sexta-feira, 14 de junho de 2013

Dia dos namorados? Hmm, como eu pude me esquecer?



A praça da liberdade muitas vezes me lembra um deserto. Deve ser por causa do espaço aberto e plano, e eu vou lá geralmente quando está ensolarado, calor, e cheio de pessoas que andam de um lado pro outro como se fossem besouros rola-bosta. Curiosamente estava assim da última vez que eu estava lá, apesar das nuvens escuras que se aproximavam. Era mais ou menos onze e cinqüenta quando cheguei à estação de metrô que fica no centro daquela praça. Quarta-feira, dia dos namorados, não que na hora eu soubesse disso...

Meio-dia, e eu estava esperando meu amigo, Júlio. Tínhamos um plano. Parecia uma novela, mas era só um plano, e ele já estava atrasado. Gosto de muitas coisas, atrasos não é uma delas. Eu gosto de regras. Sempre tive um afeto especial por elas. E eu recém tinha lido “O Clube da Luta”, não me impressionei tanto pelo livro. Criativo, legal, umas frases bacanas pra ter impacto, mas niilismo nunca foi minha onda. Mas uma coisa me chamou atenção, uma coisa salvou o livro todo. Regras, ele falava de regras. Sete eram as regras, e apesar delas serem sobre gente estúpida se batendo, ainda assim eram regras. Isso me fez colocar num papel as minhas regras. Escrevi oito. Não cabiam apenas sete na minha vida.
I-) Tenha uma rotina, não a quebre.
II-) Seja pontual e honre compromissos.
III-) Não conheça pessoas novas.
IV-) Não fale nada útil, caso não seja extremamente necessário.
V-) Nunca é realmente necessário, portanto, silêncio é teu aliado
VI-) Seriedade anda de mão dadas com a chatice, e você fecha o círculo.
VII-) Mentir é obrigatório quando se tem interlocutor, e sentimentos são considerados como verdades.
VIII-) Nunca, jamais, em hipótese alguma quebre as regras, nenhuma delas.

Essas são as regras, e até o momento as três primeiras e a última já tinham sido quebradas. Eu suava, por causa do calor, do nervosismo, e ainda mais por ter quebrado meu conjunto perfeito de regras. Estava ouvindo Pink Floyd. “Jogando fora os momentos que fazem um dia tedioso”, dizia a música logo que David Gilmour começava a tocar. Não jogue momentos fora, é contra as regras. Mas Júlio não entendia minhas regras, sempre dizia que era baboseira de gente velha. Eu sou velho, ele que não entende.

Meio-dia e cinco, nada de Júlio. O plano era o seguinte. Saímos da escola onze e trinta, ele pegava o irmão dele na escola ao lado, enquanto eu ia de metrô até a Liberdade. Ele iria até sua casa, e deixaria seu irmão lá mesmo. Iria para a Liberdade, e onze e cinqüenta nos encontraríamos na praça. Regra um quebrada. Ele não trocaria de roupas, não comeria, nem sequer respiraria dentro de sua casa, ele iria para a Liberdade. Mas ele estava dez minutos atrasado. Como as pessoas não entendem muito bem o quanto minhas regas são importantes, eu tolero cinco minutos de atraso, ele estava dez. Isso era muito mais do que o tolerável. Regra dois tinha sido quebrada.

Não era o melhor dia da minha vida desde o começo. Estouraram o zíper de um dos bolsos da minha mochila novinha no metrô. Eu tinha comido aquele macarrão da escola. Ainda bem, quando eu espetei ele com o garfo amarelo de plástico ele quase me mordeu. Aqueles garfos sempre estão engordurados. E aquele macarrão não tinha me deixado legal, estava meio enjoado, e o calor não ajudava. Minhas roupas pareciam estar coladas no meu suor. Minhas costas estavam molhadas de suor, minha cueca estava apertando minhas bolas, e eu estava me coçando por causa da sensação de aperto. Quinze minutos atrasado e eu no Sol.
Ah, como pude me esquecer. A terceira regra. Ela também tinha sido quebrada. Minhas três principais estavam mortas. Eu me sentia horrível por isso, mas eu tinha lido que uma bomba que não explode não tem motivo pra ser feita. Talvez essas regras fossem bombas. Eu preferia elas inteiras, eram mais bonitas de serem admiradas. Maldito seja o facebook. Três semanas, três regras. Coincidência, claro. Era uma foto engraçada. Ela tinha postado uma foto com uma lhama grande e branca, mais bonitas que os grandes cavalos de raça que corriam em hipódromos. Mais bonita que... mais bonita que as minhas regras. Eu tive que mandar uma mensagem. Começou normal, ela gostava de lhamas também. Eu gosto mais, é claro, mas o assunto rolou. E por três semanas nós conversamos. Todo dia. Mais de três mil mensagens. Foi-se a regra três. E eu não conseguia acreditar que, depois de três semanas com a regra quebrada ainda nada de ruim tivesse me acontecido. Me causou uma grande dúvida sobre a legitimidade do meu sistema. Amanda era seu nome. Era bonita, sem ser exageradamente bonita. “Eu não teria vergonha de sair na rua com ela”. O papo era bacana. Ela disse que gostava de ler. É, não teria vergonha.

