sábado, 13 de setembro de 2014

Mortezinha com Lavanda

    O rapper pertinho de seus "amiguinhos" de pelúcia A última vez que senti esse cheiro foi quando meu avô morreu. E isso já faz algum tempo. Doze anos se bem lembro. Gostava dele. Pelo que lembro tinha olhos bem vivos e um corpo meio morto... Acontece... eu acho. Nunca me disseram do que morreu meu avô, mas acho que aquele braço faltando tinha alguma relação. Não sou traumatizado pelo que aconteceu, mas esse cheiro ainda me deixa com nojo. Só espero ainda ter meus dois braços quando morrer. Não acho que vá morrer agora. Seria meio estúpido. Do tipo estúpido que sai no jornal, e faz o mundo rir de dó.
     Acabei nessa bosta de hospital quando chutei uma pomba e sem querer quebrei o pé. “Homem se revolta com pomba e morre. A causa foi pé quebrado”. Não soa tão mal, mas prefiro morrer dirigindo bêbado como qualquer homem de bem. Pena que não bebo e tenho medo de dirigir. Quando for pra morrer eu decido... E que ideia foi aquela minha. Chutar a pomba. Deveria ter tacado uma pedra como qualquer pessoa normal.Sabe como é. Pensar vai ficando mais difícil quando já se tem trinta e dois anos. Por isso tenho vinte e um e nao pretendo chegar até essa idade. 
     Não entendi o motivo de terem me deixado dois dias numa cama. “Risco de infecção generalizada”, pra mim isso soa como “achamos que você é um viadinho”. Não é como se tivesse me transformado no cara do meu lado. Pelo que ouvi, caiu de moto. Mas tinha diabetes. Tiram ele pelo menos três vezes por dia do quarto. E cada vez que volta tem um pedaço a menos da perna. Pelo menos ele ta sempre dormindo. Bom. Até onde sei ainda pretendem acordar o cara. 
     Também não sou tipo aquele cara da cama 705. Tiveram que amarrar o cara... Descobriu que tinha HIV semana passada... Acordou um dia, mordeu os dedos até arrancar as unhas e começou a jogar sangue nos outros Bom plano, ou quase. Só chama muita atenção. Seria mais facil jogar no suco. 
     Bom. Esse é o tipo de gente que faz o mundo andar. E não é que não goste daqui. É exatamente o contrário daquilo que não disse... Mas esse cheiro de lavanda não casa muito bem com “Senhor, o senhor tem que tomar mais soro, senhor” ou “Senhor, se o senhor não tomar isso aqui, vai perder o pé, senhor”. A enfermeira Judite era atendente de telemarketing antes de atormentar os doentes. Devia vender produto de limpeza pra hospital. E devia ser boa nisso, já que o hospital onde meu avô morreu também tinha cheiro de morte com lavanda. 
     Não é tão ruim, contanto que o Marcelo não atire sangue numa pistolinha d’água, e que a perna do dorminhoco não acabe. Só fico aqui sentado, comendo bolachinha água e sal com geléia de abacate. Esperando meu pé melhorar, ou o mundo acabar. Sem preferência. .

sábado, 7 de junho de 2014

Troco meu Ipod por um Celular

                                                                  "Não sabes nem onde vais nem por que vais,
                                                                   passas por tudo, respondes a tudo.
                                                                   Não te matarão mais, por já  seres cadáver."
                                                                                                              Arthur Rimbaud

