sábado, 7 de junho de 2014

Troco meu Ipod por um Celular

                                                                  "Não sabes nem onde vais nem por que vais,
                                                                   passas por tudo, respondes a tudo.
                                                                   Não te matarão mais, por já  seres cadáver."
                                                                                                              Arthur Rimbaud

O gosto de limpeza da minha boca me dá nojo. Aliás, essa limpeza toda me dá nojo. Tomar banho, escovar os dentes, passar fio dental, desodorante, dar um gole naquele enxaguante azul, com cheiro de desinfetante de privada. Isso agora me deixa com ânsia de vômito. Me sinto assim desde que me tornei um adulto. Não sei bem como aconteceu, mas sei que agora nenhuma das possibilidades do meu futuro me parece promissora. A vida é muito mais fácil quando há felicidade te cercando. Cresci ouvindo essa bosta. Minha vó, meus tios, todos falavam isso, sem parar. Mas agora acho todos os meus parentes dignos de pena. Quanto mais felizes ficam, mais penso em desertar.
Mas nem sempre fui assim, sempre tem alguma coisa que joga o homem num buraco, e logo depois lhe cospe na cara. Mulher é geralmente o problema mais óbvio. Mas esse não é o meu. Pelo menos a única coisa decente que tenho é Luana. Aquela menina do último ano de escola. Mesmo à distância, ela me faz mais sentido do que muitas coisas. Faz mais sentido do que a escola, do que arranjar um emprego, do que pegar o ônibus, do que tomar café. Luana tem essa coisa que te joga no buraco, só pra esfregar na sua cara que ela é a única que pode te tirar dali. Nem sabe que faz isso… acho que nunca vou contar. Se fosse pra contar, teria contado naquele dia que quebrei o dente dela jogando futebol.
O Natal estava chegando, era dia quinze ou alguma coisa assim… lembro que passava meus dias em casa, escondido num canto, debaixo de cobertores, com uma lanterna na boca, e um livro aberto. As noites estavam abafadas,  o suor pingava,  escorria pelos meus olhos. Levava o dobro do tempo pra ler uma página. Mas não queria sair, era o que menos queria. Escondido. Do mundo, dos problemas, da minha mãe… ahh, mãe, se pelo menos hoje você pudesse ler… não, melhor não… acho que vou te culpar mais uma vez. 
_ Sai daí, moleque, vai fazer alguma coisa. – o tom de irritada era só pra me tirar do quarto, no fim, ainda era um doce de pessoa.
_Não, estou bem aqui… - não queria mesmo soar rude, mas fica dificil quando se está com uma lanterna na boca. Me senti meio gay na hora…
_Não tô pedindo, vai no mercado,temos que comer.
É óbvio que só estava me enxotando pra for a de casa, por mais que fosse por quinze minutos, ou meia hora… depende da fila do mercado.  Cospi a lanterna, coloquei um papel de bala no meio do livro pra não perder a página – como se eu perdesse a página. Página 157, segundo parágrafo, na quinta frase. Que livro! Simplesmente genial. Pena que não lembro qual é o livro.
_Tá bom, mãe, me dá a lista.
Ela me alcançou um pedaço meio amassado de papel. Tinha uma caligrafia bonita, ainda que escrita de maneira apressada demais pra merecer aplausos…. Sempre quis escrever bonito como ela. Nunca foi poética, mas uma caligrafia daquelas, pelos deuses!  Poderia simplesmente falar como o azul do céu me irrita, mas se fosse com aquela letra, eu me chamaria de Rimbaud.
Carne moída, cenouras, batatas, leite, macarrão e outra meia dúzia de coisas. Olhei pra ela. Tinha um olhar de compaixão. Me senti doente. Talvez eu estivesse doente, e na verdade esteja recebendo ajuda da única pessoa que se importa comigo. Ou então ela realmente está com fome… Questões de mais, macarrão de menos. Acho que tenho título pra mais um poema . Coloquei o primeiro par de calças que vi. Calcei meus tênis roxos. Coloquei aquela camiseta velha que ganhei do Arthur no meu aniversário. Achei meu iPod num canto, roubei emprestado os fones de ouvido do meu irmão, coloquei um casaco com capuz, baixei a cabeça e saí. Nesses últimos tempos andei substituindo meu nojo pelo Nirvana por uma profunda empatia com Kurt Cobain.  Ainda não aguento ouvir mais do que duas músicas, mas acabei descobrindo um cara feliz e de bem com a vida. Preciso de mais exemplos assim. O mundo todo precisa de mais exemplos que nem ele… que nem… esquece.
