júlio puxou assunto, e já tinha várias piadas. Eu estava relativamente quieto. Pra mim parecia tudo normal. Eu gosto mais de ouvir as conversas. São tantos os gestos quase imperceptíveis. E eu me divirto caçando-os, e cada olhar, cada movimento das mãos, dedos, pernas. Cada passada de mão no cabelo. É algo realmente divertido. Por exemplo, quando alguém que não é tão habilidoso com mentira tenta mentir, é possível descobrir apenas olhando para suas mãos. Colocadas nos bolsos, ou então inquietas, com os dedos sempre em movimento. Ou então pela expressão facial. É difícil pra quem mente te olhar fixo nos olhos, ou então não olhar fixo nos olhos. Sempre opostos. Mas Júlio não parecia mentir. Apenas se mostrava como sempre. Com movimentos exagerados, gargalhadas altas, e piadas que pareciam ter sido pensadas por horas. Amanda parecia natural, eu acho. Não era familiarizado com os gestos dela, mas apesar de estar à vontade, ainda mantinha os movimentos de forma natural, e tocava alguns acordes desconexos em seu violão. Normal. Enquanto a mim... Talvez eu parecesse desconfortável, entediado, ou mesmo preocupado, mas eu estava apenas me divertindo.

Júlio, que estava sentado em um banco de pedra um pouco mais à frente do banco em que eu estava sentado junto com Amanda, de repente se levantou e falou de um modo que insinuava que queria me dar espaço.
_Posso andar um pouco com o skate?
_Claro que pode, pra que pedir, só cuidado com a lixa, é nova. – respondeu Amanda. Eu não entendo de skates. Prefiro Bukowski.

Então meu co-piloto foi dar um volta por ai. Era minha deixa. Peguei o violão da mão dela. Coloquei-o no chão, em cima de sua capa. Sentei-me mais perto dela,  abracei-a e então tentei impor um tom mais sério na minha voz.
_Você sempre me mandava um monte de beijos...
_É, eu sei...
_Algum deles de verdade?
_Todos, ué. – ela riu desconfortavelmente – Mas acho que, sei lá, você tá muito perto.
_Isso é ruim?
_Não, que é... sei lá...

Sei lá? Quem diabos repete “sei lá” tantas vezes? Eu tinha notado que era um hábito, mas pensei que fosse mais uma daquelas coisas que você fala repetidamente pra ter personalidade, ou qualquer coisa desse tipo. Foco. Não gostava de quebrar mais uma regra, mas agora que a número quatro tinha sido quebrada junto com a cinco e a sete, eu já não tinha como escapar. Então que pelo menos eu tivesse um pouco mais de foco na conversa. Ah, a regra sete. Gostava tanto dela. Maquiavel, eu devia ser você, só então eu conseguiria mentir sempre. A sete sempre foi meu ponto fraco...
_Mas só escrever “beijos” não significa que você tenha realmente me dado um beijo.
_Eu sei, mas é que, sei lá, eu estou meio, sei lá. É que eu não... – ela estava cada vez mais desconfortável. Rápido demais? Não. Já estava vendo ela conversar por mais de uma hora e meia...
_Você não o que? Não quer me dar um beijo?
_Não é isso, eu não posso.

Me poupe, menina. Tem sapinho? Claro que ela podia, eu não posso estar ouvindo isso, com certeza é joguinho. Agora eu tenho que me virar, não sei jogar isso, prefiro Mario Kart.
_Não pode ou não quer?
_Não posso.
_Algum motivo específico? – Vai que ela tem sapinho. Eu não estou com vontade de pegar sapinho, se eu ainda tivesse regras, adicionaria uma outra “Não pegar sapinho ainda que o sorriso dela me deixe bêbado”. Seria a número oito, e então a oito viraria nove.  Tudo de praxe.
_Tem sim, é que, eu, érrr... Como posso te explicar? – Explicando, piranha, é só explicar. – Você apareceu faz pouco tempo, e eu, sei lá, estou confusa. Gosto de um outro menino.

Menino? Como assim? Eu não sou menino. Então você gosta de mim, e do outro que é um  menino? É isso? Com isso eu consigo lidar tranquilamente. Sou um homem. Tenho até barba, de vez em quando. Quando eu não tiro uma semana toda dá até pra ver de longe no espelho. É uma sensação incrível. Um dia vou ter uma barba do tipo Gandalf com Marx e... não, Marx não, né? Quem mais tem barba? Foco, cara, foco.
_Eu não sou menino. E me conta isso direito. Fale a verdade, é melhor que me enrolar. Se você não quer, é só falar. – Como assim? Não tem como você não querer... tem? Droga, eu pedi pra você falar a verdade. Mente se quiser, mas me beije, menina...
_Eu só não posso. Eu gosto do Júlio.

É, se alguma vez você viu um copo quebrando e teve a oportunidade de prestar atenção nos cacos que voavam, você vai entender como eu me senti. Mas eu comecei a rir. E falei baixo, mas de um modo que ela escutasse. “Droga!”.
_Não fica assim, você é um cara legal. E eu achava que gostava de ti, mas tudo aquilo que eu esperava de você o Júlio fez. E você é sério. Parece mau humorado.

Eu sou legal, não estou mau humorado. Porque tenho que ouvir isso?
_Mas eu tô confusa. Me sinto confusa demais pra dizer que não quero. Só queria que você tentasse, sei lá. Me ver como amiga.

Amiga? Amiga meu cú. Você disse que me amava pelo facebook, e mandou até carinha feliz, como assim amiga? E para de falar “sei lá”, ou eu meto a mão na sua cara. Eu vou recriar as regras. Número um : “piranha toma tapa na cara” dois: “Não quebra a regra um, ela é divertida”. Só. Fodam-se as regras, eu queria chorar, gritar, e ao mesmo tempo eu ria por dentro. Eu sempre soube que era chato, mau humorado e tudo mais. Mas ela devia entender. Ela disse que me amava. “Now our love is sour”. Interpol, não era pra você fazer sentido! “Love will tear us apart”, Joy Division errou, porque o amor só me despedaçou, ela não parecia nervosa, nem tremendo. Aliás, continuava normal, no máximo desconfortável, como se eu fosse um mendigo pedindo esmola. E estava fingindo que tocava violão nos dedos. A palheta ainda estava na mão dela.
_Como assim? – eu perguntei. Eu achei que você quisesse ficar comigo, e tivesse me chamado aqui pra isso.
_Eu não quero apressar as coisas, vamos com calma. – Eu pareço apressado? Eu to correndo? Eu devia te foder, mas eu ainda estou conversando, e você pedindo calma?.

Júlio chegou, estava suado, mas não parecia cansado. Como era magro, sua camiseta suava estava colada no corpo de um jeito nojento. Eu não conseguiria gostar dele. Deve ser as piadas.
_Voltei, seus puto! – E ele olhou pra mim, com um olhar do tipo “quantos beijos essa novinha ganhou?”, mas o meu olhar devia estar dizendo “Eu vou bater nessa piranha”.

Ele, de alguma forma entendeu.  E lá veio mais uma enxurrada de piadas. Ele não sabia que ela tinha mudado de alvo. Mas eu agora entendia. Ela estava olhando pra ele com os olhos faiscantes desde que estávamos conversando na frente do prédio dela. Naquela hora eu tinha pensado “Merda, eu queria ser o carismático”, e sem saber, eu tinha me tocado de tudo. Eu tinha, Amanda também, mas Júlio não parecia ter entendido, ou então estava mentindo. Ele não era de mentir. Mas era bom com piadas. E Amanda ria de modo cada vez mais exagerado. Mas, apesar de estar rindo, ela se levantou, e começou a falar.
_Eu tenho que ir pra casa, são quase três horas, e sei lá, eu tenho que comer alguma coisa, você me leva até em casa? Vamos Júlio? – Sua voz agora me dava nojo, e eu estava quase chorando. Isso era algo que cortava meus ouvidos e me dava vontade de ouvir B.B. King. Se eu soubesse chorar, eu já estaria me desmanchando. Mas eu sou muito homem pra essas coisas. Chorar é coisa de maricas.
_Eu levo sim, mas eu vou de skate, senão vai se foder. – Júlio falou isso com naturalidade, não era uma piada, mas ela riu, e como riu... Ele tinha entendido. E me olhou com uma cara de cachorro. Do tipo que falaria “puta que o pariu, fodeu...”. Eu só olhei, com os olhos vermelhos, e dei de ombros.

Aquilo foi horrível. Eu não sou bom com mentiras, e não choro. Ele sabia disso, e ela teria notado se pelo menos tivesse olhado pra mim. Mas parecia encantada por ele. É, eu devia ser o carismático. Em qual fila eu pego a ficha pra troca de personalidade? Eu não poderia ficar do lado dela, não conseguia. Foda-se, eu vou embora, pensei. Júlio não vai encostar um dedo nela depois de ter me visto daquele jeito. Ou então, se encostar, melhor assim, ela é legal e tudo mais... Quê? Não, ele não vai... mas se ele for... Não.

_Eu, é... já deu minha hora, e vai chover, eu tenho que ir embora. Dormir, jogar GTA, um monte de coisas. Falou aí. – Eu falei, com a voz trêmula. Eu agüentava. Mais um ou dois minutos. Calma, seja meticuloso. Você tem que jogar. “Y” é o botão de roubar carro. Mas não era simples assim.
_Não, brô. Vamo levar ela lá, ai vou embora contigo – Ele quase implorou pra que eu fosse. Eu não. Ela me dava nojo, eu a odiava. Eu cuspiria na cara dela. Lhamas fazem isso, eu posso também, não?
_Se eu não for vai dar problema...
_É, se tem que ir vai. Não fica enrolando – Eu devia ter metido a mão na cara dessa menina. Não sabe calar a boca, com essa gargalhada escrota. Eu gostava da voz dela.
_É, eu vou.
_Se cuida então, te vejo amanhã na escola? – Se ela tivesse olhado pra mim teria visto. Minha visão estava turva. Merda, deve ser um cisco no meu olho. Ou então essa piranha fodeu meu dia. “Normal, acontece sempre!”.
Então eu peguei minha mochila, levantei, me virei de costas, quase pisei no violão dela, e fui trôpego em direção à estação Liberdade – eu não sabia em qual direção devia seguir, e nem me preocupei, mas até aí, não devia ser tão longe. Ainda ouvi Júlio dizer “Puta que o pariu”, e Amanda com aquela voz... nojenta, maldita, irritante, linda... dizer “Que foi?”. Júlio respondeu mais alto que o normal, queria que eu escutasse “Nada não, vamo logo que eu tenho mais oque fazer”.