O gosto de limpeza da minha boca me dá nojo. Aliás, essa limpeza toda me dá nojo. Tomar banho, escovar os dentes, passar fio dental, desodorante, dar um gole naquele enxaguante azul, com cheiro de desinfetante de privada. Isso agora me deixa com ânsia de vômito. Me sinto assim desde que me tornei um adulto. Não sei bem como aconteceu, mas sei que agora nenhuma das possibilidades do meu futuro me parece promissora. A vida é muito mais fácil quando há felicidade te cercando. Cresci ouvindo essa bosta. Minha vó, meus tios, todos falavam isso, sem parar. Mas agora acho todos os meus parentes dignos de pena. Quanto mais felizes ficam, mais penso em desertar.
Mas nem sempre fui assim, sempre tem alguma coisa que joga o homem num buraco, e logo depois lhe cospe na cara. Mulher é geralmente o problema mais óbvio. Mas esse não é o meu. Pelo menos a única coisa decente que tenho é Luana. Aquela menina do último ano de escola. Mesmo à distância, ela me faz mais sentido do que muitas coisas. Faz mais sentido do que a escola, do que arranjar um emprego, do que pegar o ônibus, do que tomar café. Luana tem essa coisa que te joga no buraco, só pra esfregar na sua cara que ela é a única que pode te tirar dali. Nem sabe que faz isso… acho que nunca vou contar. Se fosse pra contar, teria contado naquele dia que quebrei o dente dela jogando futebol.
O Natal estava chegando, era dia quinze ou alguma coisa assim… lembro que passava meus dias em casa, escondido num canto, debaixo de cobertores, com uma lanterna na boca, e um livro aberto. As noites estavam abafadas,  o suor pingava,  escorria pelos meus olhos. Levava o dobro do tempo pra ler uma página. Mas não queria sair, era o que menos queria. Escondido. Do mundo, dos problemas, da minha mãe… ahh, mãe, se pelo menos hoje você pudesse ler… não, melhor não… acho que vou te culpar mais uma vez. 
_ Sai daí, moleque, vai fazer alguma coisa. – o tom de irritada era só pra me tirar do quarto, no fim, ainda era um doce de pessoa.
_Não, estou bem aqui… - não queria mesmo soar rude, mas fica dificil quando se está com uma lanterna na boca. Me senti meio gay na hora…
_Não tô pedindo, vai no mercado,temos que comer.
É óbvio que só estava me enxotando pra for a de casa, por mais que fosse por quinze minutos, ou meia hora… depende da fila do mercado.  Cospi a lanterna, coloquei um papel de bala no meio do livro pra não perder a página – como se eu perdesse a página. Página 157, segundo parágrafo, na quinta frase. Que livro! Simplesmente genial. Pena que não lembro qual é o livro.
_Tá bom, mãe, me dá a lista.
Ela me alcançou um pedaço meio amassado de papel. Tinha uma caligrafia bonita, ainda que escrita de maneira apressada demais pra merecer aplausos…. Sempre quis escrever bonito como ela. Nunca foi poética, mas uma caligrafia daquelas, pelos deuses!  Poderia simplesmente falar como o azul do céu me irrita, mas se fosse com aquela letra, eu me chamaria de Rimbaud.
Carne moída, cenouras, batatas, leite, macarrão e outra meia dúzia de coisas. Olhei pra ela. Tinha um olhar de compaixão. Me senti doente. Talvez eu estivesse doente, e na verdade esteja recebendo ajuda da única pessoa que se importa comigo. Ou então ela realmente está com fome… Questões de mais, macarrão de menos. Acho que tenho título pra mais um poema . Coloquei o primeiro par de calças que vi. Calcei meus tênis roxos. Coloquei aquela camiseta velha que ganhei do Arthur no meu aniversário. Achei meu iPod num canto, roubei emprestado os fones de ouvido do meu irmão, coloquei um casaco com capuz, baixei a cabeça e saí. Nesses últimos tempos andei substituindo meu nojo pelo Nirvana por uma profunda empatia com Kurt Cobain.  Ainda não aguento ouvir mais do que duas músicas, mas acabei descobrindo um cara feliz e de bem com a vida. Preciso de mais exemplos assim. O mundo todo precisa de mais exemplos que nem ele… que nem… esquece.
São Paulo à noite.  Sempre me deixou inebriado. Aquele som dos carros passando, as luzes em todos os lugares, o cheiro de fumaça, a música alta. Gosto desse cenário. Ser um desocupado as vezes tem suas vantagens, mas… aquelas pessoas dentro dos carros não percebiam o quanto de sorte que tinham. Sempre ocupados, com tempo de menos pra pensar, e lugares demais pra ir. Sempre coisas pra fazer. Gosto de pensar que gente assim tem sorte. É o que me resta, certo?  É isso ou ouvir comerciais sobre ar condicionado. Isso seria depressivo demais. Não aguentaria.
O caminho já era natural. Poderia ir até o mercadinho de olhos fechados. Cinco minutos pra ir, dez pegando as coisas, cinco na fila, sete minutos pra voltar.  Vinte e sete minutos. Nove músicas.  Não dessa vez, aproveitei que tinha saído de casa pela primeira vez em doze dias pra ir no mercado mais longe. Demoraria uma hora, mas… a noite estava linda. Nenhuma estrela no céu, e um caos ao meu redor. Sempre me senti muito mais sozinho no caos. O silêncio sempre me leva pra perto dos meus pensamentos, prefiro ficar longe deles.
Meu moletom cinza tinha cheiro de cigarro. Não devia ficar roubando cigarro da minha vó. Minha mãe sempre me disse que isso é feio. Sorte dela que não sou bonito mesmo.  Tirei meu Ipod do bolso. Parei a música. Atravessei a rua andando à passos largos. Cabeça baixa pra evitar que qualquer um me reconhecesse. Oras, do que eu tô falando, eu não tenho conhecidos ali.
Andei mais um pouco. Tinha o posto de gasolina, só dois carros lá, e os caras de uniforme amarelo e vermelho estavam num canto jogando jogo da velha. E tinha um num canto olhando uma revista de lado. Uma das mãos dentro da calça. Tinha a padaria, mas sempre tinha mais policiais lá do que clientes. Por causa dos ratos, porque o dono tinha matado a esposa, ou pelas brigas. Pensando bem, aquilo devia ser um puteiro. São Paulo ás vezes faz com que me sinta em casa.
_Victor! Cara… quanto tempo que não te vejo. – aquela voz. Senti meu coração disparar, e a vontade de me esconder de novo. Não tinha nenhum cobertor livre na rua. E não acho que aquele mendigo sujo na frente da padaria estivesse disposto dividir o dele e dormir de conchinha comigo.
_Oi... – olhei pra ela e sorri. Nunca gostei da minha voz. Me dá nojo. Mas aqueles olhos. Mataria duas dúzias de joaninhas pra poder mijar neles. Mas, que diabos. Não quero falar com ela. Não deveria ter atravessado a rua. Ela não me acharia. Porque não posso ter um segundo de paz?
_Onde você tá indo? Tá sozinho? Eu não conheço essas ruas. Vim ver umas roupas e – parei de prestar atenção nessa parte. A voz dela ainda saía, mas não me preocupei em prestar atenção nas palavras. Era tudo no som da voz dela. Soavam como notas de uma guitarra. Me arrepiei todo dentro do moletom.
_Tava indo pro mercado, minha mãe quer cenouras. E Abacates. E eu vou comprar camisinhas. Sim, tenho uma namorada, e nós costumamos, você sabe….  – Sim, uma namorada, linda, loira, alta. E nós nos amávamos. Sim, acho que consigo usar esse pensamento mais tarde, sozinho...  Meu Deus! Que olhos essa menina tem.  Desviei dela e continuei andando de cabeça baixa.  Sentia meu estômago pulando corda.
_Posso ir com você? O metrô é aqui perto, e eu vou pra casa da Pri, você tá na faculdade?– perguntas, perguntas … Sei fazer perguntas também.
_Voce tá de sutiã? – não foi a melhor pergunta.
_Na verdade não – e riu, sem graça – E você?
_Talvez – acho que falei sério demais. Luana arregalou os olhos e cobriu a boca com a mão.
Continuei andando. Ela me seguia, fazendo perguntas. Não estou estudando. Não gosto de ir no McDonalds. Odeio cinema. Não respondi nenhuma das perguntas. Quando finalmente cheguei no mercadinho, me despedi. Já não aguentava mais a presença daquela criatura do meu lado. Queria beijá-la. Ter filhos com ela. Ela seria minha esposa, porque eu não precisava da minha namorada russa. Sim, ela veio da Rússia ainda nova, a minha namorada loira. Seu nome era difícil demais pra ser  ficar falando por aí. Mas não precisava dela. Casaria com essa menina, com a pele cor de caramelo, com os labios cheios de batom vermelho, e aquelas mãozinhas. Ah… faria carinho naquelas mãos, e beijaria tudo que elas tocassem. Sim, case-se comigo. 
_Bom, manda mensagem pra mim. Meu telefone é 98635-2457. – repeti aquele número mentalmente até ter certeza de que tinha decorado. Que memória incrível essa minha. Devia comprar um celular também. Poderia mandar mensagem para todas as mulheres do mundo. Sete mil mensagens todo dia. 
_Eu vou sim. Pode contar comigo. Claro que vou mandar. Logo de manhã, mas não tão cedo. Tenho que ir pra academia. Levantar peso. Levanto muitos, vários, um punhado de quilos no supino. – nunca pisei em uma academia, mas todas as moliéres amam os marombas.  Estava com dor de cabeça já. Muita luz, e a voz dela me irritava.
_Tchau… e … - ela chegou perto de mim, ficou na ponta dos pés e me deu um celinho. Senti vontade de vomitar. Adrenalina correndo solta nas minhas veias. Empurrei ela pra longe.  Aquele gosto de batom. Não que eu tenha hábito de comer batom, essa fase já passou.
_Eu namoro! Como você se atreve a encostar essa boca imunda em mim – ela me beijou, caralho! Esse deve ser o dia mais foda da minha vida. Acho que vou virar vegetariano, comer coisa saudável. Será que ela quer um pedaço de bolo? Eu compraria um bolo todo pra ela.
_Desculpa, eu só… desculpa. – Olhou pra baixo, pros meus tênis. Acho que peguei pesado demais. Bom, ela que quis arriscar. Não devia ficar agindo assim. Gente imprudente geralmente se fode mesmo. Tá certo.
 Virei as costas, sem falar mais nada. Entrei no mercado. Ela ficou me olhando, do lado de fora, como se me esperasse. Feito cachorro. Mas não, o grande Victor não se importa com mulheres como essas. Elas apareciam aos montes, e se empilhavam.  Essa não me merecia. Nem mesmo todas as mulheres da Rússia merecem.
Quando olhei pra trás ela não estava mais lá. Como assim ela saiu andando? Oras, primeiro me roubou um beijo, depois saiu assim...  Mulheres nunca fazem sentido. Ainda tremia. E suava. E queria correr até o metrô. Mas não. Olhei para aquela lista. Meu Deus! Acho que vou ditar uma carta para minha mãe. Ela copia tudo. Já fizeram isso antes. Quem sabe eu fique cego, e tenha minha mãe pra escrever. Naquela caligrafia, com certeza seria um escritor de sucesso. Entrei naquele labirinto de corredores do mercado. Todas aquelas cores, e tantos nomes, e marcas, tudo isso pra molho de tomate. E as frutas, e tudo mais…  Mercado era um lugar infernal. Com aquelas luzes brancas, e o piso branco. E sempre cheio de gente...
 Peguei tudo que precisava.  Não peguei nenhuma camisinha.  Fui pro caixa. Era uma mulher negra e gorda. Sentada numa cadeira de escritório.  Usando uma camisa azul, com a estampa da logomarca do mercado. Mas a logomarca ficava distorcida por causa dos peitos dela. Os peitos dela estavam apoiados nas coxas. Ela tinha um pedaço de salgadinho no cabelo. Ou era queijo?  Estava suando, e ainda por cima tinha uma verruga preta no queixo. Parecia uma mulher adorável, a não ser pelas sombrancelhas, que estavam desenhadas num ângulo tão sinistro.
_Próximo! – ela sentia nojo de mim. Nojo da minha carne moída, nojo do pão. E do fato de que eu não comprava camisinhas.
_Está uma noite…
_Algo mais, “senhor”? - ela agora deu pra tirar com a minha cara. Ficar me interrompendo quando vou falar coisa sem sentido. É esse tipo de coisa que justifica meu racismo. Isso e também Luana.  Mas Luana não era preta, nem usava salgadinho pra prender o cabelo. Aliás, ainda tenho aquela presilha que roubei dela na quinta série. Tem até cheiro de condicionador… do meu. Só tomei banho com a presilha uma, ou duaz vezes. Isso é completamente normal pra quem tem cabelo caindo no olho. 
_Não. Que calor né?
_Vinte e oito e setenta. Cartão? – Uma nota de vinte e duas de cinco. Ela levantou a nota, pra olhar contra a luz. Até cabelo no sovaco tinha. Deve ser dessa nova remessa de feminista. Exceto por ela ser velha. Exceto por ela trabalhar. Exceto por ela ser negra. Nenhuma líder feminista é negra. A supremacia feminina ariana estaria comprometida… feminazistas? Ri com o pensamento de ver aquela mulher gorda com um bigodinho de Hitler… O bigode dela parecia mais o do Stalin… - O senhor tem setenta centavos?
_Não senhora. Sabe como é… andar com moedas… - fiquei sem jeito. Qualquer pessoa digna devia ter setenta centavos no bolso. Aposto que ela mesmo tinha setenta centavos, a Madonna tinha setenta centavos. O Bonno tem setenta centavos no bolso…
_Tudo bem. – ela me devolveu um e cinquenta junto com a notinha. Ganhei vinte centavos, talvez eu compre um celular, e mande mensagens pra Luana. Não tinha nenhum bigodinho de Hitler nas partes dela que eu tinha visto. Ainda não vi todas as partes.
Peguei as três sacolas numa mão e saí do mercado. Logo que sai, vi aquele mendigo da frente da padaria. Ele pediu um trocado pra beber. Dei um real pela honestidade, e cinquenta centavos por que odeio andar com moeda. Ficam tilintando, e caem quando voce tira as coisas do bolso. Moeda é coisa de pobre. 
_Aquela menina lá, é sua namorada?
_Não, amigo. Não mais. – respondi o mendigo. Tinha um monte de sujeira no cabelo dele, e ele provavelmente já tinha bebido. Deve ter um curso de mendigo. Como conseguir esmola, onde dormir, como nao morrer de cirrose. Esse daí era o primeiro da classe.
_Por que “não mais”? Ela tem mó rabão, cara. Foderia com ela pro resto da minha vida.
_Que?  - entendi o que ele falou, ainda que o bafo de cachaça tenha me deixado tonto. Só não conseguia acreditar naquilo. Como assim… Aleluia alguém que concorda comigo. É um puta rabão mesmo.
_Oh, desculpa cara… é que, sabe como é né. Eu já tive a minha época… - sai andando quando pressenti a historia de mendigo chegando. Mendigos são melhores que bibliotecas. Acho que as pessoas mais sábias do mundo são mendigos. Desde a Grécia antiga, qualquer pessoa respeitável faz questão de viver num barril e se masturbar na praça da Sé.  O mendigo andou mais uns dois passos e pediu esmola pra uma senhora velha. Pra ela ele pediu pra comer.
Odeio quando me dão três sacolas, um braço fica sempre mais cansado que o outro. Não dá pra arrumar nunca. Não andei tão rápido. Por algum motivo, minha casa era o último lugar onde eu queria estar. Mas cheguei. Abri o portão. Não sei pra que uma corrente tão grossa, e um cadeado tão pequeno. Aquilo não protege nada. Se alguém realmente quisesse entrar na minha casa e matar minha família, faria questão de deixar o portão aberto.
Soltei as sacolas na mesa. Corri pro quarto. Tirei meu moletom, minha camiseta e meus tenis. Me cobri. Não posso me cobrir. Tá muito quente. Fui na sala. Achei o celular da minha mãe…986… puta que o pariu, qual o resto do número? x 

sexta-feira, 5 de julho de 2013

Mais um desses perdidos...


                                                              “Há um pássaro azul no meu coração,
                                                              que quer sair.
                                                              Mas eu sou demasiado duro para ele.
                                                              E digo, fica escondido, queres arruinar-me?”
                                                                                                             (Charles Bukowski)