São Paulo à noite.  Sempre me deixou inebriado. Aquele som dos carros passando, as luzes em todos os lugares, o cheiro de fumaça, a música alta. Gosto desse cenário. Ser um desocupado as vezes tem suas vantagens, mas… aquelas pessoas dentro dos carros não percebiam o quanto de sorte que tinham. Sempre ocupados, com tempo de menos pra pensar, e lugares demais pra ir. Sempre coisas pra fazer. Gosto de pensar que gente assim tem sorte. É o que me resta, certo?  É isso ou ouvir comerciais sobre ar condicionado. Isso seria depressivo demais. Não aguentaria.
O caminho já era natural. Poderia ir até o mercadinho de olhos fechados. Cinco minutos pra ir, dez pegando as coisas, cinco na fila, sete minutos pra voltar.  Vinte e sete minutos. Nove músicas.  Não dessa vez, aproveitei que tinha saído de casa pela primeira vez em doze dias pra ir no mercado mais longe. Demoraria uma hora, mas… a noite estava linda. Nenhuma estrela no céu, e um caos ao meu redor. Sempre me senti muito mais sozinho no caos. O silêncio sempre me leva pra perto dos meus pensamentos, prefiro ficar longe deles.
Meu moletom cinza tinha cheiro de cigarro. Não devia ficar roubando cigarro da minha vó. Minha mãe sempre me disse que isso é feio. Sorte dela que não sou bonito mesmo.  Tirei meu Ipod do bolso. Parei a música. Atravessei a rua andando à passos largos. Cabeça baixa pra evitar que qualquer um me reconhecesse. Oras, do que eu tô falando, eu não tenho conhecidos ali.
Andei mais um pouco. Tinha o posto de gasolina, só dois carros lá, e os caras de uniforme amarelo e vermelho estavam num canto jogando jogo da velha. E tinha um num canto olhando uma revista de lado. Uma das mãos dentro da calça. Tinha a padaria, mas sempre tinha mais policiais lá do que clientes. Por causa dos ratos, porque o dono tinha matado a esposa, ou pelas brigas. Pensando bem, aquilo devia ser um puteiro. São Paulo ás vezes faz com que me sinta em casa.
_Victor! Cara… quanto tempo que não te vejo. – aquela voz. Senti meu coração disparar, e a vontade de me esconder de novo. Não tinha nenhum cobertor livre na rua. E não acho que aquele mendigo sujo na frente da padaria estivesse disposto dividir o dele e dormir de conchinha comigo.
_Oi... – olhei pra ela e sorri. Nunca gostei da minha voz. Me dá nojo. Mas aqueles olhos. Mataria duas dúzias de joaninhas pra poder mijar neles. Mas, que diabos. Não quero falar com ela. Não deveria ter atravessado a rua. Ela não me acharia. Porque não posso ter um segundo de paz?
_Onde você tá indo? Tá sozinho? Eu não conheço essas ruas. Vim ver umas roupas e – parei de prestar atenção nessa parte. A voz dela ainda saía, mas não me preocupei em prestar atenção nas palavras. Era tudo no som da voz dela. Soavam como notas de uma guitarra. Me arrepiei todo dentro do moletom.
_Tava indo pro mercado, minha mãe quer cenouras. E Abacates. E eu vou comprar camisinhas. Sim, tenho uma namorada, e nós costumamos, você sabe….  – Sim, uma namorada, linda, loira, alta. E nós nos amávamos. Sim, acho que consigo usar esse pensamento mais tarde, sozinho...  Meu Deus! Que olhos essa menina tem.  Desviei dela e continuei andando de cabeça baixa.  Sentia meu estômago pulando corda.
_Posso ir com você? O metrô é aqui perto, e eu vou pra casa da Pri, você tá na faculdade?– perguntas, perguntas … Sei fazer perguntas também.
_Voce tá de sutiã? – não foi a melhor pergunta.