A idéia do plano tinha sido dela. Não gosto de planos. Era, pra ela, simples, só buscá-la na porta da escola, levá-la em casa, conversar um pouco. Eu não queria conversar, acho que gostava dela. Vinte minutos atrasado. Dentro da estação tinha uma máquina que vendia garrafas de refrigerante, água e salgadinhos. Dois reais por uma garrafa d’água, que seja. Sorvia a água enquanto esperava Júlio. Ele não podia ter demorado tanto, não era possível. Planos não são legais, mas são compromissos, então há de se honrá-los. Amanda estava nos esperando, eu tinha certeza. Tudo tinha ido por água abaixo. Viu? Quebre as regras, olhe agora como tudo está, dia de sair é Domingo, não Quarta-feira.

Com trinta minutos de atraso ele chegou. Seis vezes o tolerável. Eu realmente o considerava demais. Senão teria ido embora após cinco minutos. Júlio tinha trocado de roupas, e estava com um pacote de salgadinho na mão. Ótimo, da regra dois tinha sobrado só o papel que estava na minha carteira do Batman.
_Vamo logo, cara. Cê ta lerdo? – ele falou, ainda de longe, como se o atrasado fosse eu.
_Já estamos atrasados. Ela nem está mais lá.
_Claro que está, eu liguei pra ela, tá te esperando.
_Então vamo rápido.

E fomos o mais rápido o possível. Demorou cerca de oito minutos até chegarmos lá. Já era quase meio dia e quarenta quando chegamos. Lá estava ela. Eu estava suando de nervoso, não pelas regras, mas por vê-la. Era mais bonita que nas fotos. E sorriu quando me viu. Um dia de sorte? Regras podiam ser descartadas? Talvez, por aquele sorriso... talvez. Ela estava ainda na frente da escola dela, me esperando. Júlio tinha visto ela ainda de longe. Visão não é uma das minhas virtudes. Conseqüentemente ele foi o primeiro a falar com ela, pra me deixar por último... como um gran finale das comprimentos. Um “e aí” e um beijo no rosto. E então ela me abraçou. Regras? Quem precisa delas? Esqueceria as regras de qualquer coisa por aquele abraço.
_Oi, Bruno, como é que tá? – perguntou Amanda, era a primeira vez que escutava a voz dela, combinava perfeitamente com ela. E o cheiro de seus cabelos, vão ficar pra sempre na minha memória.
_To tranqüilo – respondi, tentando não parecer eufórico, não deve ter funcionado, ela riu. A risada dela era alta, e percebi que ela gostava de falar alto. Eu não falo alto, é horrível. Tenho nojo de quem grita. Ou melhor, eu tinha, pois, a partir de agora, eu também pensaria em começar a gritar. A regra cinco teria de ser repensada.

E então fomos escoltando-a até sua casa. Não era tão longe. Quinze minutos andando. Minhas costas doem quando eu fico em pé por mais de meia hora, ou então quando ando demais. E à essa altura elas pareciam chiar e ranger de tanta dor, mas eu estava segurando a mão dela. Quem liga pra dor, hein? Fomos conversando coisas banais. Principalmente comentando as conversas na internet. Sabe como é, eu não levo muito jeito com pessoas novas. Regra três tem motivos para existir, e não é só por causa disso, tem alguns outros, mas isso não é importante do lado dela. Júlio parecia ter mais assunto com ela do que eu. Normal, ele é treinado nisso, passou a vida fazendo isso. E talvez, prestando atenção na conversa deles eu conseguisse achar algum nicho, e então conseguiria fazer ela olhar pra mim. Mas eu me contentava em apenas contemplar a imagem de nossas mãos juntas. Era definitivamente algo realmente incrível, que valia mais que regras bestas.