Tem dias que não são feitos pra dar certo. Mas, os dias que dão certo são desconfortáveis demais, não consigo ser dono de um e continuar de consciência limpa. Mas é assim que tudo flui acorde mais um dia, tome um banho gelado, uns goles de café com vodka, e siga a vida.
_Não te preocupa, amigo, é normal que seja assim.
      Chegar ao inferno é assim, mas não é normal. Só não me confesso pra evitar de acabar lá, porque de certa forma, se eu me confessar alguém me manda pra lá mais cedo.
      Devia ter um carro, Mercedes Benz, isso sim é classe. Mas por, algum motivo qualquer, ainda não tenho. Nem minha bicicleta anda bem das pernas – ou rodas – foi uma vítima quase fatal dos dias que não dão certo. Mas logo seria consertada. Questão de sorte, ou então, questão de algum dia de consciência suja.
      Devia parar de me empolgar com as coisas. No geral elas dão errado, de uma forma ou de outra. Mesmo quando dá certo, tá errado. E aqueles caras que lêem livros, eles dizem saber disso. Não... não. Se eles soubessem mesmo, já teriam feito dos livros uma fogueira, e teriam dançado ao redor dela. Estuprar o cadáver já não é mais crime quando se tem uma cara permanentemente carrancuda.
      Aquele egípcio que inventou o relógio, ele sim, devia tratar de desinventar aquilo ali. Eu o odeio cada vez que toca o alarme. Cinco e meia da manhã. Meu anjo despertador é alguém falando sobre o trânsito. Rádio relógio não é caro. Esse aí... foi de graça. São Paulo tem um charme, mas ele só era visto da Avenida Paulista. Daqui da Baixada do Glicério ninguém vê. E mesmo às cinco e meia da manhã, quando a cidade está ainda dormindo, é possível ver a sujeira se mexendo nas ruas lá embaixo. Como se faz pros dias darem certo? Minha vida é um conjunto de dias que deram errado.  
      Morando no pior lugar que meu dinheiro pode pagar, e vivendo do pior jeito que consigo. É um esforço fracassar em tudo que se tenta, eu mesmo, fracassei até nisso. E mesmo assim, minha roupa de dormir continua sem rasgos evidentes, e por coincidência, vai ser minha roupa de trabalhar também. A outra muda de roupa tinha ficado pra da janela, secando. Mas minha roupa não sabe secar com chuva. Os pequenos detalhes que fazem o dia dar errado.
      Um passo a menos. Acordado e vestido. Dois detalhes a menos, talvez hoje o dia não dê tão errado. Pão, café de ontem, é isso aí.
_Temos ainda dois dedos da garrafa, é o suficiente pro café da manhã.
      Não é todo dia esse luxo. Quarto e banheiro. Eu teria o prazer em fazer faxina, se tivesse alguma coisa pra faxinar. É o lado bom, e o lado ruim de não se ter nada em casa. Donas de casa não parecem ser tomadas pelo tédio enquanto limpam o teto com aspirador de pó Max 3000 super-plus. Eu lavaria meu colchonete se isso não fosse jogar sabão fora. E, se tivesse uma mesa, ela estaria limpa. Mas o frigobar, dele sim eu me orgulho. Vazio e limpo, e está assim desde que um motel o abandonou. Logo compro também uma vassoura, sim, quem sabe um rodo. Até mesmo uma lata de cera. Encerar o chão, deixá-lo brilhando. Olhar para o teto e não ver nenhuma teia com aranhas nojentas que moram e comem melhor que eu, e isso ainda na minha casa.
      Barriga cheia.
_Sim, quase isso.
      Falar sozinho é um hobby saudável, melhor que a época em que costumava dançar com a música da rua. O eco fica mais divertido quando eu conto alguma piada. Às vezes até moldo meu cobertor na forma de um boneco. Assim não me sinto totalmente louco. Eu nunca me apeguei aos detalhes. E o cobertor parece mais humano que eu.
     Meu tênis tem uns buracos. No pé direito. Alguns eu consegui que remendassem, outros quase conversam comigo. Me orgulho desse par. Ganhei num sorteio. Mas abrir buraco é jogar sujo demais. Alguma coisa deu errado. Chuva, um cachorro molhado. É que, quando chove parece que essa parte de cá da cidade se dissolve em lixo e merda. Tudo vira um grude só. Tem aspecto de uma pasta preta, que fede igual mijo de mendigo. Não que perca meu tempo pensando nisso, mas faz parte. E no momento que pisar pra fora do apartamento sei que água vai encharcar minhas meias. E que a sensação que vou ter o dia todo é de como se estivesse patinando naquela bosta.
      Mas mesmo assim, não é tão ruim. Não pense nisso, dois dedos de vodka ajudam um pouco. Sempre odiei destilados, mas nem devem ter destilado essa porra. Podia ter roubado alguma coisa de qualidade. Passar o dia ouvindo o barulho que as meias encharcadas fazem no buraco dos meus tênis é aturável. Não quer dizer que deu errado. Característica não pode ser defeito.
      Quando eu por o pé pra fora desse lugar, nada mais é defeito, tudo é característica. É... andar um pouco faz pensar. Ver o charme da cidade, aquele que ninguém vê. Devia começar a acordar mais tarde. Só saio às seis e meia. E não consigo demorar uma hora pra me arrumar, e mesmo assim insisto em acordar com uma hora de antecedência.
      E aqueles espelhos na parede, eles incomodam ao mesmo tempo em que me confortam. Peguei-os não sei por qual motivo. Não couberam no elevador, e subir doze andares com eles me cortando os dedos não foi pouca coisa. Tanto é que só descem se forem quebrados ou carregando meu corpo. Têm o tamanho da parede toda. Seis espelhos de um metro de largura e um e oitenta de altura cada um. De alguma loja ou coisa assim, escondiam muito bem a tinta amarela e descascada da parede. Mas a umidade fazia o mofo se espalhar que nem... As outras três paredes pareciam suar quando chovia, de tanta água que escorria...
      Se eu tivesse energia elétrica, tomar banho seria um desastre. Meu banheiro parecia ter o teto mais baixo do que o resto do apartamento, fácil notar isso. Com um e sessenta e dois, só entrava curvado nele. E o vapor solto pelo chuveiro era absorvido pela parede, e depois cuspido na forma de mais mofo ainda... Quem sabe uns azulejos em vez de tinta...Seria o máximo. Vermelhos ou azuis, grandes azulejos brilhantes e decorados. Sim...
      Seis e meia, hora de mais um charmoso dia de chuva. Pelo menos a viagem era confortável. Quarenta minutos andando até meu trabalho pela área que mais gosto. O Centro. Do mundo, da cidade, o meu, tem hora que não sei quando um acaba e o outro começa. E mesmo assim, sigo firme e ironicamente centrado.
      A parte mais legal de ter dado errado – em tudo – é o caminho até o meu trabalho. Passo pelos lugares que mais amo. Eu amo aqueles que falharam, tanto quanto à mim mesmo. E no caminho tudo vejo são pessoas amáveis. Logo depois de sair do meu prédio, debaixo de uma garoa fina e sibilante como se fosse navalha, dou de cara com meu próprio lar. Meu covil. Pobres olhos turvos como as portas de aço das lojinhas, ainda todas fechadas. Glicério, você se supera cada dia mais. Cada par de olhos é um sonho que, por ter dado errado, se dirige ao metrô. Quantos sonhos cabem num vagão às seis da manhã? Eu nunca fui meu super-herói favorito. Não posso me dar ao luxo de pegar metrô, não quando tenho de caminhar pouco mais do que duas estações.
      Mas a simples caminhada até a praça da Sé me inebria com todo seu calor de gelar o sangue. Cerca de dez minutos de casa até a Sé. Tranquilo. Seria melhor se não estivesse garoando. Meu dedão já deu um beijo na chuva. E  o cabelo escorre rebelde na minha cara. Gosto da garoa. Ela me desconforta e acorda. Sinto-me mais vivo quando sou a falha. E chegar a Sé me explode em arco-íris e lhamas. Lhamas são ovelhas misturadas com girafas, melhor combinação? Uma lhama em São Paulo.
      Tudo que se vê na Sé é fruto do homem. Vejo uma bela catedral. Li num jornal que ela é uma das cinco maiores construções góticas do mundo. Aquele jornal não foi meu melhor cobertor. Um marco-zero. Desse ponto minha cidade começa. Sim, minha, desposei-a. E agora vejo meus semelhantes, espalhados pelos tantos metros quadrados dessa praça encardida. Moradores de rua, dizem eles. Eu chamo de “os verdadeiros moradores de São Paulo”. São eles que sentem a cidade, que passam verões e invernos aquecendo-se no solo infértil daqui.
       Sempre tive como ponto máximo da evolução urbana a terra dos canteiros daqui. Sim, se andar um pouco por aí, com certeza vai ver várias praças, a Praça da República é um ótimo exemplo. Aqueles canteiros contendo terra argilosa, de tom marrom-alaranjado. Aquela terra é essa cidade. Representa-a perfeitamente. Quando qualquer garoa cai sobre ela, se espalha por tudo ao redor, impregnando e dominando tudo. Manchando o calçamento com uma cor que me causa náuseas. Encardindo praças, ruas e mais. E quando faz sol, então sim, ela se mostra verdadeira. Seca e rachada. Fica dura que nem pedra, infértil como um vagão lotado de metrô. E ainda assim... a amo, linda terra deslumbrante.
      Realmente, a Sé me conforta, mas no caminho até a Sta. Efigênia parece que tudo conspira à meu favor. A garoa e o céu nublado fazem-me reverberar por dentro, e esboçar um leve sorriso por fora. Todas as ruas do centro histórico. Direita. Nela eu me sinto um amante que é beijado e mordido. Todos lá. Beijam-me e me mordem, e minha esposa nada faz. Deve gostar disso, tanto me trata bem, deve ficar de longe, me vendo viver, e então, inebriar-se com todos os meus suspiros de ódio. Gosto mais desse caminho. Prefiro evitar a entrada pra Vinte e Cinco de março, ela desvirtua minha cidade. Aquela ruazinha que liga a R. Boa Vista com essa outra rua infernal devia ser fechada. Sempre que sou forçado a ver aquela descida pra inferno, sinto meu coração palpitar. Como se fosse uma bomba...
_Não chego mais perto que isso, senão explode.
      Então acabo embrenhado nas ruelas centenárias daquela parte tão viva – e velha – da cidade. Até a prefeitura. Que se impõe. Como um bloco maciço de mármore. Com um jardim suspenso que parece imortal. E mesmo com todo quebra-quebra que rolou por aqui, não reclamo. Protestos acontecem, eu protesto contra dias que dão errado. Mas gosto deles todos, os jardins, os blocos de mármore, e até mesmo os dias que dão errado. E sim, magnífico como só ele. O Viaduto do Chá.
      Sempre paro pra olhar os carros passando. É uma visão peculiar. Todo mundo que passa por ali sempre tem algo há fazer. Como num formigueiro. Um médico, outro advogado, um professor. Não, se fosse professor estaria tomando chuva junto comigo. E sem sapatos. Não gosto de professores. Queriam sempre mandar em mim. Professores gostam de mocorongos namoradores de livros. Nunca poderiam gostar de mim. Gosto de realidade. De ver o circo pegar fogo. O som de uma página virando me faz ter cólicas. E além do mais, carros são muito poluentes. Fazem fumaça. Nunca quis um carro. Mas poderia, sem problemas ser professor. Ensinar sobre a Galeria do Rock. E todos os perdidos que moram lá. Parecem brotar das lojas, e a partir de então começam a virar parte do prédio. Sempre passo lá por dentro, evitando o andar dos chineses. Aquele é o andar de compras – que é, na verdade um térreo. Eu gosto do primeiro andar. Gente com cabelos coloridos, piercings, espaçonaves e guitarras. Tudo combina com uma música do The Doors que sempre toca numa loja hippie.
_Qual o ápice?
_Hein?
_Da tua viagem! Me conte...
      Sim, tem um ápice. Melhor que a Praça da Sé. Bem melhor. Ali, logo depois de atravessar a Avenida São João, na frente da Galeria do Rock, aquela praça é o começo do auge. O auge negativo de São Paulo. É o lugar que mais amo odiar. Dali até meu trabalho, sim. O lugar meu encardido pela terra argilosa, o lugar com os piores amantes de São Paulo. O mais fétido, pútrido e nítido retrato do Centro. Nunca soube o nome daquela praça. Tem uma placa, mas não tomo ordens de placas, só de bobões. É uma de minhas tantas regras. O tédio me fez criar regras. Não tomar ordens de objetos. Quem é um adesivo pra me dizer se devo ou não ultrapassar a faixa amarela? Ou então, minha regra favorita: Nunca conheça pessoas novas. Muita conversa, besteiras, elogios, e falsidade dispensável. Vivo sem isso. Eu sempre quis ter uma máquina de algodão doce. Brotam fios de açúcar como se fosse mágica, e grudam-se no palitinho como se atraídos por força magnética. Devia ter seguido mais meus sonhos. Só é uma pena que seja tão enjoativo e doce.
   Descer a João de Barros é sempre uma comemoração. Mesmo com o cheiro da urina já impregnado nos cantos daquele lugar, e com alguns irmãos que parecem mais cadáveres que gente viva. E com a carranca de sempre, vou cantando I Will Survive enquanto desço aquela rua me sentindo como num grande filme de faroeste.
And I
Bang bang
I will survive...
     E ver a catedral da Santa Efigênia... Alivia-me. Uma construção muito imponente. Meio escura... demais, lembra-me minha casa. Isso desconforta e alivia. E ainda que todos aqueles pares de olhos passem batidos. Sem me notar, sem notar, com precisão, a real grandeza daquele edifício magnífico, imponente e intimidador, faço aquele bom sinal da cruz. Quem sabe a Santa não me ajude um pouco mais. Ou então atrapalhe tudo de vez. Mate-me de vida. Vai que numa dessas perco meu medo de altura. De cachorros, e de não poder fracassar em mais nada. Confundo-me muitas vezes. A cidade e Eu. Virando-me e desvirando tudo logo após. Tantas as ideias. Tantos milhões de sonhos. Uma pena que ninguém preste atenção. Quem entrega panfleto da loja de celular sabe.
     Não que seja um empreguinho ruim. Só é miserável. Faz você se sentir pior que lixo. Quando os caras acham que estão num filme do Matrix, e desviam dos panfletos como se fossem balas. Não posso muito reclamar, não ganho por panfleto entregue, se fosse assim eu engolia todos. Mas parece que eu tenho bafo. Não disse que não tinha. Mas desviar desse jeito joga qualquer um no chão. Aquele monte de gente indo e vindo, e muito raramente alguém pega um panfleto ou coisa do tipo. Me acostumei. Sinto-me um lixo quando nem as tias velhas pegam o panfleto por educação. Elas vão pra igreja, rezam, falam com papai do céu, e depois ficam com essa. Se não pegar meu panfleto eu enfio o inferno no teu cu. E depois o lacro à pregos.
    Pelo menos não sou tipo o Pulinho. Ele sim é feio. Chamam de pulinho porque uma vez sofreu um acidente de carro – atropelado enquanto entregava panfletos na Av. Paulista. Contam que ele saiu pulando numa perna só. Hoje em dia tem ainda o nariz quebrado, e uma perna grotescamente mais fina que a outra. Quem entrega panfletos não tem fisioterapia. Ele sim é feio. Eu só preciso de um trato... Coisa assim.
    Ou tipo o Leandrão. Vive de sofrer. Sempre apaixonado, sempre traído. Nunca quis que eu copiasse minhas regras num papel e colocasse num envelope, e fizesse de presente. Mas tem grana. Vive lá só pra ajudar o pai, que tem três lojas pela Efigênia. O tipo playboy que paga de trabalhadorzinho, que entende da vida. Tirou uma foto comigo e postou no Orkut esses tempos. Cara gente fina, fuma maconha pra caralho.
    Se eu abrisse uma loja eu não venderia panelas. Até hoje só cinco pessoas apareceram perguntando por panelas. Eu teria vendido só cinco panelas numa loja cujo custo seria mais de trezentos reais. É um absurdo. Eu devia pedir bolsa família. Ajudaria bastante se eu recebesse ajuda. Eu moro com o boneco de cobertor, serve Dilma?
   Oito da manhã, hora de pegar meus panfletos. Hoje tem chuva, e a rua vai ficar mais vazia ainda. E pelo jeito, esse tanto de polícia espanta os malandros velhos, que vendem produto chinês de contrabando. Mas os clientes gostam daqui por isso. Então de que me adianta? Quando o dia começa errado, só conserta se você não ultrapassa a faixa amarela, rapaz.
  