_Na verdade não – e riu, sem graça – E você?
_Talvez – acho que falei sério demais. Luana arregalou os olhos e cobriu a boca com a mão.
Continuei andando. Ela me seguia, fazendo perguntas. Não estou estudando. Não gosto de ir no McDonalds. Odeio cinema. Não respondi nenhuma das perguntas. Quando finalmente cheguei no mercadinho, me despedi. Já não aguentava mais a presença daquela criatura do meu lado. Queria beijá-la. Ter filhos com ela. Ela seria minha esposa, porque eu não precisava da minha namorada russa. Sim, ela veio da Rússia ainda nova, a minha namorada loira. Seu nome era difícil demais pra ser  ficar falando por aí. Mas não precisava dela. Casaria com essa menina, com a pele cor de caramelo, com os labios cheios de batom vermelho, e aquelas mãozinhas. Ah… faria carinho naquelas mãos, e beijaria tudo que elas tocassem. Sim, case-se comigo. 
_Bom, manda mensagem pra mim. Meu telefone é 98635-2457. – repeti aquele número mentalmente até ter certeza de que tinha decorado. Que memória incrível essa minha. Devia comprar um celular também. Poderia mandar mensagem para todas as mulheres do mundo. Sete mil mensagens todo dia. 
_Eu vou sim. Pode contar comigo. Claro que vou mandar. Logo de manhã, mas não tão cedo. Tenho que ir pra academia. Levantar peso. Levanto muitos, vários, um punhado de quilos no supino. – nunca pisei em uma academia, mas todas as moliéres amam os marombas.  Estava com dor de cabeça já. Muita luz, e a voz dela me irritava.
_Tchau… e … - ela chegou perto de mim, ficou na ponta dos pés e me deu um celinho. Senti vontade de vomitar. Adrenalina correndo solta nas minhas veias. Empurrei ela pra longe.  Aquele gosto de batom. Não que eu tenha hábito de comer batom, essa fase já passou.
_Eu namoro! Como você se atreve a encostar essa boca imunda em mim – ela me beijou, caralho! Esse deve ser o dia mais foda da minha vida. Acho que vou virar vegetariano, comer coisa saudável. Será que ela quer um pedaço de bolo? Eu compraria um bolo todo pra ela.
_Desculpa, eu só… desculpa. – Olhou pra baixo, pros meus tênis. Acho que peguei pesado demais. Bom, ela que quis arriscar. Não devia ficar agindo assim. Gente imprudente geralmente se fode mesmo. Tá certo.
 Virei as costas, sem falar mais nada. Entrei no mercado. Ela ficou me olhando, do lado de fora, como se me esperasse. Feito cachorro. Mas não, o grande Victor não se importa com mulheres como essas. Elas apareciam aos montes, e se empilhavam.  Essa não me merecia. Nem mesmo todas as mulheres da Rússia merecem.
Quando olhei pra trás ela não estava mais lá. Como assim ela saiu andando? Oras, primeiro me roubou um beijo, depois saiu assim...  Mulheres nunca fazem sentido. Ainda tremia. E suava. E queria correr até o metrô. Mas não. Olhei para aquela lista. Meu Deus! Acho que vou ditar uma carta para minha mãe. Ela copia tudo. Já fizeram isso antes. Quem sabe eu fique cego, e tenha minha mãe pra escrever. Naquela caligrafia, com certeza seria um escritor de sucesso. Entrei naquele labirinto de corredores do mercado. Todas aquelas cores, e tantos nomes, e marcas, tudo isso pra molho de tomate. E as frutas, e tudo mais…  Mercado era um lugar infernal. Com aquelas luzes brancas, e o piso branco. E sempre cheio de gente...
 Peguei tudo que precisava.  Não peguei nenhuma camisinha.  Fui pro caixa. Era uma mulher negra e gorda. Sentada numa cadeira de escritório.  Usando uma camisa azul, com a estampa da logomarca do mercado. Mas a logomarca ficava distorcida por causa dos peitos dela. Os peitos dela estavam apoiados nas coxas. Ela tinha um pedaço de salgadinho no cabelo. Ou era queijo?  Estava suando, e ainda por cima tinha uma verruga preta no queixo. Parecia uma mulher adorável, a não ser pelas sombrancelhas, que estavam desenhadas num ângulo tão sinistro.