Quando chegamos na frente do prédio onde ela morava, ela perguntou se alguém queria água, ela subiria e iria pegar. Júlio não é do tipo contido, basicamente mandou ela subir. Ela foi, rindo. Estávamos na parte de fora do prédio, que fica numa rua bastante inclinada. O prédio dela tinha duas portas antes de se chegar ao saguão. Uma era feita de barras de ferro, e a outra parecia madeira pesada, ou até mesmo ferro pintado, pra parecer madeira. Ela tinha desaparecido quando Júlio falou:
_ É, cara, parece que hoje é um dia bom.
_Né, eu quebrei metade das minhas regras e nem morri.

Júlio riu. Ele não leva as regras à sério, eu levo. Ou pelo menos levava. Quando Amanda voltou trazia uma garrafa e um copo de plástico. A garrafa estava suada de tão gelada que estava a água que continha. Ela tomou o primeiro gole. Até tomando água ela parecia bonita. Me pergunto até hoje o motivo de ter reparado nisso. Eu enchi o copo novamente e tomei-o todo de uma só vez. Então Júlio pegou o copo, a garrafa, e encheu ele mesmo, rindo como se aquilo fosse algo fora do comum. De certa forma era. Ele tomou meio copo, e então jogou o resto fora.
_Cê cuspiu na água, né, filho da puta?
_ Só um pouco – respondi.

Amanda riu alto mais uma vez, e me lançou um daqueles olhares que quase me fazem desmaiar. Eram profundos, negros, brilhantes e felizes aqueles olhos. Incrível como eu não pensava em nada enquanto ela me olhou. A sensação de tempo era descartável. E então ela desviou o olhar, como se quisesse me fazer vontade. Ela queria, e tinha conseguido.

Eu não agüentava mais ficar em pé, tive de me sentar, Júlio se sentou, e então ela sentou do meu lado. E então voltou a conversa. E novamente Júlio era o centro das atenções, ele é bom com isso. Mas eu participava do assunto, na medida do possível, mas a regra seis é mais parte de minha personalidade do que apenas uma regra. Júlio não entendia as regras, e ele era engraçado, tem boas piadas sempre. Eu gosto de silêncio e de ser chato. Amanda pelo visto gostava de gente menos contida. Ela ria, e ria, e não parava mais de rir, e de vez em quando ria das minhas piadas, cada vez que seus olhos brilhavam e ela soltava uma gargalhada com uma piada minha meu coração vibrava. Mas as piadas acabam, mesmo as piadas de Júlio, mas mesmo quando acabavam ele sabia ser engraçado:
_Aí, acabou o assunto – disse ele olhando pro céu. Nuvens cinzentas e pesadas estavam chegando mais perto. Provavelmente logo encobririam o sol. Nem gosto de sol mesmo. Aquela estúpida bola de fogo que só me torra o saco. Mas que ele fique lá, não gosto de frio.
_Pois é, mas eu posso pegar meu violão e meu skate, oque vocês acham? – Amanda tinha solução. Ela parecia entender das coisas. Eu entendo das coisas.  
_Pode ser, ainda que eu não saiba tocar – respondi. E ela riu, mais uma vez ela riu. Respirar é difícil quando se está maravilhado.
_Ok, vou lá, já volto!

Júlio me olhou com cara de quem gostava de tudo que estava acontecendo. Ele é meu co-piloto. Eu não sou o carismático, mas ele faz com que eu pareça. E eu o sério, na maior parte do tempo ele é bem mais útil. Carisma é melhor que seriedade.
_É, parça, acho que ela gosta de você. – Era legal ouvir aquilo dele. Eu posso entender de Senhor dos anéis e Schopenhauer, mas ele entende de mulher, e se ele diz, é verdade. Ele dizia que a regra dele era não mentir. Eu nunca precisei mentir pra ele, mas achava admirável o quanto ele gostava de ser sincero.
_Espero que goste mesmo, acho que gosto dela, cara.
_Ihh, cara, sai dessa. Sem relações lembra? É uma das tuas regras!
_Eu já quebrei tantas, dane-se as regras.
_Então tá, já é. – o significado dessas palavras? Não entendi até hoje, mas nunca significava alguma coisa ruim.