Virei a primeira esquina que vi, tinha que sumir do campo de visão dela. Não que adiantasse, ela não estava afim de mim mesmo, nem me olhava. Não chorei, não. Chorar é coisa de bichona. E aquela lágrima que caiu é culpa do cisco de Amanda que caiu no meu olho.

Eu estava meio perdido, meio desnorteado. Cansado, meu peito doía, respirar era pesado, e meu coração não conseguia bater com ritmo, eu o sentia vacilar. Sentia meu pés trêmulos, e minha visão ainda estava turva. Não havia mais nada a se fazer... mostrei o dedo médio pro céu. Pro sol, Apolo, Deus, Zeus, Silvio Santos, ou quem quer que fosse. Mas não tinha sol, as nuvens estavam ali. Sério? Isso é hora de chover? Era hora de chover. E a chuva não foi fraca. Começou a cair uma chuva forte, com os pingos grossos. Daqueles que quando batem na sua cabeça fazem você ficar tonto. Teve uma vez que eu vi um cara desmaiando na chuva por causa desses pingos, mas quem liga? Eu não veria se isso acontecesse agora, não consigo nem ver minhas mãos.

Fui andando na chuva por cerca de uns dez minutos, até conseguir achar a estação. Quando cheguei lá meus tênis estavam encharcados. Eram brancos e novinhos em folha, mas agora estavam molhados, sujos e cheios de folhas e até um papel de bala tinha nele, não pareciam mais tão bonitos. Nada parecia bonito. Peguei o Ipod no meu bolso, estava molhado, mas era à  prova d’água, há, pelo menos isso. Música aleatória. Quem sabe toca Safety Dance. Até I will survive eu aceitava... Sério isso? “The sky is crying”? É óbvio que o céu está chorando, Vaughan, eu não sou cego. “Can you see his tears rolling down the street?”... tem mais lágrimas do céu em mim do que na rua... palhaço, não sei pra que te escutar, no Texas todo mundo tem cheiro de cachorro. Se você não tocasse tão bem eu iria parar de te escutar.

Fui passar na catraca. Não tinha mais carga no meu bilhete único. Eu tinha ainda mais três reais. Vou comprar um bilhete, não quero recarregar o bilhete, tem fila. Eu não gosto de filas, nem de pássaros, nem cachorro, nem árvore grande, nem insetos... Comprei o bilhete e passei na catraca. Não me senti um astro do blues enquanto descia as escadas rolantes. Tirei a mochila e andei até um dos bancos que ficam nas plataformas. Abri a mochila, meus cadernos estavam molhados nas bordas. Abri numa página qualquer. Era na matéria de história. É tudo mentira mesmo, quem liga se eu escrever um poema aqui? Rabisquei alguns versos até o trem chegar. Quando saí do banco ficaram as poças d’água onde eu estava com os pés, e onde tinha sentado. Entrei no trem. Tinha uma moça lendo “Cartas na rua”, eu me lembro de ter lido esse livro, vai se foder você também, Bukowski. Terminei o poema. O título era “Um poema pra você socar no rabo”, mas tinha uma lágrima nele. Tinha vinte e dois versos, em quatro estrofes. Arranquei e folha do caderno, e não me incomodei de tirar também metade de um texto sobre sistema colonial. Peguei minha carteira do Batman, ela escorregou, caiu perto da mulher que estava lendo Bukowski. Ela pegou a carteira, olhou pra mim, sorriu e falou com ar de quem está feliz:
_Ó sua carteira.
_Me dê, e vá para os diabos. – Ela riu, deve gostar de Bukowski.

Peguei a minha carteira, abri, coloquei o poema, e então me distraí com aquelas telas que ficam no metrô. Alguma música muito alta abafava todos os meus pensamentos.
“A melhor escolha que fiz em toda minha vida foi ficar com você, te amo, Patrícia” – Ronaldo Schüller.
“Amor, a cada dia que passa eu entendo que fiz a escolha certa, feliz dia dos namorados!” – Patrícia Schüller.
Dia dos namorados? Como assim? Ahh, que ótimo.
_Moço, caiu um papel da sua carteira no chão, desculpa, não tive como não ler, mas são muitas regras, não?
Regras? Eu suspirei. Peguei o papel, desdobrei, amassei, e engoli ele.
_ Regra número oito: “Nunca, jamais, em hipótese alguma quebre as regras, nenhuma delas.”- falei olhando pra tela. Mas a moça do Bukowski respondeu.
_CREEEEDO, porque fez isso?
Eu levantei, peguei o livro da mão dela, e esperei o trem parar em alguma estação qualquer. Quando parou, abriu a porta e eu joguei a porra do livro no vão entre “o trem e a plataforma”.
_Entende agora?

terça-feira, 30 de abril de 2013

Histórias que não merecem ser contadas

                                          




                                I: Os aplausos só vão durar enquanto não forem teus.