sexta-feira, 14 de junho de 2013

Dia dos namorados? Hmm, como eu pude me esquecer?



A praça da liberdade muitas vezes me lembra um deserto. Deve ser por causa do espaço aberto e plano, e eu vou lá geralmente quando está ensolarado, calor, e cheio de pessoas que andam de um lado pro outro como se fossem besouros rola-bosta. Curiosamente estava assim da última vez que eu estava lá, apesar das nuvens escuras que se aproximavam. Era mais ou menos onze e cinqüenta quando cheguei à estação de metrô que fica no centro daquela praça. Quarta-feira, dia dos namorados, não que na hora eu soubesse disso...

Meio-dia, e eu estava esperando meu amigo, Júlio. Tínhamos um plano. Parecia uma novela, mas era só um plano, e ele já estava atrasado. Gosto de muitas coisas, atrasos não é uma delas. Eu gosto de regras. Sempre tive um afeto especial por elas. E eu recém tinha lido “O Clube da Luta”, não me impressionei tanto pelo livro. Criativo, legal, umas frases bacanas pra ter impacto, mas niilismo nunca foi minha onda. Mas uma coisa me chamou atenção, uma coisa salvou o livro todo. Regras, ele falava de regras. Sete eram as regras, e apesar delas serem sobre gente estúpida se batendo, ainda assim eram regras. Isso me fez colocar num papel as minhas regras. Escrevi oito. Não cabiam apenas sete na minha vida.
I-) Tenha uma rotina, não a quebre.
II-) Seja pontual e honre compromissos.
III-) Não conheça pessoas novas.
IV-) Não fale nada útil, caso não seja extremamente necessário.
V-) Nunca é realmente necessário, portanto, silêncio é teu aliado
VI-) Seriedade anda de mão dadas com a chatice, e você fecha o círculo.
VII-) Mentir é obrigatório quando se tem interlocutor, e sentimentos são considerados como verdades.
VIII-) Nunca, jamais, em hipótese alguma quebre as regras, nenhuma delas.

Essas são as regras, e até o momento as três primeiras e a última já tinham sido quebradas. Eu suava, por causa do calor, do nervosismo, e ainda mais por ter quebrado meu conjunto perfeito de regras. Estava ouvindo Pink Floyd. “Jogando fora os momentos que fazem um dia tedioso”, dizia a música logo que David Gilmour começava a tocar. Não jogue momentos fora, é contra as regras. Mas Júlio não entendia minhas regras, sempre dizia que era baboseira de gente velha. Eu sou velho, ele que não entende.

Meio-dia e cinco, nada de Júlio. O plano era o seguinte. Saímos da escola onze e trinta, ele pegava o irmão dele na escola ao lado, enquanto eu ia de metrô até a Liberdade. Ele iria até sua casa, e deixaria seu irmão lá mesmo. Iria para a Liberdade, e onze e cinqüenta nos encontraríamos na praça. Regra um quebrada. Ele não trocaria de roupas, não comeria, nem sequer respiraria dentro de sua casa, ele iria para a Liberdade. Mas ele estava dez minutos atrasado. Como as pessoas não entendem muito bem o quanto minhas regas são importantes, eu tolero cinco minutos de atraso, ele estava dez. Isso era muito mais do que o tolerável. Regra dois tinha sido quebrada.

Não era o melhor dia da minha vida desde o começo. Estouraram o zíper de um dos bolsos da minha mochila novinha no metrô. Eu tinha comido aquele macarrão da escola. Ainda bem, quando eu espetei ele com o garfo amarelo de plástico ele quase me mordeu. Aqueles garfos sempre estão engordurados. E aquele macarrão não tinha me deixado legal, estava meio enjoado, e o calor não ajudava. Minhas roupas pareciam estar coladas no meu suor. Minhas costas estavam molhadas de suor, minha cueca estava apertando minhas bolas, e eu estava me coçando por causa da sensação de aperto. Quinze minutos atrasado e eu no Sol.
Ah, como pude me esquecer. A terceira regra. Ela também tinha sido quebrada. Minhas três principais estavam mortas. Eu me sentia horrível por isso, mas eu tinha lido que uma bomba que não explode não tem motivo pra ser feita. Talvez essas regras fossem bombas. Eu preferia elas inteiras, eram mais bonitas de serem admiradas. Maldito seja o facebook. Três semanas, três regras. Coincidência, claro. Era uma foto engraçada. Ela tinha postado uma foto com uma lhama grande e branca, mais bonitas que os grandes cavalos de raça que corriam em hipódromos. Mais bonita que... mais bonita que as minhas regras. Eu tive que mandar uma mensagem. Começou normal, ela gostava de lhamas também. Eu gosto mais, é claro, mas o assunto rolou. E por três semanas nós conversamos. Todo dia. Mais de três mil mensagens. Foi-se a regra três. E eu não conseguia acreditar que, depois de três semanas com a regra quebrada ainda nada de ruim tivesse me acontecido. Me causou uma grande dúvida sobre a legitimidade do meu sistema. Amanda era seu nome. Era bonita, sem ser exageradamente bonita. “Eu não teria vergonha de sair na rua com ela”. O papo era bacana. Ela disse que gostava de ler. É, não teria vergonha.

A idéia do plano tinha sido dela. Não gosto de planos. Era, pra ela, simples, só buscá-la na porta da escola, levá-la em casa, conversar um pouco. Eu não queria conversar, acho que gostava dela. Vinte minutos atrasado. Dentro da estação tinha uma máquina que vendia garrafas de refrigerante, água e salgadinhos. Dois reais por uma garrafa d’água, que seja. Sorvia a água enquanto esperava Júlio. Ele não podia ter demorado tanto, não era possível. Planos não são legais, mas são compromissos, então há de se honrá-los. Amanda estava nos esperando, eu tinha certeza. Tudo tinha ido por água abaixo. Viu? Quebre as regras, olhe agora como tudo está, dia de sair é Domingo, não Quarta-feira.

Com trinta minutos de atraso ele chegou. Seis vezes o tolerável. Eu realmente o considerava demais. Senão teria ido embora após cinco minutos. Júlio tinha trocado de roupas, e estava com um pacote de salgadinho na mão. Ótimo, da regra dois tinha sobrado só o papel que estava na minha carteira do Batman.
_Vamo logo, cara. Cê ta lerdo? – ele falou, ainda de longe, como se o atrasado fosse eu.
_Já estamos atrasados. Ela nem está mais lá.
_Claro que está, eu liguei pra ela, tá te esperando.
_Então vamo rápido.