Amanda voltou com um violão em uma capa, que estava feito uma mochila em suas costas, e um skate debaixo do braço direito.
_Vamos ficar na pracinha, ai ninguém enche o saco, minha mãe pode chegar daqui a pouco, aí vai mandar eu subir.
_Vamo logo então, caraio! - Júlio riu, Amanda também, eu fingi que tinha achado graça, forçar uma risada é natural...

Júlio pegou o skate dela, e foi um pouco na frente. Eu levava o violão, não podia deixar uma dama carregando peso, falta de educação, e como chato, eu tenho que me comportar como um velho. Velhos são chatos e cavalheiros, eu também tenho esse hábito. Ela pelo menos tinha me dado a mão de novo. Tão pequenas eram suas mãos. Eu olhava espantado. Pareciam delicadas demais para serem tocadas. Mas eu não as soltaria por nada.

Chegamos à pracinha bem rápido. Não conversamos no caminho. Eu me sentia bem. Apreciar o silêncio era ótimo, uma das minhas coisas favoritas. Ela não parecia gostar. Estava sempre olhando pro celular. E pro horizonte, observando as nuvens, ou qualquer coisa desse tipo. Era bem pequena, a tal praça. Nunca tinha ido antes, ainda que já tivesse andado o bairro da Liberdade quase todo. Talvez apenas não lembrasse. Sentamos nos bancos de pedra, e ela pegou o violão.

Júlio puxou assunto, e já tinha várias piadas. Eu estava relativamente quieto. Pra mim parecia tudo normal. Eu gosto mais de ouvir as conversas. São tantos os gestos quase imperceptíveis. E eu me divirto caçando-os, e cada olhar, cada movimento das mãos, dedos, pernas. Cada passada de mão no cabelo. É algo realmente divertido. Por exemplo, quando alguém que não é tão habilidoso com mentira tenta mentir, é possível descobrir apenas olhando para suas mãos. Colocadas nos bolsos, ou então inquietas, com os dedos sempre em movimento. Ou então pela expressão facial. É difícil pra quem mente te olhar fixo nos olhos, ou então não olhar fixo nos olhos. Sempre opostos. Mas Júlio não parecia mentir. Apenas se mostrava como sempre. Com movimentos exagerados, gargalhadas altas, e piadas que pareciam ter sido pensadas por horas. Amanda parecia natural, eu acho. Não era familiarizado com os gestos dela, mas apesar de estar à vontade, ainda mantinha os movimentos de forma natural, e tocava alguns acordes desconexos em seu violão. Normal. Enquanto a mim... Talvez eu parecesse desconfortável, entediado, ou mesmo preocupado, mas eu estava apenas me divertindo.

Júlio, que estava sentado em um banco de pedra um pouco mais à frente do banco em que eu estava sentado junto com Amanda, de repente se levantou e falou de um modo que insinuava que queria me dar espaço.
_Posso andar um pouco com o skate?
_Claro que pode, pra que pedir, só cuidado com a lixa, é nova. – respondeu Amanda. Eu não entendo de skates. Prefiro Bukowski.

Então meu co-piloto foi dar um volta por ai. Era minha deixa. Peguei o violão da mão dela. Coloquei-o no chão, em cima de sua capa. Sentei-me mais perto dela,  abracei-a e então tentei impor um tom mais sério na minha voz.
_Você sempre me mandava um monte de beijos...
_É, eu sei...
_Algum deles de verdade?
_Todos, ué. – ela riu desconfortavelmente – Mas acho que, sei lá, você tá muito perto.
_Isso é ruim?
_Não, que é... sei lá...