Marcos não era o garoto mais popular da classe, aliás, sempre foi motivo de chacota. Estava na quarta série, e entendia muito bem o quanto crianças podiam ser cruéis umas com as outras. Não que ele visse algum motivo para elas serem cruéis com ele, mas elas o eram, e muito. O garoto não dava um sequer motivo – pelo menos à seu ver – para as outras crianças o tratarem sempre de modo tão malicioso, mas elas sempre foram. Desde que conseguia se lembrar, nunca tinha sido bem aceito pelos seus colegas. Não era o fedorento da classe, não comia cola, não ficava com os dedos na bunda, não puxava saco da professora, não era o pior na educação física e nem falava como uma garotinha, e mesmo assim as crianças o viam de modo diferente.
      Logo que entrou na primeira série, foi rejeitado pelas crianças que se denominavam “líderes” da classe (aquele tipo de grupinho, que tem os meninos que jogam bola melhor, e as meninas mais bonitinhas). Não entendia ele porque, mas entendia que aquilo não lhe ajudava, já que sempre que podiam, os outros garotos faziam questão de atormentá-lo.
    No começo eram apenas provocações mais tímidas por parte das outras crianças. Coisas que não eram realmente um incômodo. Esbarrões, empurrões, ou então derrubar o estojo dele, como se fosse acidente. Até esse ponto ele agüentava fácil. Pensou que fosse coisa normal de todas as crianças, e pelo que ele observava, era. Pois os garotos faziam isso entre eles. Mesmo assim ele não via aquilo como algo certo. Alguém poderia se machucar ou ficar sem o lápis, e não era engraçado ver alguém com o queixo sangrando ou sem lápis, então Marcos nunca nem tentou repetir aqueles atos. Mas com o tempo, tudo foi piorando, ele ia ganhando apelidos, e as provocações começaram a ficar mais sérias. Apelidaram-no, na segunda série, de “bolinho de banana”, por causa de uma festa que houve na sala, onde todos levaram coisas legais – brigadeiros, tortas, coxinhas e empadinhas – e ele tinha levado um bolo de banana feito pela sua avó. O bolo estava bom, e não sobrou nenhum pedaço, e mesmo assim ele ganhou o apelido, já que não tinha levado nada “descolado” pra festa.
   Na terceira série começou a ser comum as surras que ele tomava. Não eram muitos garotos, dois ou três o surravam enquanto toda a sala – e algumas vezes a professora – o assistiam apanhar. O menino nunca provocou ninguém, mas mesmo assim começaram a dar-lhe socos e pontapés. Muitas vezes, ele era pego desprevenido, fazendo lição, ou caminhando pela escola, então os colegas de classe davam-lhe tapas, chutes, o derrubavam e uma vez arrancaram-lhe sangue do nariz, depois de uma rasteira – ele estava jogando bola e um dos colegas deu-lhe uma rasteira maliciosa, fazendo-o cair de cara no chão, nada aconteceu ao garoto que o derrubou, já que tinha sido apenas uma “falta”, um acidente de jogo, na visão do professor. Claro, ele não jogava bem, mas não chegava a ser o pior, e ainda assim era escolhido depois do garoto de óculos, e uma vez até mesmo depois do menino que não tinha um braço, mas mesmo assim sempre ajudava o time, e mesmo assim... E ele até tentava se defender, e era bem forte para a idade, mas ainda tinha medo de machucar os outros colegas, então sua defesa se baseava em tentar esquivar-se dos golpes desferidos pelos garotos. E era uma cena legal de se ver, já que mesmo enquanto apanhava de três garotos ele mantinha a calma e conseguia evitar grande parte dos golpes, e só dava algum soco, chute ou rasteira quando era extremamente necessário, e mesmo assim, tentava machucar o mínimo possível os colegas, que não estavam realmente se importando com o cuidado que Marcos tomava a cada soco que desferia. Então estava feito, tinha ganhado também a fama de “bunda mole”.
    Mas sempre tinha sido muito inteligente. Tirava sempre boas notas na escola, era muito esforçado e quieto. Isso não parecia grande coisa, já que nunca lhe pediam nem cola na hora das provas. Mesmo ele tirando sempre a nota mais alta da sala – como uma constante – nunca era pra ele que pediam cola, era pro garoto de óculos (que não era grande coisa, aliás, aquele garoto não sabia nem fazer conta de multiplicar, enquanto Marcos já conseguia com facilidade fazer todas as expressões numéricas que eram passadas na lousa). No começo, a avó de Marcos tinha lhe dito que todos sempre pedem cola pro garoto mais inteligente da sala. E que se ele fosse esse garoto, logo iriam falar com ele por causa das colinhas. Claro que foi-lhe dito também que era errado ter amigos apenas por causa de colas, pois esses que pediam cola não eram realmente amigos, mas apenas pessoas com interesse, que logo que fosse findada a prova iriam voltar a ignorá-lo. E mesmo assim, quando o garoto viu que ele era esse garoto, o mais inteligente, não conseguia pensar em outra coisa senão que logo as pessoas iriam começar a falar com ele, mesmo que fosse apenas pra pedir cola. E ele pensou que assim que o fizessem, ele daria as respostas da prova, e conseguiria falar um pouco com os colegas, que então iriam ver que o garoto não era esquisito, e que era bem legal. E então ele iria ter alguma chance de ter amigos... Óbvio que isso não aconteceu, pois mesmo com notas altíssimas ele continuava sendo ignorado por todos, até por Adriana, uma menina loira e baixinha, que era muito simpática com todos, mas desprezava-o sem ter sequer algum motivo.
    Marcos tinha visto Adriana logo que entrou pela primeira vez na sala. E ouvia tudo que ela dizia, sabia de cor seu nome completo, seu número da chamada e até mesmo as matérias que ela mais gostava. E ela nunca teve a decência de pelo menos dizer-lhe um “oi”. Eles eram quase vizinhos, já que ela morava num prédio amarelo de apartamentos – que ficava a uns cem metros de sua casa – e, portanto a via todos os dias enquanto ia para a escola, ou quando saia para andar de bicicleta pelas redondezas (pelas redondezas significava andar até o fim da rua e voltar quantas vezes ele agüentasse, só pra conseguir olhar algumas vezes para Adriana). E mesmo assim, ele nunca nem olhou para ele.
     Mesmo sem amigos o tempo passou, e então o “bolinho de banana” chegou até a quarta série. E mesmo nem aquele gordinho sendo amigo dele, ele continuava com a calma que sempre tivera. Aprendeu que quanto mais cara de mau ele fizesse, menos seria provocado. Então, acabou virando o “bolinho-de-banana-esquisitão”. Ele começou a ser, em vez de constantemente provocado, evitado pelos colegas. Marcos não oferecia perigo nenhum, e se alguém tentasse falar com ele, ele logo abriria um sorriso. Mas sempre que via os garotos que faziam de tudo para tirá-lo do sério por perto, esboçava uma cara de “sai pra lá”, que no começo foi ignorada, e usada para zoá-lo ainda mais. “Você tem dor de barriga, cara?” – gritava um garoto, “só pode ter comido bolo de banana demais” – completava algum outro, para completar a piada. E assim foi por algumas semanas. Até que uma vez ele, em vez de perder a calma, deu um soco forte o suficiente num garoto maior, e o fez cair sentado. Tinha dado o soco no peito, pra não machucar demais, porém ainda assim tinha feito forte o suficiente, talvez desse modo os garotos parassem. E funcionou, em parte. O garoto que tinha tomado o soco contou tudo para a professora – Profª. Marina, uma professora com cara de japonesa, com uns cinqüenta anos, e que falava “poblema” – e esta chamou a avó de Marcos, e os pais do outro garoto. E então, por mais ironia do destino que pareça, Marcos tomou uma advertência por ter dado um só soco, enquanto o outro garoto, Yuri, nunca tinha tomado sequer uma bronca por perturbar o garoto durante três anos. Não que tenha afetado muita coisa, mas foi claramente injusto, e Marcos sabia disso, mas de nada adiantava contar, nessa hora, todas as coisas que Yuri já tinha feito pra ele. Iriam dizer que ele estava querendo levar Yuri – a vítima – junto pro buraco com ele. Como se fosse tudo invenção dele, pra não se ferrar sozinho. E mesmo que Marcos não fosse assim, os adultos “responsáveis” não tinham como saber, já que a maioria das outras crianças fazia exatamente isso. Então calou-se, e aceitou a advertência e a surra que tomou em casa.
     As provocações físicas pararam, pois a diretora da escola – Dona Sônia – tinha dito que ficaria de olho em Marcos, e qualquer coisa que acontecesse ao garoto seria rapidamente apurada, e todos os envolvidos seriam punidos caso ela “sequer pensasse em sonhar” que Marcos não fosse o único envolvido. Mas as verbais continuavam. Aquelas indiretas e que continuam cruéis. Sempre escrevendo “bolo de banana” na lousa, ou então fazendo referência aos apelidos do garoto em conversas que tinham o volume propositalmente aumentado, para que Marcos ouvisse. E voltaram os esbarrões e todas as outras provocações que tinham sido abandonadas. Tanto é que virou hábito dele juntar todos os cadernos, lápis e canetas do chão, sempre que chegava à sala de aula. E ele nada poderia fazer, imagine tomar uma suspensão? Ele não era garoto de tomar suspensão, era demais pra ele. Tudo que ele fazia era ignorar, o máximo que podia. Porém, algumas vezes, ele não conseguia agüentar, então pedia licença da sala, e tentava ao máximo, segurar o choro no corredor. Ele arregalava os olhos o máximo que podia, e não deixava cair uma lágrima sequer, era a maior demonstração de valentia que ele podia dar, não deixar uma lágrima cair no meio dos outros. E ele muitas vezes teve que sair às pressas para o corredor, para que as poucas lágrimas que escapavam conseguissem cair longe da vista de todos aqueles rostos que sempre se mostravam ansiosos para qualquer demonstração de fraqueza por parte de Marcos.
    Ele parou de andar de bicicleta por ai, não queria mais passar na frente do prédio de Adriana, não estava mais interessado em passar intervalos no pátio da escola, não jogava mais futebol, não falava mais com professores e muito pouco com a própria família. Passava a maior parte do tempo brincando sozinho num terreno baldio ao lado de sua casa, ele era um exército de um homem só. Tinha uma espada de madeira e pregos que ele mesmo tinha feito, e um escudo que era uma tampa de panela roubada da cozinha de sua avó, e então ele brincava por horas em silêncio, deixando que apenas sua imaginação falasse. E na escola, ele descobriu que poderia passar os intervalos na biblioteca, onde ele ficava em silêncio, já que lá era “desabitado” – excetuando-se Madalena, uma senhora que parecia ter uns oitenta anos, e estava sempre lendo algum livro gigante, com capa de couro e empoeirado. E naquele silêncio, ele se via cercado de livros, que o divertiam muito. Tantos os contos de fada que ele leu. Tantas as histórias incríveis que ele tinha visto acontecerem bem na frente de seus olhos, e esse era o alento que ele tinha por cerca de meia hora, até ser forçado a voltar para o mesmo inferno que ele tinha que agüentar na sala de aula. Mas logo que conheceu a biblioteca, ele fez uma carteirinha, e pegava um livro novo quase todo dia. A carteirinha era uma cartela, com quinze páginas, e a cada livro pego, lido e devolvido no prazo, ele ganhava uma carimbada em uma das páginas, e quando completava-se a cartelinha, ele podia pegar um livro de uma estante reservada para ele, estante essa que tinha apenas livros novos, e que não estavam disponíveis em nenhuma outra parte da biblioteca. Logo o menino tinha vários livros daquela estante reservada, e lia como se aquilo pudesse ajudar-lhe de algum modo a escapar do pesadelo que vivia, e que não conseguia fugir de modo algum. E incontáveis eram às vezes que Profª. Marina lhe chamava a atenção, pois ele parava de fazer as cópias e contas para ficar lendo no meio da aula, muitas vezes usando um casaco com capuz, pra não ter que ver os meninos fazendo troça dele.