_Próximo! – ela sentia nojo de mim. Nojo da minha carne moída, nojo do pão. E do fato de que eu não comprava camisinhas.
_Está uma noite…
_Algo mais, “senhor”? - ela agora deu pra tirar com a minha cara. Ficar me interrompendo quando vou falar coisa sem sentido. É esse tipo de coisa que justifica meu racismo. Isso e também Luana.  Mas Luana não era preta, nem usava salgadinho pra prender o cabelo. Aliás, ainda tenho aquela presilha que roubei dela na quinta série. Tem até cheiro de condicionador… do meu. Só tomei banho com a presilha uma, ou duaz vezes. Isso é completamente normal pra quem tem cabelo caindo no olho. 
_Não. Que calor né?
_Vinte e oito e setenta. Cartão? – Uma nota de vinte e duas de cinco. Ela levantou a nota, pra olhar contra a luz. Até cabelo no sovaco tinha. Deve ser dessa nova remessa de feminista. Exceto por ela ser velha. Exceto por ela trabalhar. Exceto por ela ser negra. Nenhuma líder feminista é negra. A supremacia feminina ariana estaria comprometida… feminazistas? Ri com o pensamento de ver aquela mulher gorda com um bigodinho de Hitler… O bigode dela parecia mais o do Stalin… - O senhor tem setenta centavos?
_Não senhora. Sabe como é… andar com moedas… - fiquei sem jeito. Qualquer pessoa digna devia ter setenta centavos no bolso. Aposto que ela mesmo tinha setenta centavos, a Madonna tinha setenta centavos. O Bonno tem setenta centavos no bolso…
_Tudo bem. – ela me devolveu um e cinquenta junto com a notinha. Ganhei vinte centavos, talvez eu compre um celular, e mande mensagens pra Luana. Não tinha nenhum bigodinho de Hitler nas partes dela que eu tinha visto. Ainda não vi todas as partes.
Peguei as três sacolas numa mão e saí do mercado. Logo que sai, vi aquele mendigo da frente da padaria. Ele pediu um trocado pra beber. Dei um real pela honestidade, e cinquenta centavos por que odeio andar com moeda. Ficam tilintando, e caem quando voce tira as coisas do bolso. Moeda é coisa de pobre. 
_Aquela menina lá, é sua namorada?
_Não, amigo. Não mais. – respondi o mendigo. Tinha um monte de sujeira no cabelo dele, e ele provavelmente já tinha bebido. Deve ter um curso de mendigo. Como conseguir esmola, onde dormir, como nao morrer de cirrose. Esse daí era o primeiro da classe.
_Por que “não mais”? Ela tem mó rabão, cara. Foderia com ela pro resto da minha vida.
_Que?  - entendi o que ele falou, ainda que o bafo de cachaça tenha me deixado tonto. Só não conseguia acreditar naquilo. Como assim… Aleluia alguém que concorda comigo. É um puta rabão mesmo.
_Oh, desculpa cara… é que, sabe como é né. Eu já tive a minha época… - sai andando quando pressenti a historia de mendigo chegando. Mendigos são melhores que bibliotecas. Acho que as pessoas mais sábias do mundo são mendigos. Desde a Grécia antiga, qualquer pessoa respeitável faz questão de viver num barril e se masturbar na praça da Sé.  O mendigo andou mais uns dois passos e pediu esmola pra uma senhora velha. Pra ela ele pediu pra comer.
Odeio quando me dão três sacolas, um braço fica sempre mais cansado que o outro. Não dá pra arrumar nunca. Não andei tão rápido. Por algum motivo, minha casa era o último lugar onde eu queria estar. Mas cheguei. Abri o portão. Não sei pra que uma corrente tão grossa, e um cadeado tão pequeno. Aquilo não protege nada. Se alguém realmente quisesse entrar na minha casa e matar minha família, faria questão de deixar o portão aberto.
Soltei as sacolas na mesa. Corri pro quarto. Tirei meu moletom, minha camiseta e meus tenis. Me cobri. Não posso me cobrir. Tá muito quente. Fui na sala. Achei o celular da minha mãe…986… puta que o pariu, qual o resto do número? x