Sei lá? Quem diabos repete “sei lá” tantas vezes? Eu tinha notado que era um hábito, mas pensei que fosse mais uma daquelas coisas que você fala repetidamente pra ter personalidade, ou qualquer coisa desse tipo. Foco. Não gostava de quebrar mais uma regra, mas agora que a número quatro tinha sido quebrada junto com a cinco e a sete, eu já não tinha como escapar. Então que pelo menos eu tivesse um pouco mais de foco na conversa. Ah, a regra sete. Gostava tanto dela. Maquiavel, eu devia ser você, só então eu conseguiria mentir sempre. A sete sempre foi meu ponto fraco...
_Mas só escrever “beijos” não significa que você tenha realmente me dado um beijo.
_Eu sei, mas é que, sei lá, eu estou meio, sei lá. É que eu não... – ela estava cada vez mais desconfortável. Rápido demais? Não. Já estava vendo ela conversar por mais de uma hora e meia...
_Você não o que? Não quer me dar um beijo?
_Não é isso, eu não posso.

Me poupe, menina. Tem sapinho? Claro que ela podia, eu não posso estar ouvindo isso, com certeza é joguinho. Agora eu tenho que me virar, não sei jogar isso, prefiro Mario Kart.
_Não pode ou não quer?
_Não posso.
_Algum motivo específico? – Vai que ela tem sapinho. Eu não estou com vontade de pegar sapinho, se eu ainda tivesse regras, adicionaria uma outra “Não pegar sapinho ainda que o sorriso dela me deixe bêbado”. Seria a número oito, e então a oito viraria nove.  Tudo de praxe.
_Tem sim, é que, eu, érrr... Como posso te explicar? – Explicando, piranha, é só explicar. – Você apareceu faz pouco tempo, e eu, sei lá, estou confusa. Gosto de um outro menino.

Menino? Como assim? Eu não sou menino. Então você gosta de mim, e do outro que é um  menino? É isso? Com isso eu consigo lidar tranquilamente. Sou um homem. Tenho até barba, de vez em quando. Quando eu não tiro uma semana toda dá até pra ver de longe no espelho. É uma sensação incrível. Um dia vou ter uma barba do tipo Gandalf com Marx e... não, Marx não, né? Quem mais tem barba? Foco, cara, foco.
_Eu não sou menino. E me conta isso direito. Fale a verdade, é melhor que me enrolar. Se você não quer, é só falar. – Como assim? Não tem como você não querer... tem? Droga, eu pedi pra você falar a verdade. Mente se quiser, mas me beije, menina...
_Eu só não posso. Eu gosto do Júlio.

É, se alguma vez você viu um copo quebrando e teve a oportunidade de prestar atenção nos cacos que voavam, você vai entender como eu me senti. Mas eu comecei a rir. E falei baixo, mas de um modo que ela escutasse. “Droga!”.
_Não fica assim, você é um cara legal. E eu achava que gostava de ti, mas tudo aquilo que eu esperava de você o Júlio fez. E você é sério. Parece mau humorado.

Eu sou legal, não estou mau humorado. Porque tenho que ouvir isso?
_Mas eu tô confusa. Me sinto confusa demais pra dizer que não quero. Só queria que você tentasse, sei lá. Me ver como amiga.

Amiga? Amiga meu cú. Você disse que me amava pelo facebook, e mandou até carinha feliz, como assim amiga? E para de falar “sei lá”, ou eu meto a mão na sua cara. Eu vou recriar as regras. Número um : “piranha toma tapa na cara” dois: “Não quebra a regra um, ela é divertida”. Só. Fodam-se as regras, eu queria chorar, gritar, e ao mesmo tempo eu ria por dentro. Eu sempre soube que era chato, mau humorado e tudo mais. Mas ela devia entender. Ela disse que me amava. “Now our love is sour”. Interpol, não era pra você fazer sentido! “Love will tear us apart”, Joy Division errou, porque o amor só me despedaçou, ela não parecia nervosa, nem tremendo. Aliás, continuava normal, no máximo desconfortável, como se eu fosse um mendigo pedindo esmola. E estava fingindo que tocava violão nos dedos. A palheta ainda estava na mão dela.
_Como assim? – eu perguntei. Eu achei que você quisesse ficar comigo, e tivesse me chamado aqui pra isso.
_Eu não quero apressar as coisas, vamos com calma. – Eu pareço apressado? Eu to correndo? Eu devia te foder, mas eu ainda estou conversando, e você pedindo calma?.

Júlio chegou, estava suado, mas não parecia cansado. Como era magro, sua camiseta suava estava colada no corpo de um jeito nojento. Eu não conseguiria gostar dele. Deve ser as piadas.
_Voltei, seus puto! – E ele olhou pra mim, com um olhar do tipo “quantos beijos essa novinha ganhou?”, mas o meu olhar devia estar dizendo “Eu vou bater nessa piranha”.