E fomos o mais rápido o possível. Demorou cerca de oito minutos até chegarmos lá. Já era quase meio dia e quarenta quando chegamos. Lá estava ela. Eu estava suando de nervoso, não pelas regras, mas por vê-la. Era mais bonita que nas fotos. E sorriu quando me viu. Um dia de sorte? Regras podiam ser descartadas? Talvez, por aquele sorriso... talvez. Ela estava ainda na frente da escola dela, me esperando. Júlio tinha visto ela ainda de longe. Visão não é uma das minhas virtudes. Conseqüentemente ele foi o primeiro a falar com ela, pra me deixar por último... como um gran finale das comprimentos. Um “e aí” e um beijo no rosto. E então ela me abraçou. Regras? Quem precisa delas? Esqueceria as regras de qualquer coisa por aquele abraço.
_Oi, Bruno, como é que tá? – perguntou Amanda, era a primeira vez que escutava a voz dela, combinava perfeitamente com ela. E o cheiro de seus cabelos, vão ficar pra sempre na minha memória.
_To tranqüilo – respondi, tentando não parecer eufórico, não deve ter funcionado, ela riu. A risada dela era alta, e percebi que ela gostava de falar alto. Eu não falo alto, é horrível. Tenho nojo de quem grita. Ou melhor, eu tinha, pois, a partir de agora, eu também pensaria em começar a gritar. A regra cinco teria de ser repensada.

E então fomos escoltando-a até sua casa. Não era tão longe. Quinze minutos andando. Minhas costas doem quando eu fico em pé por mais de meia hora, ou então quando ando demais. E à essa altura elas pareciam chiar e ranger de tanta dor, mas eu estava segurando a mão dela. Quem liga pra dor, hein? Fomos conversando coisas banais. Principalmente comentando as conversas na internet. Sabe como é, eu não levo muito jeito com pessoas novas. Regra três tem motivos para existir, e não é só por causa disso, tem alguns outros, mas isso não é importante do lado dela. Júlio parecia ter mais assunto com ela do que eu. Normal, ele é treinado nisso, passou a vida fazendo isso. E talvez, prestando atenção na conversa deles eu conseguisse achar algum nicho, e então conseguiria fazer ela olhar pra mim. Mas eu me contentava em apenas contemplar a imagem de nossas mãos juntas. Era definitivamente algo realmente incrível, que valia mais que regras bestas.

Quando chegamos na frente do prédio onde ela morava, ela perguntou se alguém queria água, ela subiria e iria pegar. Júlio não é do tipo contido, basicamente mandou ela subir. Ela foi, rindo. Estávamos na parte de fora do prédio, que fica numa rua bastante inclinada. O prédio dela tinha duas portas antes de se chegar ao saguão. Uma era feita de barras de ferro, e a outra parecia madeira pesada, ou até mesmo ferro pintado, pra parecer madeira. Ela tinha desaparecido quando Júlio falou:
_ É, cara, parece que hoje é um dia bom.
_Né, eu quebrei metade das minhas regras e nem morri.

Júlio riu. Ele não leva as regras à sério, eu levo. Ou pelo menos levava. Quando Amanda voltou trazia uma garrafa e um copo de plástico. A garrafa estava suada de tão gelada que estava a água que continha. Ela tomou o primeiro gole. Até tomando água ela parecia bonita. Me pergunto até hoje o motivo de ter reparado nisso. Eu enchi o copo novamente e tomei-o todo de uma só vez. Então Júlio pegou o copo, a garrafa, e encheu ele mesmo, rindo como se aquilo fosse algo fora do comum. De certa forma era. Ele tomou meio copo, e então jogou o resto fora.
_Cê cuspiu na água, né, filho da puta?
_ Só um pouco – respondi.

Amanda riu alto mais uma vez, e me lançou um daqueles olhares que quase me fazem desmaiar. Eram profundos, negros, brilhantes e felizes aqueles olhos. Incrível como eu não pensava em nada enquanto ela me olhou. A sensação de tempo era descartável. E então ela desviou o olhar, como se quisesse me fazer vontade. Ela queria, e tinha conseguido.

Eu não agüentava mais ficar em pé, tive de me sentar, Júlio se sentou, e então ela sentou do meu lado. E então voltou a conversa. E novamente Júlio era o centro das atenções, ele é bom com isso. Mas eu participava do assunto, na medida do possível, mas a regra seis é mais parte de minha personalidade do que apenas uma regra. Júlio não entendia as regras, e ele era engraçado, tem boas piadas sempre. Eu gosto de silêncio e de ser chato. Amanda pelo visto gostava de gente menos contida. Ela ria, e ria, e não parava mais de rir, e de vez em quando ria das minhas piadas, cada vez que seus olhos brilhavam e ela soltava uma gargalhada com uma piada minha meu coração vibrava. Mas as piadas acabam, mesmo as piadas de Júlio, mas mesmo quando acabavam ele sabia ser engraçado:
_Aí, acabou o assunto – disse ele olhando pro céu. Nuvens cinzentas e pesadas estavam chegando mais perto. Provavelmente logo encobririam o sol. Nem gosto de sol mesmo. Aquela estúpida bola de fogo que só me torra o saco. Mas que ele fique lá, não gosto de frio.
_Pois é, mas eu posso pegar meu violão e meu skate, oque vocês acham? – Amanda tinha solução. Ela parecia entender das coisas. Eu entendo das coisas.  
_Pode ser, ainda que eu não saiba tocar – respondi. E ela riu, mais uma vez ela riu. Respirar é difícil quando se está maravilhado.
_Ok, vou lá, já volto!

Júlio me olhou com cara de quem gostava de tudo que estava acontecendo. Ele é meu co-piloto. Eu não sou o carismático, mas ele faz com que eu pareça. E eu o sério, na maior parte do tempo ele é bem mais útil. Carisma é melhor que seriedade.
_É, parça, acho que ela gosta de você. – Era legal ouvir aquilo dele. Eu posso entender de Senhor dos anéis e Schopenhauer, mas ele entende de mulher, e se ele diz, é verdade. Ele dizia que a regra dele era não mentir. Eu nunca precisei mentir pra ele, mas achava admirável o quanto ele gostava de ser sincero.
_Espero que goste mesmo, acho que gosto dela, cara.
_Ihh, cara, sai dessa. Sem relações lembra? É uma das tuas regras!
_Eu já quebrei tantas, dane-se as regras.
_Então tá, já é. – o significado dessas palavras? Não entendi até hoje, mas nunca significava alguma coisa ruim.

Amanda voltou com um violão em uma capa, que estava feito uma mochila em suas costas, e um skate debaixo do braço direito.
_Vamos ficar na pracinha, ai ninguém enche o saco, minha mãe pode chegar daqui a pouco, aí vai mandar eu subir.
_Vamo logo então, caraio! - Júlio riu, Amanda também, eu fingi que tinha achado graça, forçar uma risada é natural...

Júlio pegou o skate dela, e foi um pouco na frente. Eu levava o violão, não podia deixar uma dama carregando peso, falta de educação, e como chato, eu tenho que me comportar como um velho. Velhos são chatos e cavalheiros, eu também tenho esse hábito. Ela pelo menos tinha me dado a mão de novo. Tão pequenas eram suas mãos. Eu olhava espantado. Pareciam delicadas demais para serem tocadas. Mas eu não as soltaria por nada.

Chegamos à pracinha bem rápido. Não conversamos no caminho. Eu me sentia bem. Apreciar o silêncio era ótimo, uma das minhas coisas favoritas. Ela não parecia gostar. Estava sempre olhando pro celular. E pro horizonte, observando as nuvens, ou qualquer coisa desse tipo. Era bem pequena, a tal praça. Nunca tinha ido antes, ainda que já tivesse andado o bairro da Liberdade quase todo. Talvez apenas não lembrasse. Sentamos nos bancos de pedra, e ela pegou o violão.

Júlio puxou assunto, e já tinha várias piadas. Eu estava relativamente quieto. Pra mim parecia tudo normal. Eu gosto mais de ouvir as conversas. São tantos os gestos quase imperceptíveis. E eu me divirto caçando-os, e cada olhar, cada movimento das mãos, dedos, pernas. Cada passada de mão no cabelo. É algo realmente divertido. Por exemplo, quando alguém que não é tão habilidoso com mentira tenta mentir, é possível descobrir apenas olhando para suas mãos. Colocadas nos bolsos, ou então inquietas, com os dedos sempre em movimento. Ou então pela expressão facial. É difícil pra quem mente te olhar fixo nos olhos, ou então não olhar fixo nos olhos. Sempre opostos. Mas Júlio não parecia mentir. Apenas se mostrava como sempre. Com movimentos exagerados, gargalhadas altas, e piadas que pareciam ter sido pensadas por horas. Amanda parecia natural, eu acho. Não era familiarizado com os gestos dela, mas apesar de estar à vontade, ainda mantinha os movimentos de forma natural, e tocava alguns acordes desconexos em seu violão. Normal. Enquanto a mim... Talvez eu parecesse desconfortável, entediado, ou mesmo preocupado, mas eu estava apenas me divertindo.

Júlio, que estava sentado em um banco de pedra um pouco mais à frente do banco em que eu estava sentado junto com Amanda, de repente se levantou e falou de um modo que insinuava que queria me dar espaço.
_Posso andar um pouco com o skate?
_Claro que pode, pra que pedir, só cuidado com a lixa, é nova. – respondeu Amanda. Eu não entendo de skates. Prefiro Bukowski.

Então meu co-piloto foi dar um volta por ai. Era minha deixa. Peguei o violão da mão dela. Coloquei-o no chão, em cima de sua capa. Sentei-me mais perto dela,  abracei-a e então tentei impor um tom mais sério na minha voz.
_Você sempre me mandava um monte de beijos...
_É, eu sei...
_Algum deles de verdade?
_Todos, ué. – ela riu desconfortavelmente – Mas acho que, sei lá, você tá muito perto.
_Isso é ruim?
_Não, que é... sei lá...

Sei lá? Quem diabos repete “sei lá” tantas vezes? Eu tinha notado que era um hábito, mas pensei que fosse mais uma daquelas coisas que você fala repetidamente pra ter personalidade, ou qualquer coisa desse tipo. Foco. Não gostava de quebrar mais uma regra, mas agora que a número quatro tinha sido quebrada junto com a cinco e a sete, eu já não tinha como escapar. Então que pelo menos eu tivesse um pouco mais de foco na conversa. Ah, a regra sete. Gostava tanto dela. Maquiavel, eu devia ser você, só então eu conseguiria mentir sempre. A sete sempre foi meu ponto fraco...
_Mas só escrever “beijos” não significa que você tenha realmente me dado um beijo.
_Eu sei, mas é que, sei lá, eu estou meio, sei lá. É que eu não... – ela estava cada vez mais desconfortável. Rápido demais? Não. Já estava vendo ela conversar por mais de uma hora e meia...
_Você não o que? Não quer me dar um beijo?
_Não é isso, eu não posso.