     Marcos tinha recém feito dez anos, e como presente, ele ganhou vários rabiscos em seu caderno, nas folhas que seriam usadas pra copiar a matéria. E esses rabiscos estavam dizendo coisas do tipo “quem diria que iriam esquecer um pedaço de bolo por tanto tempo na geladeira”, ou “deve ter um gosto muito ruim esse bolo, pois está abandonado faz dez anos”, fora as tantas outras folhas que tinham sido apenas sujas de cola ou de caneta. Ele conseguiu um outro caderno, e ganhou toda a matéria perdida em folhas copiadas à mimeografo pela professora.
    Até que certo dia, Profª. Marina propôs para a classe uma avaliação diferente. Era o terceiro bimestre, e a classe já tinha feito duas avaliações de português onde se faziam apenas perguntas sobre a matéria, e sobre textos que estavam na própria prova, e a professora queria tentar algo novo. Pensou que os alunos já estavam suficientemente maduros para escreverem uma redação como prova. Mas não apenas uma redação sobre algum tema – como era a lição de casa – em vez disso, eles escreveriam uma historia inventada por eles mesmos. Não teria um limite de linhas, nem seria proposto nenhum tema. Os alunos logo se animaram, poderiam escrever uma historia de apenas cinco linhas, e assim poderiam ficar com os dedos mais tempo enfiados nas calças, ou então poderiam comer mais cola. Marcos, claro, logo se animou com essa possibilidade, pois nunca tinha pensado antes em escrever ele mesmo, uma historia igual às que ele lia nos livros. Nunca tinha passado por sua cabeça a possibilidade de, criar ele mesmo uma historinha, e depois lê-la, e então encantar-se com alguma aventura que ele mesmo tinha criado. Por esse motivo ficou demasiadamente ansioso com o dia da “prova”.
     Estava marcada essa prova exatamente para uma semana após aquele dia. E durante essa semana, Marcos nada fez além de pensar em como seria sua história. Ficava pensando nela até antes de cair no sono, e chegou a sonhar com algumas possibilidades. Pensou tanto em como criar a historia, e como seria ela, que escreveu mais de dez durante essa semana, todas rejeitadas por ele. Todas “faltavam alguma coisa”. Mas ele não desistia, muito pelo contrário, a cada historia que fracassava logo após ser lida por ele mesmo, dava mais ânimo ainda, pois ele mesmo sabia que não era do dia pra noite que ele conseguiria ficar bom em imaginar todas as coisas que eram colocadas em livros. E no dia em que chegou a “prova”, ele estava tão ansioso que mal conseguia sentar-se na cadeira. Suas mãos tremiam, e ele mal conseguiu apontar o lápis que tinha separado pra usar apenas para aquele dia.
    A professora passou distribuindo folhas de almaço para toda a classe. Logo após colocou o cabeçalho na lousa. Marcos já estava adiantado, estava com o cabeçalho pronto antes mesmo de a professora começar a passá-lo na lousa. E então viu toda a sala, rindo debilmente, viu bolinhas de papel voando, e viu os olhares maldosos que estavam soltos no ar. Mas ele concentrou-se, suas mãos pararam de tremer, e então ele pôs-se a escrever quase que freneticamente. E as linhas brotavam com uma facilidade incrível, o garoto estava quase embriagado com a sensação que tinha. Escrever tinha se tornado tão – ou mais – prazeroso que a leitura. Pois ali ele tinha total liberdade, ele decidia quem morria, qual era a cor do dragão, e se a princesa era bonita. Era uma infinidade tão grande! E ele logo se deu conta dessa infinidade, logo percebeu que aquela era alguma coisa que valia a pena. Alguma coisa que, se o fizesse chorar, valeria tanto a pena que ele o faria mesmo assim.
      Ele não se deu conta de que o resto da sala tinha terminado a redação, enquanto ele ainda estava no meio. Todos tinham entregado as folhas de almaço para a professora com vinte minutos de antecedência (prazo mínimo estabelecido por ela para a entrega), enquanto Marcos estava totalmente envolvido pela escrita. Sentava-se no meio da sala, e por esse motivo, virou alvo de várias piadinhas uma vez mais. Foi chamado de “retardado”, “lerdão”, “tartaruga” entre outros, mas ele nem ouviu-os. Escrevia o melhor que podia, e dava a própria vida em cada palavra que escrevia, e não estava importando se sua mão doía – ainda que, por um momento tivesse desejado que fosse ambidestro – ele continuava escrevendo, e quando tocou o sinal, ele teve tempo apenas de colocar um ultimo ponto final em sua historia. Ele tinha escrito nas quatro páginas da folha que lhe tinha sido entregue, e sua mão latejava demais, pensou que se tomasse uma martelada na mão nem iria mais sentir, de tanto que a mão doía. Chegou a imaginar que esta estava inchando. Mas estava satisfeito com a historia, ainda que não tivesse lido. Mesmo que nem lembrasse da metade do que tinha escrito, ele estava muito sereno, tanto que passou o dia inteiro sendo chamado de vários nomes, e não conseguiu ouvir nenhum, os colegas soavam como se estivessem aos pés de uma montanha, enquanto Marco estivesse no topo... Ele estava muito alto para consegui ouvi-los.
      Foi pra casa o garoto, e eram apenas três e meia da tarde quando ele dormiu, exausto. Acordou apenas para jantar, e voltou para sua cama, e dormiu um sono sem sonhos, pesado como uma pedra. Sua avó costumava dizer que quando alguém dorme muito exausto, nem mesmo um trovão é capaz de acordar essa pessoa, e talvez ela estivesse certa, pois quando Marcos acordou era uma manhã chuvosa, mas ele não tinha ouvido nenhum trovão enquanto dormia, logo ele que acordava com o barulho de um alfinete caindo no chão.
         Arrumou-se normalmente, tomou café, e foi andando para a escola. Não estava mais tão animado, estava pronto para devolver o décimo quinto livro de sua quinta cartela, pegar outro livro novo e esperar que ele não fosse riscado e sujo de cola-refeição pelos outros colegas. Entrou na sala, foi para seu lugar, e antes de sentar, olhou para a cadeira, que estava, como de costume, cheia de sujeira, e mais cola, e a cola formava o desenho de um pênis, “clássico, porém velho”, ele pensou. Trocou a cadeira e sentou-se. Leu na sua carteira, que estava toda rabiscada várias palavras que foram no dia anterior usadas para apelidá-lo. Mas não as reconheceu, ele não tinha ouvido coisa alguma na manhã anterior, mas logo reconheceu que aqueles deveriam ser alguns dos novos apelidos que ele teria, não que ele se importasse. Tinha um livro novinho para ler. Era o livro que ele mais queria ler, desde o último que tinha lido. “Atlantis, a cidade submersa” era o nome, e tinha uma capa azul com o desenho de homens-peixe nadando em direção a uma cidade que era protegida por uma cúpula que parecia ser de vidro. Ele pensou que aquela cidade era como ele, um aquário ao contrário, isolado no meio de um monte de água. Os outros alunos ainda estavam chegando, e o ignoravam, como normal. Logo entrou a professora, anunciando que iria devolver todas as historinhas, que já estavam corrigidas. E que uma tinha sido escolhida, e esta seria lida por ela, e depois todos os alunos iriam copiar a redação escolhida no caderno, e fazer exercícios sobre ela. E isso serviria como uma nota extra para os que não tinham se saído bem na redação. “E não são poucos que precisam do ponto extra”, disse ela. E logo começaram a gritar “O retardado vai precisar”, “Aposto que esse ai vai ter que copiar a redação sete vezes pra conseguir nota zero”. Marcos ficou vermelho.
    A professora entregou todas as redações, inclusive a de Marcos, que tinha um grande “10,0” acompanhado de uma carinha feliz e um parabéns abaixo da nota. Enquanto ele olhava sua nota, escutou vários outros resmungando sobre a nota, e gritando que tinha havido uma injustiça tremenda. E a professora disse “todas as redações foram lidas e corrigidas, vocês não são mais terceira série pra ganharem nota de graça!”. Ele pensou que dispensaria a carinha feliz da prova por uma foto da sala naquele momento. Então, Profª. Marina colocou ordem na classe, fez todos se calarem, e começou a ler a redação escolhida. Primeiro leu o título, que era “O pacote de bolachas e cachorro cinza que gostava de chocolate”, e depois de olhar pra classe e sorrir, ela começou, com empolgação, a ler a redação:
    Era a historia de Marcos, ele sabia, e conteve, com maestria, um sorriso orgulhoso que ele sentiu vontade de dar. A historia falava sobre um garoto que tinha comprado um pacote de bolachas recheadas, e que tinha sido atacado por um buldogue cinza enquanto comia as tais bolachas, então inicia-se uma briga entre o menino, o cachorro, e um gato intrometido, pelo pacote das bolachas. E a historia falava das mordidas de formiga que o garoto tomava, das picadas de abelha que sofria o gato, do arranhão que o cachorro sofreu no olho. E no fim, os três – cachorro, garoto e gato – percebem que quase todas as bolachas voaram do pacote enquanto lutavam, e sobrava apenas uma, e então, decidem dividir a ultima bolacha em três partes iguais, e quando tiram a bolacha fora do pacote, e vão dividi-la, passa uma pomba e rouba o ultimo biscoito das mãos do garoto. E os três ficam a ver navios enquanto a pomba, se exibindo toda em cima de uma árvore, se delicia comendo aquela “preciosa delícia que tinha sido roubada” do garoto com tanto facilidade.
     Marcos olhou em volta, e viu que a sala toda ria da historia. Todos estavam maravilhados e entretidos com as peripécias do garoto, com a força do cachorro, com a astúcia do gato, e estavam também revoltados com a atitude de gatuna daquela pomba, alguns até gritavam “que maldita essa pomba, eu subiria naquela árvore e pegava minha bolacha de volta!”. E então a professora, que estava vermelha de rir da história, pediu “Os aplausos que essa historia merece!”. Todos aplaudiam vigorosamente, alguns assobiavam. A sala fazia muito ruído. Provavelmente todos da escola deviam estar ouvindo aquela quarta série barulhenta, que estava embriagada com uma comédia tão bem feita. Então a professora falou:
 _Aplaudam o colega de vocês que escreveu essa historia! – e todos se entreolharam, mas como nenhum deles assumiu a autoria daquela historia, a professora foi forçada a falar novamente – Foi o colega de vocês, Marcos, que escreveu essa historia, aplaudam-no, ele merece.
   E então, a sala que ainda estava agitada se calou. Não ouvia-se nenhum aplauso, nenhum assobio, nenhuma voz. Parecia que tinham matado todos naquela sala. E a professora estava agora com um sorriso solitário na frente da sala. Enquanto todos, sem expressão, apenas encaravam o garoto sentado no meio da sala. Nada foi falado por cerca de dois minutos, e Marcos estava quase tendo que ir para o corredor uma vez mais. Até que Yuri foi o primeiro a falar:
_Eu nem gostei desse lixo de historia mesmo, parece uma daquelas que você lê num livro velho e cheio de poeira que nem Madalena.
   Então a sala voltou a falar, porém todos concordando com Yuri. Marcos olhou para a para a professora, que não sabia qual reação esboçar. Ela mandou a sala se calar, e logo todos estavam copiando a redação de quatro páginas de Marcos, e respondendo os exercícios. Todos, menos o autor, que teve o privilégio de ficar lendo durante a aula. Todos reclamaram durante a aula sobre o tamanho da redação, mas Marcos os ignorou, aquela era a vingança que ele podia ter após três anos e meio quieto e agüentando aqueles idiotas.
   Mas na saída, cerca de sete meninos cercaram Marcos numa parte mais quieta de uma rua que ele pegava para voltar para casa, e espancaram-no até cair, logo após isso, abriram suam mochila, pegaram o livro de capa azul, rasgaram todas as páginas, picaram-nas e sujaram de cola tudo aquilo que tinha sobrado dos cadernos e da mochila – e até do próprio garoto. E depois correram. O garoto se levantou, e estava voltando para casa, manco e todo sujo de cola e papéis, quando conseguiu ver de relance, andando logo atrás dele, Adriana, que tinha um sorriso malvado estampado na boca. Enfim ela tinha reparado nele.