Ele, de alguma forma entendeu.  E lá veio mais uma enxurrada de piadas. Ele não sabia que ela tinha mudado de alvo. Mas eu agora entendia. Ela estava olhando pra ele com os olhos faiscantes desde que estávamos conversando na frente do prédio dela. Naquela hora eu tinha pensado “Merda, eu queria ser o carismático”, e sem saber, eu tinha me tocado de tudo. Eu tinha, Amanda também, mas Júlio não parecia ter entendido, ou então estava mentindo. Ele não era de mentir. Mas era bom com piadas. E Amanda ria de modo cada vez mais exagerado. Mas, apesar de estar rindo, ela se levantou, e começou a falar.
_Eu tenho que ir pra casa, são quase três horas, e sei lá, eu tenho que comer alguma coisa, você me leva até em casa? Vamos Júlio? – Sua voz agora me dava nojo, e eu estava quase chorando. Isso era algo que cortava meus ouvidos e me dava vontade de ouvir B.B. King. Se eu soubesse chorar, eu já estaria me desmanchando. Mas eu sou muito homem pra essas coisas. Chorar é coisa de maricas.
_Eu levo sim, mas eu vou de skate, senão vai se foder. – Júlio falou isso com naturalidade, não era uma piada, mas ela riu, e como riu... Ele tinha entendido. E me olhou com uma cara de cachorro. Do tipo que falaria “puta que o pariu, fodeu...”. Eu só olhei, com os olhos vermelhos, e dei de ombros.

Aquilo foi horrível. Eu não sou bom com mentiras, e não choro. Ele sabia disso, e ela teria notado se pelo menos tivesse olhado pra mim. Mas parecia encantada por ele. É, eu devia ser o carismático. Em qual fila eu pego a ficha pra troca de personalidade? Eu não poderia ficar do lado dela, não conseguia. Foda-se, eu vou embora, pensei. Júlio não vai encostar um dedo nela depois de ter me visto daquele jeito. Ou então, se encostar, melhor assim, ela é legal e tudo mais... Quê? Não, ele não vai... mas se ele for... Não.

_Eu, é... já deu minha hora, e vai chover, eu tenho que ir embora. Dormir, jogar GTA, um monte de coisas. Falou aí. – Eu falei, com a voz trêmula. Eu agüentava. Mais um ou dois minutos. Calma, seja meticuloso. Você tem que jogar. “Y” é o botão de roubar carro. Mas não era simples assim.
_Não, brô. Vamo levar ela lá, ai vou embora contigo – Ele quase implorou pra que eu fosse. Eu não. Ela me dava nojo, eu a odiava. Eu cuspiria na cara dela. Lhamas fazem isso, eu posso também, não?
_Se eu não for vai dar problema...
_É, se tem que ir vai. Não fica enrolando – Eu devia ter metido a mão na cara dessa menina. Não sabe calar a boca, com essa gargalhada escrota. Eu gostava da voz dela.
_É, eu vou.
_Se cuida então, te vejo amanhã na escola? – Se ela tivesse olhado pra mim teria visto. Minha visão estava turva. Merda, deve ser um cisco no meu olho. Ou então essa piranha fodeu meu dia. “Normal, acontece sempre!”.
Então eu peguei minha mochila, levantei, me virei de costas, quase pisei no violão dela, e fui trôpego em direção à estação Liberdade – eu não sabia em qual direção devia seguir, e nem me preocupei, mas até aí, não devia ser tão longe. Ainda ouvi Júlio dizer “Puta que o pariu”, e Amanda com aquela voz... nojenta, maldita, irritante, linda... dizer “Que foi?”. Júlio respondeu mais alto que o normal, queria que eu escutasse “Nada não, vamo logo que eu tenho mais oque fazer”.

Virei a primeira esquina que vi, tinha que sumir do campo de visão dela. Não que adiantasse, ela não estava afim de mim mesmo, nem me olhava. Não chorei, não. Chorar é coisa de bichona. E aquela lágrima que caiu é culpa do cisco de Amanda que caiu no meu olho.