Me poupe, menina. Tem sapinho? Claro que ela podia, eu não posso estar ouvindo isso, com certeza é joguinho. Agora eu tenho que me virar, não sei jogar isso, prefiro Mario Kart.
_Não pode ou não quer?
_Não posso.
_Algum motivo específico? – Vai que ela tem sapinho. Eu não estou com vontade de pegar sapinho, se eu ainda tivesse regras, adicionaria uma outra “Não pegar sapinho ainda que o sorriso dela me deixe bêbado”. Seria a número oito, e então a oito viraria nove.  Tudo de praxe.
_Tem sim, é que, eu, érrr... Como posso te explicar? – Explicando, piranha, é só explicar. – Você apareceu faz pouco tempo, e eu, sei lá, estou confusa. Gosto de um outro menino.

Menino? Como assim? Eu não sou menino. Então você gosta de mim, e do outro que é um  menino? É isso? Com isso eu consigo lidar tranquilamente. Sou um homem. Tenho até barba, de vez em quando. Quando eu não tiro uma semana toda dá até pra ver de longe no espelho. É uma sensação incrível. Um dia vou ter uma barba do tipo Gandalf com Marx e... não, Marx não, né? Quem mais tem barba? Foco, cara, foco.
_Eu não sou menino. E me conta isso direito. Fale a verdade, é melhor que me enrolar. Se você não quer, é só falar. – Como assim? Não tem como você não querer... tem? Droga, eu pedi pra você falar a verdade. Mente se quiser, mas me beije, menina...
_Eu só não posso. Eu gosto do Júlio.

É, se alguma vez você viu um copo quebrando e teve a oportunidade de prestar atenção nos cacos que voavam, você vai entender como eu me senti. Mas eu comecei a rir. E falei baixo, mas de um modo que ela escutasse. “Droga!”.
_Não fica assim, você é um cara legal. E eu achava que gostava de ti, mas tudo aquilo que eu esperava de você o Júlio fez. E você é sério. Parece mau humorado.

Eu sou legal, não estou mau humorado. Porque tenho que ouvir isso?
_Mas eu tô confusa. Me sinto confusa demais pra dizer que não quero. Só queria que você tentasse, sei lá. Me ver como amiga.

Amiga? Amiga meu cú. Você disse que me amava pelo facebook, e mandou até carinha feliz, como assim amiga? E para de falar “sei lá”, ou eu meto a mão na sua cara. Eu vou recriar as regras. Número um : “piranha toma tapa na cara” dois: “Não quebra a regra um, ela é divertida”. Só. Fodam-se as regras, eu queria chorar, gritar, e ao mesmo tempo eu ria por dentro. Eu sempre soube que era chato, mau humorado e tudo mais. Mas ela devia entender. Ela disse que me amava. “Now our love is sour”. Interpol, não era pra você fazer sentido! “Love will tear us apart”, Joy Division errou, porque o amor só me despedaçou, ela não parecia nervosa, nem tremendo. Aliás, continuava normal, no máximo desconfortável, como se eu fosse um mendigo pedindo esmola. E estava fingindo que tocava violão nos dedos. A palheta ainda estava na mão dela.
_Como assim? – eu perguntei. Eu achei que você quisesse ficar comigo, e tivesse me chamado aqui pra isso.
_Eu não quero apressar as coisas, vamos com calma. – Eu pareço apressado? Eu to correndo? Eu devia te foder, mas eu ainda estou conversando, e você pedindo calma?.

Júlio chegou, estava suado, mas não parecia cansado. Como era magro, sua camiseta suava estava colada no corpo de um jeito nojento. Eu não conseguiria gostar dele. Deve ser as piadas.
_Voltei, seus puto! – E ele olhou pra mim, com um olhar do tipo “quantos beijos essa novinha ganhou?”, mas o meu olhar devia estar dizendo “Eu vou bater nessa piranha”.

Ele, de alguma forma entendeu.  E lá veio mais uma enxurrada de piadas. Ele não sabia que ela tinha mudado de alvo. Mas eu agora entendia. Ela estava olhando pra ele com os olhos faiscantes desde que estávamos conversando na frente do prédio dela. Naquela hora eu tinha pensado “Merda, eu queria ser o carismático”, e sem saber, eu tinha me tocado de tudo. Eu tinha, Amanda também, mas Júlio não parecia ter entendido, ou então estava mentindo. Ele não era de mentir. Mas era bom com piadas. E Amanda ria de modo cada vez mais exagerado. Mas, apesar de estar rindo, ela se levantou, e começou a falar.
_Eu tenho que ir pra casa, são quase três horas, e sei lá, eu tenho que comer alguma coisa, você me leva até em casa? Vamos Júlio? – Sua voz agora me dava nojo, e eu estava quase chorando. Isso era algo que cortava meus ouvidos e me dava vontade de ouvir B.B. King. Se eu soubesse chorar, eu já estaria me desmanchando. Mas eu sou muito homem pra essas coisas. Chorar é coisa de maricas.
_Eu levo sim, mas eu vou de skate, senão vai se foder. – Júlio falou isso com naturalidade, não era uma piada, mas ela riu, e como riu... Ele tinha entendido. E me olhou com uma cara de cachorro. Do tipo que falaria “puta que o pariu, fodeu...”. Eu só olhei, com os olhos vermelhos, e dei de ombros.

Aquilo foi horrível. Eu não sou bom com mentiras, e não choro. Ele sabia disso, e ela teria notado se pelo menos tivesse olhado pra mim. Mas parecia encantada por ele. É, eu devia ser o carismático. Em qual fila eu pego a ficha pra troca de personalidade? Eu não poderia ficar do lado dela, não conseguia. Foda-se, eu vou embora, pensei. Júlio não vai encostar um dedo nela depois de ter me visto daquele jeito. Ou então, se encostar, melhor assim, ela é legal e tudo mais... Quê? Não, ele não vai... mas se ele for... Não.

_Eu, é... já deu minha hora, e vai chover, eu tenho que ir embora. Dormir, jogar GTA, um monte de coisas. Falou aí. – Eu falei, com a voz trêmula. Eu agüentava. Mais um ou dois minutos. Calma, seja meticuloso. Você tem que jogar. “Y” é o botão de roubar carro. Mas não era simples assim.
_Não, brô. Vamo levar ela lá, ai vou embora contigo – Ele quase implorou pra que eu fosse. Eu não. Ela me dava nojo, eu a odiava. Eu cuspiria na cara dela. Lhamas fazem isso, eu posso também, não?
_Se eu não for vai dar problema...
_É, se tem que ir vai. Não fica enrolando – Eu devia ter metido a mão na cara dessa menina. Não sabe calar a boca, com essa gargalhada escrota. Eu gostava da voz dela.
_É, eu vou.
_Se cuida então, te vejo amanhã na escola? – Se ela tivesse olhado pra mim teria visto. Minha visão estava turva. Merda, deve ser um cisco no meu olho. Ou então essa piranha fodeu meu dia. “Normal, acontece sempre!”.
Então eu peguei minha mochila, levantei, me virei de costas, quase pisei no violão dela, e fui trôpego em direção à estação Liberdade – eu não sabia em qual direção devia seguir, e nem me preocupei, mas até aí, não devia ser tão longe. Ainda ouvi Júlio dizer “Puta que o pariu”, e Amanda com aquela voz... nojenta, maldita, irritante, linda... dizer “Que foi?”. Júlio respondeu mais alto que o normal, queria que eu escutasse “Nada não, vamo logo que eu tenho mais oque fazer”.

Virei a primeira esquina que vi, tinha que sumir do campo de visão dela. Não que adiantasse, ela não estava afim de mim mesmo, nem me olhava. Não chorei, não. Chorar é coisa de bichona. E aquela lágrima que caiu é culpa do cisco de Amanda que caiu no meu olho.

Eu estava meio perdido, meio desnorteado. Cansado, meu peito doía, respirar era pesado, e meu coração não conseguia bater com ritmo, eu o sentia vacilar. Sentia meu pés trêmulos, e minha visão ainda estava turva. Não havia mais nada a se fazer... mostrei o dedo médio pro céu. Pro sol, Apolo, Deus, Zeus, Silvio Santos, ou quem quer que fosse. Mas não tinha sol, as nuvens estavam ali. Sério? Isso é hora de chover? Era hora de chover. E a chuva não foi fraca. Começou a cair uma chuva forte, com os pingos grossos. Daqueles que quando batem na sua cabeça fazem você ficar tonto. Teve uma vez que eu vi um cara desmaiando na chuva por causa desses pingos, mas quem liga? Eu não veria se isso acontecesse agora, não consigo nem ver minhas mãos.

Fui andando na chuva por cerca de uns dez minutos, até conseguir achar a estação. Quando cheguei lá meus tênis estavam encharcados. Eram brancos e novinhos em folha, mas agora estavam molhados, sujos e cheios de folhas e até um papel de bala tinha nele, não pareciam mais tão bonitos. Nada parecia bonito. Peguei o Ipod no meu bolso, estava molhado, mas era à  prova d’água, há, pelo menos isso. Música aleatória. Quem sabe toca Safety Dance. Até I will survive eu aceitava... Sério isso? “The sky is crying”? É óbvio que o céu está chorando, Vaughan, eu não sou cego. “Can you see his tears rolling down the street?”... tem mais lágrimas do céu em mim do que na rua... palhaço, não sei pra que te escutar, no Texas todo mundo tem cheiro de cachorro. Se você não tocasse tão bem eu iria parar de te escutar.

Fui passar na catraca. Não tinha mais carga no meu bilhete único. Eu tinha ainda mais três reais. Vou comprar um bilhete, não quero recarregar o bilhete, tem fila. Eu não gosto de filas, nem de pássaros, nem cachorro, nem árvore grande, nem insetos... Comprei o bilhete e passei na catraca. Não me senti um astro do blues enquanto descia as escadas rolantes. Tirei a mochila e andei até um dos bancos que ficam nas plataformas. Abri a mochila, meus cadernos estavam molhados nas bordas. Abri numa página qualquer. Era na matéria de história. É tudo mentira mesmo, quem liga se eu escrever um poema aqui? Rabisquei alguns versos até o trem chegar. Quando saí do banco ficaram as poças d’água onde eu estava com os pés, e onde tinha sentado. Entrei no trem. Tinha uma moça lendo “Cartas na rua”, eu me lembro de ter lido esse livro, vai se foder você também, Bukowski. Terminei o poema. O título era “Um poema pra você socar no rabo”, mas tinha uma lágrima nele. Tinha vinte e dois versos, em quatro estrofes. Arranquei e folha do caderno, e não me incomodei de tirar também metade de um texto sobre sistema colonial. Peguei minha carteira do Batman, ela escorregou, caiu perto da mulher que estava lendo Bukowski. Ela pegou a carteira, olhou pra mim, sorriu e falou com ar de quem está feliz:
_Ó sua carteira.
_Me dê, e vá para os diabos. – Ela riu, deve gostar de Bukowski.