segunda-feira, 29 de abril de 2013

Ela era linda, mas Henry nem viu seu rosto.


        Não me lembro muito bem que horas eram quando cheguei ao aeroporto de Miami, Estava com o relógio biológico fora de sintonia com tudo que estava lá fora, sabia disso porque eu tinha visto pela janela do avião que estava escuro, mas eu me sentia como se mal fossem seis da manhã. Não que isso fosse de grande importância, mas sabia que de certa forma era bom sinal eu estar vendo aquele céu negro. Aquele céu me dizia que eu já não estava tão longe do destino final e de algum tempo relaxando, apenas cerca de seis horas – no máximo seis e meia. Lembro de sentir meu coração palpitando logo que o avião pousou, tamanho o nervosismo. Não era pra menos, eu não estava muito afim de ser mais um brasileiro deportado. “Você não foi aceito em nosso país, portanto terá de pegar o próximo avião com destino à São Paulo, e nunca mais poderá voltar aos Estados Unidos da América!”. Foi tudo que imaginei quando saltei do avião. Bom... Se fosse assim, eu pelo menos tinha estado por quinze minutos em solo americano... melhor que você.
      E mesmo não lembrando qual número o relógio local marcava com certeza eu lembro da moça gordinha que me aguardava. Uma das coisas boas em ser menor e estar viajando sozinho de avião é o tratamento que te dão. As aeromoças te paparicam sem a menor cerimônia, como se você realmente fosse importante - eu poderia me acostumar. Seja um cobertor a mais, ou um cookie, eu na vejo problema... Mas, como sempre, temos os pontos fracos. Ou no caso “o ponto fraco”, pra ser mais exato. É que a paparicarão passa dos limites, você tem de estar sempre acompanhado, é imperativo... sempre! No avião é mais sutil, mas sempre tem alguém, pelo menos, de olho em ti. Você vai ao banheiro, ou coçar as costas, e se olhar de soslaio, vai ver alguém esquisito te observando (só faltam binóculos...). No avião é mais tranqüilo. Você ainda pode ir no banheiro sozinho, ou ir na cozinha pedir mais uma lata de refrigerante. Nada demais. Mas espere chegar ao aeroporto, parece que quando se chega ao aeroporto, é normal pensarem que deve ter drogas na sua mochila, ou que tem algum plano para matar o presidente, escondido no bolso interno do seu casaco. É sério, dá vontade de fugir, de tanto que te tratam como alguém que quer fugir.
   No meu caso essa moça gordinha era Nancy, vestia um uniforme branco e azul marinho, com o emblema do aeroporto bordado no peito, calçava sapatilhas pretas, e tinha as bochechas rosadas, e aparentava ter uma imensa paciência e boa vontade naqueles um metro e sessenta. No caso, ela seria minha acompanhante, mas não desse tipo, ela era encarregada de me guiar e conduzir enquanto eu estivesse no aeroporto. Sim, eu tinha uma babá. E ela não desgrudava de mim. Eu parava pra amarrar os cadarços do meu sapato, e lá estava ela quase me engolindo com os olhos. E quando eu inventei de dar uma rápida parada pra comprar uma lata de coca-cola, quase vai pro espaço minha paciência, ela me tratava como se eu fosse um garoto de cinco anos e com paralisia cerebral – nada contra quem tem cinco anos e tem paralisia cerebral, ok? – era insuportável, apesar dela não ser agressiva, dava a impressão de que a qualquer momento iria pular em mim (meu gato faz a mesma coisa quando vê um passarinho). E lembro-me de ouvi-la falar ficar à ponto de rir. Ela forçava o inglês mais simples que conseguia, com as palavras mais bobinhas que conseguia encontrar, ainda por cima usava um tom de jardim de infância, como se eu realmente fosse retardado – não que eu tenha um inglês impecável, mas eu poderia entender melhor do que aquilo. Mas como era minha primeira viagem, eu fiquei temeroso, talvez não fosse a melhor coisa dizer “pare de me tratar como retardado, eu sei colocar uma nota de dólar numa máquina de refrigerante!”, isso com absoluta certeza não passaria a imagem de um jovem educado e cordial. E eu precisava passar essa imagem pra não ser mandado de volta à Tihuana-todos que vêm de baixo dos EUA são obrigatoriamente deportados pra Tihuana. Então era melhor continuar a ser tratado como retardado pra depois conseguir dar umas voltas em Hollywood, não que isso tirasse a sensação de quase ser um retardado.
    De qualquer forma, ela não desgrudou de mim, por qualquer motivo que fosse, pelo menos andamos um pouco no aeroporto, era imenso, montes de corredores e saguões, terminais, halls, lojas e muitas cadeiras pros que esperavam o vôo. Tinha até um trem... E nós o pegamos. Nancy me disse que era só pra ir pro outro lado do aeroporto, que andar demoraria demais, e me cansaria. Maldita seja a preguiça humana, colocar um trem pra te levar pro outro lado do aeroporto... Em que ponto chegamos?
    O trem não era grande, era quase como uma miniatura dos metrôs de São Paulo. De certa forma, tinha algo familiar neles, talvez o cheiro fosse o mesmo. Andamos três estações. Descemos na “estação três” e andamos mais um pouco pela imensidão do aeroporto. Tinha uma iluminação forte, se não fossem pelas grandes janelas que davam vista pra pista de pouso, eu não saberia se era dia ou noite. E era, diferente do aeroporto de Guarulhos, estava quase vazio, e viam-se uns poucos passageiros perdidos por lá, como se fosse baixa temporada (ainda que faltassem cinco dias pro Natal). Isso aumentava ainda mais a sensação de deserto daquele lugar, eu teria me sentido quase sozinho se não fosse por Nancy babando em mim.
      Assim que descemos do trem, Nancy me levou para um lugar cheio de guichês, disse-me que eu tinha que fazer uma entrevista antes de “entrar em solo americano”. Sim, eu poderia ser deportado se não respondesse exatamente aquilo que eles queriam que eu respondesse. Eu fui direto pra um guichê do tipo “preferencial”. E lá tinha um cara, com farda de policial (ou guardinha de aeroporto, quem sabe). E ele falou de modo rude:
_O que você veio fazer nos Estados Unidos da América? - falou o guardinha.
_Passar as minhas férias.
_Quanto tempo você vai ficar?
_Até meio de fevereiro.
_Você estuda? Se sim, quando voltam suas aulas?
_Sim, eu estudo, e elas voltam no meio de fevereiro – voltavam antes, mas vai que... Né?
_Hmmm, Onde você vai ficar? – eu não entendi nada do que ele tinha dito nessa frase, então olhei pra Nancy, que compreendeu que eu não tinha entendido, e então repetiu a frase com um pouco mais de calma.
_Vou ficar em Los Angeles, com um amigo.
_ Ok, pode passar – e então ele carimbou alguns documentos e os entregou para Nancy.
     Eu estava faminto, então perguntei se não tinha algum lugar decente por ali. Sabe como é, comida de avião não enche de verdade, e eu precisava de alguma coisa pra me segurar de pé. Então, como se finalmente eu tivesse falado alguma coisa que fosse útil, ela sorriu, e apontou com a mão uma lanchonete logo à nossa frente. Era uma lanchonete bonita. Tinha aspecto daquelas que aparecem em filmes dos anos sessenta, ou setenta, aonde os jovens bacanas iam. Aqueles lugares onde tinham vários carrões estacionados na parte de fora, enquanto os caras com grandes topetes e garotas com vestidos de bolinha sentavam nas mesas, comendo seus hambúrgueres e tomando seus milkshakes enquanto conversavam. Era realmente pra ser uma lanchonete assim, não tinham carrões estacionados, era dentro do aeroporto, e não tinham os jovens bacanas com jaquetas de couro dentro, aliás, tinha só um cara perdido lá, numa mesa com uma só cadeira, e ele não demonstrava muito interesse nas coisas ao redor. Mas era bem decorada a lanchonete. E enquanto eu pedia, reparei nas paredes pintadas de branco, com quadros que eram fotos de carros antigos, nas mesas amarelas e nas cadeiras vermelhas. Eu pedi um clássico, um hambúrguer, um copo de coca-cola e uma porção de batatas fritas. Deram-me o copo, e apontaram a máquina onde eu deveria pegar meu refrigerante. O pedido não demorou, aliás, foi rápido demais, eu mal tive tempo de escolher uma mesa, e eles já estavam me chamando pra buscar a comida. Nancy deve ter achado que eu não era capaz de ir lá, e foi ela mesma, pegar a bandeja. Ela me entregou, e disse-me que faltava ainda cerca de uma hora e meia pro meu vôo partir, e que por esse motivo não era necessário que eu me apressasse. E não estava nos meus planos me apressar. Comi com uma calma de rei, e fiquei olhando pro corredor do aeroporto logo à minha frente. Engraçado. Vazio demais. No Brasil, qualquer lugar que você fosse iria parecer um formigueiro, e ali estava calmo demais... Nancy não comeu nada, e nem deveria comer mesmo, tinha aparência de quem comia ali todo dia. Mas ficou me olhando comer com muita atenção. Ainda bem que eu não me sujei com catchup, eu tenho certeza de que tinha um guardanapo na mão dela pra me limpar caso isso acontecesse. Eu terminei de comer meu hambúrguer e as batatas, e então, antes de sair, enchi meu copo mais uma vez, e então perguntei pra Nancy se teríamos de ir a algum lugar mais, ou se ficaríamos ali mesmo até a hora do meu vôo.