Eu estava meio perdido, meio desnorteado. Cansado, meu peito doía, respirar era pesado, e meu coração não conseguia bater com ritmo, eu o sentia vacilar. Sentia meu pés trêmulos, e minha visão ainda estava turva. Não havia mais nada a se fazer... mostrei o dedo médio pro céu. Pro sol, Apolo, Deus, Zeus, Silvio Santos, ou quem quer que fosse. Mas não tinha sol, as nuvens estavam ali. Sério? Isso é hora de chover? Era hora de chover. E a chuva não foi fraca. Começou a cair uma chuva forte, com os pingos grossos. Daqueles que quando batem na sua cabeça fazem você ficar tonto. Teve uma vez que eu vi um cara desmaiando na chuva por causa desses pingos, mas quem liga? Eu não veria se isso acontecesse agora, não consigo nem ver minhas mãos.

Fui andando na chuva por cerca de uns dez minutos, até conseguir achar a estação. Quando cheguei lá meus tênis estavam encharcados. Eram brancos e novinhos em folha, mas agora estavam molhados, sujos e cheios de folhas e até um papel de bala tinha nele, não pareciam mais tão bonitos. Nada parecia bonito. Peguei o Ipod no meu bolso, estava molhado, mas era à  prova d’água, há, pelo menos isso. Música aleatória. Quem sabe toca Safety Dance. Até I will survive eu aceitava... Sério isso? “The sky is crying”? É óbvio que o céu está chorando, Vaughan, eu não sou cego. “Can you see his tears rolling down the street?”... tem mais lágrimas do céu em mim do que na rua... palhaço, não sei pra que te escutar, no Texas todo mundo tem cheiro de cachorro. Se você não tocasse tão bem eu iria parar de te escutar.

Fui passar na catraca. Não tinha mais carga no meu bilhete único. Eu tinha ainda mais três reais. Vou comprar um bilhete, não quero recarregar o bilhete, tem fila. Eu não gosto de filas, nem de pássaros, nem cachorro, nem árvore grande, nem insetos... Comprei o bilhete e passei na catraca. Não me senti um astro do blues enquanto descia as escadas rolantes. Tirei a mochila e andei até um dos bancos que ficam nas plataformas. Abri a mochila, meus cadernos estavam molhados nas bordas. Abri numa página qualquer. Era na matéria de história. É tudo mentira mesmo, quem liga se eu escrever um poema aqui? Rabisquei alguns versos até o trem chegar. Quando saí do banco ficaram as poças d’água onde eu estava com os pés, e onde tinha sentado. Entrei no trem. Tinha uma moça lendo “Cartas na rua”, eu me lembro de ter lido esse livro, vai se foder você também, Bukowski. Terminei o poema. O título era “Um poema pra você socar no rabo”, mas tinha uma lágrima nele. Tinha vinte e dois versos, em quatro estrofes. Arranquei e folha do caderno, e não me incomodei de tirar também metade de um texto sobre sistema colonial. Peguei minha carteira do Batman, ela escorregou, caiu perto da mulher que estava lendo Bukowski. Ela pegou a carteira, olhou pra mim, sorriu e falou com ar de quem está feliz:
_Ó sua carteira.
_Me dê, e vá para os diabos. – Ela riu, deve gostar de Bukowski.

Peguei a minha carteira, abri, coloquei o poema, e então me distraí com aquelas telas que ficam no metrô. Alguma música muito alta abafava todos os meus pensamentos.
“A melhor escolha que fiz em toda minha vida foi ficar com você, te amo, Patrícia” – Ronaldo Schüller.
“Amor, a cada dia que passa eu entendo que fiz a escolha certa, feliz dia dos namorados!” – Patrícia Schüller.
Dia dos namorados? Como assim? Ahh, que ótimo.
_Moço, caiu um papel da sua carteira no chão, desculpa, não tive como não ler, mas são muitas regras, não?
Regras? Eu suspirei. Peguei o papel, desdobrei, amassei, e engoli ele.
_ Regra número oito: “Nunca, jamais, em hipótese alguma quebre as regras, nenhuma delas.”- falei olhando pra tela. Mas a moça do Bukowski respondeu.
_CREEEEDO, porque fez isso?
Eu levantei, peguei o livro da mão dela, e esperei o trem parar em alguma estação qualquer. Quando parou, abriu a porta e eu joguei a porra do livro no vão entre “o trem e a plataforma”.
_Entende agora?