Peguei a minha carteira, abri, coloquei o poema, e então me distraí com aquelas telas que ficam no metrô. Alguma música muito alta abafava todos os meus pensamentos.
“A melhor escolha que fiz em toda minha vida foi ficar com você, te amo, Patrícia” – Ronaldo Schüller.
“Amor, a cada dia que passa eu entendo que fiz a escolha certa, feliz dia dos namorados!” – Patrícia Schüller.
Dia dos namorados? Como assim? Ahh, que ótimo.
_Moço, caiu um papel da sua carteira no chão, desculpa, não tive como não ler, mas são muitas regras, não?
Regras? Eu suspirei. Peguei o papel, desdobrei, amassei, e engoli ele.
_ Regra número oito: “Nunca, jamais, em hipótese alguma quebre as regras, nenhuma delas.”- falei olhando pra tela. Mas a moça do Bukowski respondeu.
_CREEEEDO, porque fez isso?
Eu levantei, peguei o livro da mão dela, e esperei o trem parar em alguma estação qualquer. Quando parou, abriu a porta e eu joguei a porra do livro no vão entre “o trem e a plataforma”.
_Entende agora?

terça-feira, 30 de abril de 2013

Histórias que não merecem ser contadas

                                          




                                I: Os aplausos só vão durar enquanto não forem teus.