   Ela falou com aquele tom dela, que iríamos voltar a andar. Eu simplesmente comecei a segui-la. Voltamos aos corredores, e ela tentava imprimir um ritmo um pouco maior, claramente com traços de ansiedade, tão esquisitinha. “Estamos indo à sala de menores”, ela disse. E é claro que a imaginação foi a mil. Eu logo imaginei uma sala quadrada, com as paredes pintadas de cinza, e com a tinta descascando, um lugar totalmente deprimente, com cara de repartição pública, e lá teriam várias crianças e adolescentes, sentados em cadeiras de madeira, olhando fixamente pro chão, e completamente em silêncio, enquanto numa mesa sólida de mogno uma mulher velha estaria digitando num computador velho, e essa mesa teria também vários papéis, como se fossem processos. Eu fiquei completamente em pânico, eu preferia ficar na lanchonete vendo o cara esquisito comer aquele hambúrguer pela eternidade. Um lugar desses me dava arrepios. Eu não estava preparado pra tudo aquilo, sou claustrofóbico, e não curto detenção, e não é minha praia ficar uma hora esperando meu vôo num lugar daqueles. Não adiantou eu me afligir, pois pelo visto já estava bem próximo da tal sala. Eu vi uma placa que apontava pra direita, e dizia “Sala dos menores”. Que seja, eu não vou exatamente morrer lá dentro - espero.
    Mas, aquele dia se mostrava incomum, e manteu-se assim, e me surpreendeu mais uma vez. Tive uma surpresa quando entrei na sala, era quase o contrário daquilo que eu tinha imaginado. Era grande, muito bem iluminada, com paredes pintadas de verde, branco, e com desenhos de vários personagens de desenho animado, tinha sofás e poltronas vermelhas, duas estantes de livros, perto dessas estantes tinha uma grande mesa redonda com lápis de cor, giz de cera, e papel pra desenhar. Era igual uma sala de jardim de infância, a não ser pelas televisões de tela plana e os dois vídeo-games que lá estavam. Mas é claro, eu tinha acertado – em parte – num aspecto daquela sala. Tinha uma mulher, numa mesa grande atulhada de papeis, com um computador (novo) digitando freneticamente sem olhar pro teclado. Era uma mexicana, cerca de cinqüenta anos. Ela não tinha um olhar severo que nem gente velha geralmente tem, pelo contrário, parecia-se com uma vovó que diz que você está magrinho.
   Quando eu entrei na sala ela se levantou, e falou seu nome. Consuela. Ela vestia o mesmo uniforme de Nancy. Era realmente muito simpática, e não tentava falar um inglês mais simples do que era normal pra ela, e o sotaque dela fazia tudo soar de forma engraçada e honesta. Ela disse alguma coisa do tipo “agora quem te acompanha sou eu, rapaz, pode relaxar por ai, quando for a hora eu te chamo”. Despedi-me de Nancy, e como o garoto cordial que eu sou, agradeci a paciência que ela tinha tido comigo. Nancy riu, e disse que nunca tinha cuidado de alguém que não tivesse dado trabalho, eu tive que rir disso, vai que me mandam pra terra de Consuela, não queria ir pra Tihuana, muito quente e muito mexicano pra mim. Ela se virou e saiu, provavelmente babar no pescoço de algum outro coitado.
   Consuela já estava de volta a sua mesa, digitando no computador. Aquele tec-tec frenético era mais comum entre os jovens, mas ela digitava com grande maestria, devia fazer aquilo à tempos. Eu então pude voltar a ser quem eu realmente sou. Me dirigi apático a um sofá vermelho. Sentei-me e abri minha mochila, de lá eu saquei meu livro e notas de um dólar. “O crepúsculo dos ídolos” era o livro, quando fiz isso, Consuela me olhou esquisito. Eu era o único ali com um livro em mãos. Levantei e fui pegar um refrigerante num daquelas máquinas de um dólar. Coloquei a nota de um dólar e apertei o botão... Ouvi o som da lata caindo. Me virei e vi uma máquina de salgadinhos. Coloquei mais um dólar e peguei um Cheetos. Não que eu estivesse com fome, mas aquela sala de jardim de infância me dava tédio. E só então eu me dispus a prestar atenção em todos os que estavam naquela sala. Tinham dois garotinhos loiros, irmãos gêmeos, de uns sete anos, que estavam jogando vídeo-game. Tinha também uma menina mexicana de uns onze anos, sentada na mesa redonda, e olhando fixamente para uma foto, ela tinha uma expressão perigosa, do tipo que enfia um canivete na sua barriga se você tentar falar com ela... Não valia o esforço. Mas não foram eles que chamaram a atenção. Pois, logo que estava voltando pro meu lugar, com meu salgadinho e minha lata de refrigerante, notei uma das coisas mais lindas e intrigantes que eu já tinha visto na minha vida. Aquele espelho devia ter uns dois metros, e estava incrivelmente limpo, era quase como se eu estivesse andando em direção à mim mesmo, e como eu sou bonito... Devo ter ficado um minuto todo olhando o espelho (ou uma hora, quem liga pra tempo quando se vê alguém tão incrível quando eu mesmo?).
   Eu sentei no sofá, e comecei a comer o salgadinho. Era salgado demais, e sujou muito minhas mãos. Mas logo acabei o pacote e tomei meu refrigerante. Eu queria ler, mas minhas mãos não deixariam que eu lesse sem sujar todo o meu livro. Pedi à Consuela que me mostrasse onde era o banheiro, eu ia aproveitar a ocasião e tirar a água do joelho. Ela me pediu pra esperar na porta da sala “por um instante”. E então aconteceu algo que eu devia ter previsto. Um guarda chegou e falou que iria me acompanhar até o banheiro. Era tão difícil assim chegar ao banheiro? Ou eles achavam que eu realmente queria fugir? Tanto faz, eu já estava seguindo o guarda até o banheiro, ele me esperou na porta, enquanto eu usava. Pelo menos ele não entrou comigo... Lavei a mão, mijei, e lavei as mãos de novo – sou limpinho. Quando sai, o guarda esticou o pescoço pra dentro do banheiro (devia estar procurando alguma bomba ou drogas/ armas que eu devia ter largado lá). E me escoltou até a sala dos menores de novo.
   Quando eu cheguei na sala, tive uma surpresa que faz meu tédio sumir tão rápido quanto possível. Tinha uma pessoa a mais, sentada num banco de madeira junto à parede. Uma garota de uns quinze anos. Linda. Era japonesa, com certeza, parecia uma boneca, ou alguma coisa ainda mais bonita e perfeita. Tinha a pele muito branca, os cabelos negros e brilhantes que chegavam até o meio de suas costas, e os olhos... Aqueles olhos eram incríveis. Eram negros e profundos. E tinha um brilho perigoso no fundo daqueles olhos tão lindos. Como se tivesse alguma fera aprisionada ali. E com certeza entendia de moda. Pois apesar de estar viajando ela ainda estava impecável. Vestia uma camiseta do Motorhead, uma jaqueta de couro, uma calça jeans escura, justa e rasgada, e botas, que lembravam algo do tipo “botas de pirata”, pois tinham fivelas grandes e prateadas. Enquanto eu... Minha camiseta do Ac/Dc já estava toda amassada, meus tênis estavam velhos e desamarrados, eu tinha derrubado óleo de hambúrguer na minha calça, e também no meu casaco – sim, um charme, como sempre.
    Mas notei também, que apesar de estar impecável, e ser absurdamente linda, ela não se mostrava exatamente empolgada. Parecia, na verdade, que ela não se sentia muito bem, espero que não seja diarréia, ou alguma coisa que não seja sexy... Isso quebra o clima.
   E eu, como a doce pessoa que sou, tive de ir ajudá-la, sem segundas intenções, é claro. Eu bem sei que em alguns momentos as pessoas precisam de um abraço, um carinho, ou qualquer coisa do tipo... E porque não eu? Fui o mais rápido que pude para a maquina de refrigerante e peguei mais uma lata. Voltei e sentei-me ao lado dela. Abri o refrigerante, e pra puxar assunto, eu ofereci pra ela um gole de coca-cola (e é nessa hora que se espera que aconteça igual na propaganda da televisão, eu dou a coca pra ela, ela sorri, e depois de quinze segundos nós estamos nos beijando, sem segundas intenções, é óbvio). Ela me olhou fixamente, de maneira fria e ao mesmo tempo intensa, e por um instante eu me senti transparente, senti um enorme calafrio apenas com o olhar dela, e naquele mesmo instante eu pensei em abandonar toda e qualquer posição cavalheiresca que eu tivesse dentro de mim, e ir correndo pro sofá chorar igual uma garotinha sem sua barbie. Mas por algum motivo, qualquer estúpido motivo que fosse, eu não fui pro sofá. Eu fiquei lá, e abracei Nietzsche o mais forte que podia, e desejei que ele tivesse deixado o pobre e fraco Deus vivo, assim talvez ele pudesse me ajudar. De qualquer jeito, naquele momento era eu, Nietzsche e aquela linda garota que com certeza era uma super ninja que trabalhava pra máfia. Mas em vez de pular em mim, arrancar meus braços e enfia-los nos orifícios mais óbvios, ela só disse, com a voz mais doce que já tinha ouvido “não, obrigado”. A voz era doce, mas o tom era frio. E parou de olhar pra mim, simplesmente esqueceu de que eu estava ali, e voltou a fitar a parede oposta. Que diabos tinha acabado de acontecer?  Eu tinha de puxar assunto, era compulsório. “Muito legal sua camiseta”, eu disse, tentando parecer alguém com classe, com meu sotaque de brasileiro. Ela olhou pra mim de novo, me salva Nietzsche, joga seu bigode nela! E sorriu. Eu tive uma experiência de quase morte nesse momento, eu tenho certeza que meu coração parou. “Deus está morto, né? Eu logo logo também vou estar...”, pensei. E eu ouvi Nietzsche rir de mim. Era o sorriso mais perfeito que eu já tinha visto. Era a prova que eu precisava pra continuar puxando assunto. Mas depois de quase ter me matado, ela só disse um tímido “Obrigada”, e voltou a olhar para aquela parede... De novo. Quê? De novo? Eu fiquei muito intrigado com ela. Tinha alguma coisa muito esquisita com ela. Se fosse qualquer outro cara, tudo bem, eu entenderia se ela desse “um pé” e ignorasse, mas eu? É impossível resistir... Eu sou incrível demais pra você me dar um pé.  Devia só estar fazendo charme, sim, era isso. Ela me queria, eu podia sentir isso no ar, e eu até admirei ela por um instante, devia estar fazendo um esforço tremendo pra não me beijar ali mesmo. “Overkill é meu álbum favorito deles”, continuei como se nós já estivéssemos conversando há muito tempo. Agora sim, ela teria de me dar uma resposta decente. E logo ela começou a virar a cabeça, mais uma descarga de adrenalina, eu devia estar com minhas pupilas do tamanho de bolas de gude, e provavelmente estava tremendo. Mas ela só me fitou, e dessa vez não parou de olhar. Eu falei alguma coisa errada? Tinha cheetos nos meus dentes? Era outra banda na camiseta dela? Não, não – chequei os meus dentes – e não. Não fazia a mínima idéia de que atitude tomar. Não sabia qual tinha sido o erro. Eu me senti corar enquanto ela me encarava. Tinha a sensação de estar na frente de um estádio de futebol lotado de pessoas em silêncio e me encarando.
   Por sorte Consuela conseguiu me salvar. Ela viu, ainda por detrás do monitor, tudo que se passava ali. Então, quando ela viu que eu já tinha sofrido o suficiente, ela se levantou e veio até mim. Pronto, fui deportado. Vão me proibir até de pensar nos Estados Unidos. Eu cheguei tão perto de L.A... Quase lá!
   A mexicana parou na minha frente e falou:
_Ela não fala inglês, menino.
_Sério? – respondi.
_Sim, ela não entende você, menino, desculpa, devia ter te contado antes – disse a senhora. Eu estava a ponto de rir do sotaque dela, mas lembrei que o meu não devia ser muito melhor.
  Logo que Consuela voltou pro seu computador eu levantei, acenei levemente com a cabeça pra garota japonesa – que continuou a olhar a parede e não pareceu ver meu gesto. E voltei pro sofá vermelho de onde eu nunca deveria ter saído. Era o sofá mais distante daquele banco onde ela estava, mas ainda dava pra ficar olhando pra ela, e ela só perceberia se olhasse diretamente para mim. Comecei a ler, pra ver se me acalmava, não deu nada certo, eu lia duas palavras e tornava a encará-la. Fato é que li umas cinco páginas sem realmente entender coisa alguma. Não que fosse culpa do Nietzsche, era culpa daquela menina que continuava a ser bonita daquele jeito. Era quase tão bonita quanto eu.
   Eu parei de ler, porque uns dez minutos depois de ter ido pro outro sofá, e Consuela deu pra menina um celular. Ué, não sabia dessa, será que isso era parte do procedimento padrão deles? Eu já não tinha passado por uma entrevista suficientemente constrangedora? Todos os menores iriam receber ligações? Até aqueles dois garotinhos gêmeos? Não faz muito sentido, mas esses americanos não são uns bons exemplos de “pessoas que fazem sentido”, não depois de alguns aviões e prédios caindo... Eu não os culpo, todo cuidado é pouco, mas mesmo assim, ligar pros menores perguntando se esses eram terroristas não parecia uma coisa muito útil.
   Me perdi nesse raciocínio por um tempo, e quando voltei a prestar atenção no que ocorria naquela sala, eu vi a menina com os olhos vermelhos, e pela primeira vez expressando alguma emoção. Mas não que isso fosse bom sinal, se aquele rosto, sem nenhuma expressão já quase me parava o coração, o rosto dela a ponto de chorar fazia meu mundo desabar. Aquela carinha de choro era ao mesmo tempo a coisa mais linda e a coisa mais triste que eu já tinha presenciado. Ela desligou o telefone e desabou. Ela chorou igual uma criança. Ela soluçava e estava inconsolável, lembrou-me aquela garotinha do filme “Monstros S.A.”. Aquela cena me cortou o coração, mas, como eu não sabia dizer “relaxa ai, pô, isso ai passa” em japonês, eu continuei com a minha cara de bunda, fazendo de conta, pra variar, que eu não ligava. Deve ter dado certo, porque logo depois que ela desligou e chorou um pouco, a mexicana foi lá pegar o telefone, deu também uns tapinhas no ombro da menina. Que apesar de chorar, não fazia nenhum barulho, muito pelo contrário, continuava em silêncio e tentava não chamar atenção. Era a pessoa mais linda que eu já tinha conhecido. Ok, não. Essa pessoa sou eu, tudo bem, agora eu exagerei. Tudo bem que ela era linda, e se vestia bem, mas “ser mais” que eu é exagero.
  Fiquei naquela sala mais uns dez minutos, vendo a pobre garota soluçar, e aos poucos ir se acalmando, e imaginando o motivo de tanto choro. Que será que disseram pra ela? Será que vai pra Tihuana? Consuela se levantou da mesa e chamou meu nome. Disse que era pra colocar a minha mochila, pois teríamos de ir para a área de embarque do meu vôo, pois em cerca de meia hora, meu avião iria decolar, e como menor desacompanhado, eu tinha de ser o primeiro a embarcar. Peguei minhas coisas e dei uma última olhada pra menina. Ela me olhou de relance, mas fingiu não ter ficado triste por ter deixado o homem da vida dela escapar. Consuela me chamou de novo, já da porta da sala, dizendo alguma coisa do tipo “Pare de babar e ande logo, cara!”. Ela não tinha reparado que não era eu quem estava babando. Olhei-a uma única vez mais, e então virei-me para a tal mexicana que me encarava com uma expressão desgostosa. Ela era baixinha e redondinha, parecia mesmo uma vovó.
   Logo que nos afastamos da sala de menores eu me senti tentado a perguntar quem era a menina, e, é claro, perguntar o motivo de tanto choro por causa de uma ligação telefônica. E a mexicana, como toda boa mulher, começou a matraquear com todo fôlego que tinha, e com aquele inglês esquisito que tinha:
_A menina da sala é japonesa, veio passar as férias com os tios, que moram em Nova Iorque. Agora ela tinha que voltar pro Japão, o único problema é que não tem vôo hoje pro Japão.
_Até ai – eu disse – um dia a mais longe dos pais não mata, pelo contrário, te deixar um dia a mais vivo – nós dois rimos.
_O problema – recomeçou ela- é que não tem vôo amanha, nem amanhã, aliás, acabaram de dizer pra ela que não vai ter vôo a semana toda, e que não é certeza que tenha vôo na semana que vem. E já faz um mês que ela está ai.
_Um mês? Ela ta aí faz um mês? E porque não volta pros tios em Nova Iorque?
_Eles viajaram para a Europa. Parece que tem uma empresa ou algo do tipo lá.
_Entendo... Mas como ela come? Onde dorme? – eu devo ter feito umas setenta perguntas pra ela.
E ela, com calma, começou a responder:
_ Sim, está ai faz um mês, a companhia aérea paga tudo. Hotel, comida, e algumas outras coisas que ela precisa, lavanderia, por exemplo. Mas mesmo assim, não deve ser fácil pra ela. Sozinha num país estrangeiro, sem falar inglês, sem ter com quem conversar, e todo dia receber a mesma noticia. Ela é forte, eu mesma não conseguiria-.
   É tudo pago? Eu não teria problemas. Sozinho e sem conversar com ninguém? Isso é quase um sonho. Imagine eu, um mês longe dos meus pais. Sem aquele monte de gente me torrando o saco. Não sei porque ela chora tanto, eles até lavam a roupa dela.
  Eu teria dito isso pra Consuela, mas isso acabaria com a imagem de bom moço que eu tinha que ter pra não acabar deportado pra Cancun. Então eu fingi que estava triste.
_Isso é triste, ela parece uma menina boazinha.
_E é, não reclamou uma vez sequer, mas ela já não está mais agüentando – disse ela.
_É verdade, eu não agüentaria uma semana – eu sei mentir bem, isso é verdade. Mas não sabia que era bom assim... Cheguei a me convencer de que ficaria triste na situação da menina japonesa.
   Infelizmente esse não era o meu caso. O meu vôo sairia em vinte e cinco minutos, e eu estava cruzando os corredores daquele aeroporto, acompanhado da minha fiel escudeira, a mexicana Consuela. Íamos rápido por entre os saguões e corredores bem iluminados daquele aeroporto. Passamos por vários terminais de embarque. Conferi minha passagem, precisava chegar ao terminal quarenta e um, estávamos no trinta e três. Tranqüilo, vai ser tudo tranqüilo... Continuamos caminhando, ainda num ritmo acelerado. Eu, como menor desacompanhado, tinha que ser o primeiro a entrar no avião, como se fosse um retardado, assim eu entro primeiro e eles colocam o babador em mim... Que seja, pelo menos é só pedir e eu ganho outro cookie. Chegamos ao bendito quarenta e um. E olha que legal, o vôo iria atrasar.
   Tudo por causa do piloto, que não estava muito afim de voar. Disse que primeiro tinham que consertar a porta de seu banheiro particular. Palhaço... E ainda assim ele era o palhaço que iria me tirar do chão por seis horas, então era melhor que consertassem logo aquele banheiro, já que o piloto queria assim. Não quero morrer por causa de alguma coisa que o piloto comeu e não caiu bem. Imaginem “Avião cai porque piloto estava na fila do banheiro para passageiros comuns”, não... Não é bem assim que eu quero morrer.
   Tinha um balcão no saguão quarenta e um, então eu e Consuela nos dirigimos a ele. Era um balcão de informações, no momento, mas era inicialmente onde eles pegavam suas passagens, olhavam pra tua cara, e aí decidiam se você voava ou se tinha muita cara de terrorista pra isso. O cara do balcão era um homem negro de mais ou menos um e oitenta e cinco de altura, e ele trajava um uniforme diferente de Consuela, era uma paletó azul marinho, com a gravata vermelha e a camisa branca, tinha um lenço vermelho que parecia ter sido cuidadosamente dobrado e colocado no bolso do peito do paletó pela mãe dele. Logo que chegamos o cara começou a falar com ar superior e entediado. Ele devia ser o príncipe do saguão quarenta e um.
_O piloto se recusa a decolar sem que seu banheiro privativo esteja disponível. Nós teremos um atraso de mais ou menos uma hora. E esse garoto – olhou pra mim pela primeira vez desde que começou a falar – é o menor, certo?
   Não é que eu seja um cara violento nem nada, mas aquele sujeito me dava nos nervos. Todo metidinho a poderoso, eu devia enfiar um cabo de vassoura nele.
 _Sim, ele é o menor, por quê? – respondeu-lhe minha fiel mexicana, com um tom que mostrava que não era somente eu que me incomodava com a presença daquele sujeito. Willis era o nome que mostrava no crachá.
_Nada demais – disse Willis com ar desinteressado – é tudo do procedimento padrão.
   Puta que o pariu, ele deve achar que eu sou terrorista, ou então que tenho drogas enfiadas na bunda, era tudo que faltava, eu tento ir pra Los Angeles e enfiam uma câmera no meu rabo.
_Porque ainda estão de pé na minha frente? – recomeçou nosso príncipe – sentem ali naquele banco enquanto eu não chamo vocês para embarcar, ok?
   Então ele apontou para um banco, era logo atrás do balcão, assim ele não tirava o olho de mim. Mas, diferente do balcão que ficava de frente para o saguão, nosso banco ficava de frente para uma janela, uma grande janela que ia do chão ao teto daquele saguão, devia ter uns cinco metros de janela de cima abaixo, e ela substituía a parede. Ou seja, eu tinha uma visão de metade da pista de pouso, do avião que eu iria usar e de mais uns três.
_Fiquem aqui, e só levantem se for extremamente necessário, ok?
_Senhor, sim senhor! – respondi.
_Está certo – respondeu Consuela com seu sotaque. Por um momento eu pensei no porque de pessoas com sotaque tão forte trabalharem exatamente naquilo, sabe, num emprego onde tudo que se tem que fazer é falar. Mas eu gostava dela, era uma vovó mexicana bem tranqüila.
  Então eu comecei a observar aquele cara do balcão de informações, ele realmente devia pensar que era superior, não foi apenas comigo que ele usou aquele tom, ele falava com todo mundo daquele jeito, como se fosse o próprio Obama. Então ele derrubou uma caneta, e na primeira tentativa de pega-la chutou pra debaixo do meu banco, eu peguei a caneta, e enquanto ele vinha andando em minha direção reparei que ele estava com a braguilha da calça aberta, e que saia uma boa parte de sua cueca por ali. Era uma cueca verde de patinhos amarelos, e era impossível não reparar naquilo, pois com suas calças azuis, fazia aquilo quase brilhar, aposto que não fui o primeiro a reparar, e com certeza não seria eu quem avisaria da calça dele. E era, pra todo caso, uma bela cena, ele com aquela cara de tacho, de quem grita que é rico e tem um iphone, e ainda assim com as cuecas de fora. Já não se fazem esnobes como antigamente.
   Depois que ele voltou pro balcão, olhei para Consuela, ela estava pegando no sono. A idade chega, né? Ela estava com a cabeça pendendo pra frente, de um jeito muito esquisito, nada natural, acho que com a idade o corpo deve mudar bastante pra ela se sentir confortável com aquela posição. E eu vi que se ela continuasse naquela posição iria se babar toda, mas quem sou eu para acordar aquela pobre senhora, tão prestativa, e que me acompanhava de tão bom grado? Só o cara que tinha pago pra ela me acompanhar poderia fazer aquilo, e não acho que ele realmente esteja afim de acordá-la. E além do mais, eu simpatizava com ela, apesar do jeito doce, ela tinha cara de vovô que fazia bolo e depois ia treinar boxe e correr uma maratona. Era a vovó Clint Eastwood. Falava o suficiente, e se eu não comesse meus vegetais provavelmente ia tomar um tiro. E eu já tinha até memorizado o nome dela.
   Deixei a velhinha dormir, e guardei o livro na mochila, já que estava até essa hora estava socado no bolso do meu casaco. O livro estava meio amassado, provavelmente aquele bigodudo tinha pago o preço por não me ajudar, e além do mais, aposto que ele nada tinha a dizer sobre atraso de aviões e negros que não colocam a cueca dentro da calça.
  Então, depois de guardar o livro, lembrei-me de que tinha uma janela do tamanho de um trem na minha frente, alguma coisa pra prestar atenção... Pessoas, sempre elas. Dava pra ver todo mundo trabalhando lá embaixo, nos aviões. Devia ter uns cinqüenta caras trabalhando no avião em que eu iria voar. E eram todos parecidos, de capacete branco, colete alaranjado com duas listras verticais verdes fluorescentes, de calça jeans e botas. A maioria tinha uma barriga protuberante e barba por fazer, eram homens do trabalho, provavelmente não sabiam fazer outra coisa se não trabalhar e tomar cerveja.
   Tinha um grupo encarregado das malas. As malas vinham em containers brancos com o logotipo da empresa pintado neles. Eram puxados por um carrinho de aeroporto até próximo do avião, onde tinham esteiras. Essas esteiras levavam os containers, um por um até uma espécie de elevador, que nivelava com a entrada de cargas do elevador, e então tinha outra esteira que levavam eles pro fundo do avião, onde provavelmente alguém ia procurar alguns relógios e computadores.
   Tinha também outra turma, cuidando do reabastecimento do avião. O faziam usando uma grande mangueira amarela – que devia ser grande o suficiente pra passar uma pessoa por dentro. Eles colocavam a mangueira em algum lugar embaixo da asa, ai tinha um cara que apertava alguns botões, e logo depois ficavam conversando, tinha uns dez caras fazendo isso, aposto que dava pra fazer usando só três.
   Uns outros levando comida pra dentro do avião, outros checando os pneus, e ainda tinham alguns só pra andar de um lado pro outro sem fazer nada, usando quadriciclos vermelhos e coletinhos alaranjados. Era uma grande confusão arrumada, fiquei hipnotizado por uns quarenta minutos nisso, tentando ver exatamente quem era quem, e tudo que tinha que fazer. Até dei nomes pra eles. Tinha o Joe, o Jack, Nick, Greg, Chris, Lou, John, Bob, entre alguns outros. E eu sabia exatamente quem era quem. Enquanto isso Consuela chegava a roncar do meu lado.
   Perguntei para Willis se aquilo tudo ainda demoraria muito, e eles disse que agora o problema era na cozinha do avião – ótimo – e que agora teríamos de esperar mais meia hora. Que legal, eu realmente gostava daquele aeroporto, não estava com pressa de sair dali.
   E lá fora todos os caras de colete já tinham feito tudo que era preciso no avião, e a maioria tinha ido num carrinho esquisito pro outro lado da janela, e recomeçaram a trabalhar no avião do lado do meu. Menos Henry e Charles, que estavam sentados numa caixa de madeira, e fumavam cigarros enquanto conversavam. Provavelmente falavam de futebol, dinheiro, sobre as esposas... Ou então, eles poderiam ser atores e poetas, só esperando o sucesso chegar, já vi essa história antes.
   Logo a meia hora tinha se passado, e finalmente o cara das cuecas pra fora veio me chamar, e enquanto acordava a vovó ali do lado, eu notei que ele finalmente tinha tentado colocar a cueca pra dentro, mas ainda dava pra ver um pedaço que ficou preso no zíper. E finalmente depois de uma hora e meia, nós poderíamos embarcar – eu e os passageiros, a vovó fica. Consuela tava acordada, e deu pro Willis os meus documentos e as passagens, enquanto íamos até o balcão. Ele passou um leitor de código de barras na passagem e nos liberou. Consuela mandou que eu a seguisse novamente, e eu fiz exatamente aquilo que ela mandou.
   Fomos andando até um corredor de aspecto esquisito, ai me dei conta que era, na verdade, não um corredor, mas uma plataforma. E essa plataforma tinha sido erguida pelo caminhão que Henry tinha estacionado. Ainda bem que ele era bom motorista. Enquanto isso, as pessoas que estavam jogadas nas cadeiras do saguão começaram a se levantar, de modo que pareciam zumbis com passagens aéreas, e eu só escutava o barulhinho do leitor de código de barras, cada vez que lia uma passagem.
   Consuela entregou meus documentos, se despediu e virou as costas, e eu reparei que ela mancava da perna direita. Logo apareceu uma aeromoça boazuda – daquelas que aparecem nos filmes pornôs não que eu saiba exatamente como elas são, é que um amigo meu me contou – e pediu meus documentos e falou que eu parecia educado e sério demais pra ser um menor desacompanhado. Eu concordei. Levou-me pro meu lugar, e começou aquele discurso sobre como usar a máscara de gás – que ela disse ser oxigênio, mas eu aposto que era gás mostarda, sabe como é né? Melhor te matar antes do avião cair.  E ai depois falou aquela frase que faz os tarados terem ereção “Por favor, apertem seu cinto de segurança durante a decolagem”, é, agora eu entendo, estou apenas no meu segundo vôo, e já sei porque ninguém presta atenção naquela besteira toda. E outra, duvido que se fosse pro avião cair, deixar meu cinto de segurança ajustado iria me salvar, aliás, se fosse pro avião cair, eu preferia ter ficado olhando o Henry fumar sentado naquela caixa.
   _Senhor, poderia guardar sua mochila no bagageiro que se encontra logo acima da sua cabeça?- disse a aeromoça.
_Claro! Só me deixe pegar meu livro – respondi.
_ Tudo bem, pegue seu livro. Nossa, você é realmente um garoto legal, até lê livros, devia poder andar desacompanhado sempre – ela devia entender das coisas, e se não entendia, pelo menos ficava ótima naquele uniforme.
_É verdade, eu deveria – respondi já com o livro em punho.
   Ela mesma pegou a mochila e a guardou. O bagageiro se fechou com um “click”. Ela se despediu, e disse que estava “a toda disposição”... Aham... Espero que esteja mesmo.
   Abri o livro e procurei por alguma coisa do tipo “Como lidar com medos de altura”...
     Talvez Nietzsche tivesse alguma coisa pra falar sobre medos irracionais...nao que eu os tenha.