Marcos não era o garoto mais popular da classe, aliás, sempre foi motivo de chacota. Estava na quarta série, e entendia muito bem o quanto crianças podiam ser cruéis umas com as outras. Não que ele visse algum motivo para elas serem cruéis com ele, mas elas o eram, e muito. O garoto não dava um sequer motivo – pelo menos à seu ver – para as outras crianças o tratarem sempre de modo tão malicioso, mas elas sempre foram. Desde que conseguia se lembrar, nunca tinha sido bem aceito pelos seus colegas. Não era o fedorento da classe, não comia cola, não ficava com os dedos na bunda, não puxava saco da professora, não era o pior na educação física e nem falava como uma garotinha, e mesmo assim as crianças o viam de modo diferente.
      Logo que entrou na primeira série, foi rejeitado pelas crianças que se denominavam “líderes” da classe (aquele tipo de grupinho, que tem os meninos que jogam bola melhor, e as meninas mais bonitinhas). Não entendia ele porque, mas entendia que aquilo não lhe ajudava, já que sempre que podiam, os outros garotos faziam questão de atormentá-lo.
    No começo eram apenas provocações mais tímidas por parte das outras crianças. Coisas que não eram realmente um incômodo. Esbarrões, empurrões, ou então derrubar o estojo dele, como se fosse acidente. Até esse ponto ele agüentava fácil. Pensou que fosse coisa normal de todas as crianças, e pelo que ele observava, era. Pois os garotos faziam isso entre eles. Mesmo assim ele não via aquilo como algo certo. Alguém poderia se machucar ou ficar sem o lápis, e não era engraçado ver alguém com o queixo sangrando ou sem lápis, então Marcos nunca nem tentou repetir aqueles atos. Mas com o tempo, tudo foi piorando, ele ia ganhando apelidos, e as provocações começaram a ficar mais sérias. Apelidaram-no, na segunda série, de “bolinho de banana”, por causa de uma festa que houve na sala, onde todos levaram coisas legais – brigadeiros, tortas, coxinhas e empadinhas – e ele tinha levado um bolo de banana feito pela sua avó. O bolo estava bom, e não sobrou nenhum pedaço, e mesmo assim ele ganhou o apelido, já que não tinha levado nada “descolado” pra festa.
   Na terceira série começou a ser comum as surras que ele tomava. Não eram muitos garotos, dois ou três o surravam enquanto toda a sala – e algumas vezes a professora – o assistiam apanhar. O menino nunca provocou ninguém, mas mesmo assim começaram a dar-lhe socos e pontapés. Muitas vezes, ele era pego desprevenido, fazendo lição, ou caminhando pela escola, então os colegas de classe davam-lhe tapas, chutes, o derrubavam e uma vez arrancaram-lhe sangue do nariz, depois de uma rasteira – ele estava jogando bola e um dos colegas deu-lhe uma rasteira maliciosa, fazendo-o cair de cara no chão, nada aconteceu ao garoto que o derrubou, já que tinha sido apenas uma “falta”, um acidente de jogo, na visão do professor. Claro, ele não jogava bem, mas não chegava a ser o pior, e ainda assim era escolhido depois do garoto de óculos, e uma vez até mesmo depois do menino que não tinha um braço, mas mesmo assim sempre ajudava o time, e mesmo assim... E ele até tentava se defender, e era bem forte para a idade, mas ainda tinha medo de machucar os outros colegas, então sua defesa se baseava em tentar esquivar-se dos golpes desferidos pelos garotos. E era uma cena legal de se ver, já que mesmo enquanto apanhava de três garotos ele mantinha a calma e conseguia evitar grande parte dos golpes, e só dava algum soco, chute ou rasteira quando era extremamente necessário, e mesmo assim, tentava machucar o mínimo possível os colegas, que não estavam realmente se importando com o cuidado que Marcos tomava a cada soco que desferia. Então estava feito, tinha ganhado também a fama de “bunda mole”.
    Mas sempre tinha sido muito inteligente. Tirava sempre boas notas na escola, era muito esforçado e quieto. Isso não parecia grande coisa, já que nunca lhe pediam nem cola na hora das provas. Mesmo ele tirando sempre a nota mais alta da sala – como uma constante – nunca era pra ele que pediam cola, era pro garoto de óculos (que não era grande coisa, aliás, aquele garoto não sabia nem fazer conta de multiplicar, enquanto Marcos já conseguia com facilidade fazer todas as expressões numéricas que eram passadas na lousa). No começo, a avó de Marcos tinha lhe dito que todos sempre pedem cola pro garoto mais inteligente da sala. E que se ele fosse esse garoto, logo iriam falar com ele por causa das colinhas. Claro que foi-lhe dito também que era errado ter amigos apenas por causa de colas, pois esses que pediam cola não eram realmente amigos, mas apenas pessoas com interesse, que logo que fosse findada a prova iriam voltar a ignorá-lo. E mesmo assim, quando o garoto viu que ele era esse garoto, o mais inteligente, não conseguia pensar em outra coisa senão que logo as pessoas iriam começar a falar com ele, mesmo que fosse apenas pra pedir cola. E ele pensou que assim que o fizessem, ele daria as respostas da prova, e conseguiria falar um pouco com os colegas, que então iriam ver que o garoto não era esquisito, e que era bem legal. E então ele iria ter alguma chance de ter amigos... Óbvio que isso não aconteceu, pois mesmo com notas altíssimas ele continuava sendo ignorado por todos, até por Adriana, uma menina loira e baixinha, que era muito simpática com todos, mas desprezava-o sem ter sequer algum motivo.
    Marcos tinha visto Adriana logo que entrou pela primeira vez na sala. E ouvia tudo que ela dizia, sabia de cor seu nome completo, seu número da chamada e até mesmo as matérias que ela mais gostava. E ela nunca teve a decência de pelo menos dizer-lhe um “oi”. Eles eram quase vizinhos, já que ela morava num prédio amarelo de apartamentos – que ficava a uns cem metros de sua casa – e, portanto a via todos os dias enquanto ia para a escola, ou quando saia para andar de bicicleta pelas redondezas (pelas redondezas significava andar até o fim da rua e voltar quantas vezes ele agüentasse, só pra conseguir olhar algumas vezes para Adriana). E mesmo assim, ele nunca nem olhou para ele.
     Mesmo sem amigos o tempo passou, e então o “bolinho de banana” chegou até a quarta série. E mesmo nem aquele gordinho sendo amigo dele, ele continuava com a calma que sempre tivera. Aprendeu que quanto mais cara de mau ele fizesse, menos seria provocado. Então, acabou virando o “bolinho-de-banana-esquisitão”. Ele começou a ser, em vez de constantemente provocado, evitado pelos colegas. Marcos não oferecia perigo nenhum, e se alguém tentasse falar com ele, ele logo abriria um sorriso. Mas sempre que via os garotos que faziam de tudo para tirá-lo do sério por perto, esboçava uma cara de “sai pra lá”, que no começo foi ignorada, e usada para zoá-lo ainda mais. “Você tem dor de barriga, cara?” – gritava um garoto, “só pode ter comido bolo de banana demais” – completava algum outro, para completar a piada. E assim foi por algumas semanas. Até que uma vez ele, em vez de perder a calma, deu um soco forte o suficiente num garoto maior, e o fez cair sentado. Tinha dado o soco no peito, pra não machucar demais, porém ainda assim tinha feito forte o suficiente, talvez desse modo os garotos parassem. E funcionou, em parte. O garoto que tinha tomado o soco contou tudo para a professora – Profª. Marina, uma professora com cara de japonesa, com uns cinqüenta anos, e que falava “poblema” – e esta chamou a avó de Marcos, e os pais do outro garoto. E então, por mais ironia do destino que pareça, Marcos tomou uma advertência por ter dado um só soco, enquanto o outro garoto, Yuri, nunca tinha tomado sequer uma bronca por perturbar o garoto durante três anos. Não que tenha afetado muita coisa, mas foi claramente injusto, e Marcos sabia disso, mas de nada adiantava contar, nessa hora, todas as coisas que Yuri já tinha feito pra ele. Iriam dizer que ele estava querendo levar Yuri – a vítima – junto pro buraco com ele. Como se fosse tudo invenção dele, pra não se ferrar sozinho. E mesmo que Marcos não fosse assim, os adultos “responsáveis” não tinham como saber, já que a maioria das outras crianças fazia exatamente isso. Então calou-se, e aceitou a advertência e a surra que tomou em casa.
     As provocações físicas pararam, pois a diretora da escola – Dona Sônia – tinha dito que ficaria de olho em Marcos, e qualquer coisa que acontecesse ao garoto seria rapidamente apurada, e todos os envolvidos seriam punidos caso ela “sequer pensasse em sonhar” que Marcos não fosse o único envolvido. Mas as verbais continuavam. Aquelas indiretas e que continuam cruéis. Sempre escrevendo “bolo de banana” na lousa, ou então fazendo referência aos apelidos do garoto em conversas que tinham o volume propositalmente aumentado, para que Marcos ouvisse. E voltaram os esbarrões e todas as outras provocações que tinham sido abandonadas. Tanto é que virou hábito dele juntar todos os cadernos, lápis e canetas do chão, sempre que chegava à sala de aula. E ele nada poderia fazer, imagine tomar uma suspensão? Ele não era garoto de tomar suspensão, era demais pra ele. Tudo que ele fazia era ignorar, o máximo que podia. Porém, algumas vezes, ele não conseguia agüentar, então pedia licença da sala, e tentava ao máximo, segurar o choro no corredor. Ele arregalava os olhos o máximo que podia, e não deixava cair uma lágrima sequer, era a maior demonstração de valentia que ele podia dar, não deixar uma lágrima cair no meio dos outros. E ele muitas vezes teve que sair às pressas para o corredor, para que as poucas lágrimas que escapavam conseguissem cair longe da vista de todos aqueles rostos que sempre se mostravam ansiosos para qualquer demonstração de fraqueza por parte de Marcos.
    Ele parou de andar de bicicleta por ai, não queria mais passar na frente do prédio de Adriana, não estava mais interessado em passar intervalos no pátio da escola, não jogava mais futebol, não falava mais com professores e muito pouco com a própria família. Passava a maior parte do tempo brincando sozinho num terreno baldio ao lado de sua casa, ele era um exército de um homem só. Tinha uma espada de madeira e pregos que ele mesmo tinha feito, e um escudo que era uma tampa de panela roubada da cozinha de sua avó, e então ele brincava por horas em silêncio, deixando que apenas sua imaginação falasse. E na escola, ele descobriu que poderia passar os intervalos na biblioteca, onde ele ficava em silêncio, já que lá era “desabitado” – excetuando-se Madalena, uma senhora que parecia ter uns oitenta anos, e estava sempre lendo algum livro gigante, com capa de couro e empoeirado. E naquele silêncio, ele se via cercado de livros, que o divertiam muito. Tantos os contos de fada que ele leu. Tantas as histórias incríveis que ele tinha visto acontecerem bem na frente de seus olhos, e esse era o alento que ele tinha por cerca de meia hora, até ser forçado a voltar para o mesmo inferno que ele tinha que agüentar na sala de aula. Mas logo que conheceu a biblioteca, ele fez uma carteirinha, e pegava um livro novo quase todo dia. A carteirinha era uma cartela, com quinze páginas, e a cada livro pego, lido e devolvido no prazo, ele ganhava uma carimbada em uma das páginas, e quando completava-se a cartelinha, ele podia pegar um livro de uma estante reservada para ele, estante essa que tinha apenas livros novos, e que não estavam disponíveis em nenhuma outra parte da biblioteca. Logo o menino tinha vários livros daquela estante reservada, e lia como se aquilo pudesse ajudar-lhe de algum modo a escapar do pesadelo que vivia, e que não conseguia fugir de modo algum. E incontáveis eram às vezes que Profª. Marina lhe chamava a atenção, pois ele parava de fazer as cópias e contas para ficar lendo no meio da aula, muitas vezes usando um casaco com capuz, pra não ter que ver os meninos fazendo troça dele.
     Marcos tinha recém feito dez anos, e como presente, ele ganhou vários rabiscos em seu caderno, nas folhas que seriam usadas pra copiar a matéria. E esses rabiscos estavam dizendo coisas do tipo “quem diria que iriam esquecer um pedaço de bolo por tanto tempo na geladeira”, ou “deve ter um gosto muito ruim esse bolo, pois está abandonado faz dez anos”, fora as tantas outras folhas que tinham sido apenas sujas de cola ou de caneta. Ele conseguiu um outro caderno, e ganhou toda a matéria perdida em folhas copiadas à mimeografo pela professora.
    Até que certo dia, Profª. Marina propôs para a classe uma avaliação diferente. Era o terceiro bimestre, e a classe já tinha feito duas avaliações de português onde se faziam apenas perguntas sobre a matéria, e sobre textos que estavam na própria prova, e a professora queria tentar algo novo. Pensou que os alunos já estavam suficientemente maduros para escreverem uma redação como prova. Mas não apenas uma redação sobre algum tema – como era a lição de casa – em vez disso, eles escreveriam uma historia inventada por eles mesmos. Não teria um limite de linhas, nem seria proposto nenhum tema. Os alunos logo se animaram, poderiam escrever uma historia de apenas cinco linhas, e assim poderiam ficar com os dedos mais tempo enfiados nas calças, ou então poderiam comer mais cola. Marcos, claro, logo se animou com essa possibilidade, pois nunca tinha pensado antes em escrever ele mesmo, uma historia igual às que ele lia nos livros. Nunca tinha passado por sua cabeça a possibilidade de, criar ele mesmo uma historinha, e depois lê-la, e então encantar-se com alguma aventura que ele mesmo tinha criado. Por esse motivo ficou demasiadamente ansioso com o dia da “prova”.
     Estava marcada essa prova exatamente para uma semana após aquele dia. E durante essa semana, Marcos nada fez além de pensar em como seria sua história. Ficava pensando nela até antes de cair no sono, e chegou a sonhar com algumas possibilidades. Pensou tanto em como criar a historia, e como seria ela, que escreveu mais de dez durante essa semana, todas rejeitadas por ele. Todas “faltavam alguma coisa”. Mas ele não desistia, muito pelo contrário, a cada historia que fracassava logo após ser lida por ele mesmo, dava mais ânimo ainda, pois ele mesmo sabia que não era do dia pra noite que ele conseguiria ficar bom em imaginar todas as coisas que eram colocadas em livros. E no dia em que chegou a “prova”, ele estava tão ansioso que mal conseguia sentar-se na cadeira. Suas mãos tremiam, e ele mal conseguiu apontar o lápis que tinha separado pra usar apenas para aquele dia.
    A professora passou distribuindo folhas de almaço para toda a classe. Logo após colocou o cabeçalho na lousa. Marcos já estava adiantado, estava com o cabeçalho pronto antes mesmo de a professora começar a passá-lo na lousa. E então viu toda a sala, rindo debilmente, viu bolinhas de papel voando, e viu os olhares maldosos que estavam soltos no ar. Mas ele concentrou-se, suas mãos pararam de tremer, e então ele pôs-se a escrever quase que freneticamente. E as linhas brotavam com uma facilidade incrível, o garoto estava quase embriagado com a sensação que tinha. Escrever tinha se tornado tão – ou mais – prazeroso que a leitura. Pois ali ele tinha total liberdade, ele decidia quem morria, qual era a cor do dragão, e se a princesa era bonita. Era uma infinidade tão grande! E ele logo se deu conta dessa infinidade, logo percebeu que aquela era alguma coisa que valia a pena. Alguma coisa que, se o fizesse chorar, valeria tanto a pena que ele o faria mesmo assim.
      Ele não se deu conta de que o resto da sala tinha terminado a redação, enquanto ele ainda estava no meio. Todos tinham entregado as folhas de almaço para a professora com vinte minutos de antecedência (prazo mínimo estabelecido por ela para a entrega), enquanto Marcos estava totalmente envolvido pela escrita. Sentava-se no meio da sala, e por esse motivo, virou alvo de várias piadinhas uma vez mais. Foi chamado de “retardado”, “lerdão”, “tartaruga” entre outros, mas ele nem ouviu-os. Escrevia o melhor que podia, e dava a própria vida em cada palavra que escrevia, e não estava importando se sua mão doía – ainda que, por um momento tivesse desejado que fosse ambidestro – ele continuava escrevendo, e quando tocou o sinal, ele teve tempo apenas de colocar um ultimo ponto final em sua historia. Ele tinha escrito nas quatro páginas da folha que lhe tinha sido entregue, e sua mão latejava demais, pensou que se tomasse uma martelada na mão nem iria mais sentir, de tanto que a mão doía. Chegou a imaginar que esta estava inchando. Mas estava satisfeito com a historia, ainda que não tivesse lido. Mesmo que nem lembrasse da metade do que tinha escrito, ele estava muito sereno, tanto que passou o dia inteiro sendo chamado de vários nomes, e não conseguiu ouvir nenhum, os colegas soavam como se estivessem aos pés de uma montanha, enquanto Marco estivesse no topo... Ele estava muito alto para consegui ouvi-los.
      Foi pra casa o garoto, e eram apenas três e meia da tarde quando ele dormiu, exausto. Acordou apenas para jantar, e voltou para sua cama, e dormiu um sono sem sonhos, pesado como uma pedra. Sua avó costumava dizer que quando alguém dorme muito exausto, nem mesmo um trovão é capaz de acordar essa pessoa, e talvez ela estivesse certa, pois quando Marcos acordou era uma manhã chuvosa, mas ele não tinha ouvido nenhum trovão enquanto dormia, logo ele que acordava com o barulho de um alfinete caindo no chão.
         Arrumou-se normalmente, tomou café, e foi andando para a escola. Não estava mais tão animado, estava pronto para devolver o décimo quinto livro de sua quinta cartela, pegar outro livro novo e esperar que ele não fosse riscado e sujo de cola-refeição pelos outros colegas. Entrou na sala, foi para seu lugar, e antes de sentar, olhou para a cadeira, que estava, como de costume, cheia de sujeira, e mais cola, e a cola formava o desenho de um pênis, “clássico, porém velho”, ele pensou. Trocou a cadeira e sentou-se. Leu na sua carteira, que estava toda rabiscada várias palavras que foram no dia anterior usadas para apelidá-lo. Mas não as reconheceu, ele não tinha ouvido coisa alguma na manhã anterior, mas logo reconheceu que aqueles deveriam ser alguns dos novos apelidos que ele teria, não que ele se importasse. Tinha um livro novinho para ler. Era o livro que ele mais queria ler, desde o último que tinha lido. “Atlantis, a cidade submersa” era o nome, e tinha uma capa azul com o desenho de homens-peixe nadando em direção a uma cidade que era protegida por uma cúpula que parecia ser de vidro. Ele pensou que aquela cidade era como ele, um aquário ao contrário, isolado no meio de um monte de água. Os outros alunos ainda estavam chegando, e o ignoravam, como normal. Logo entrou a professora, anunciando que iria devolver todas as historinhas, que já estavam corrigidas. E que uma tinha sido escolhida, e esta seria lida por ela, e depois todos os alunos iriam copiar a redação escolhida no caderno, e fazer exercícios sobre ela. E isso serviria como uma nota extra para os que não tinham se saído bem na redação. “E não são poucos que precisam do ponto extra”, disse ela. E logo começaram a gritar “O retardado vai precisar”, “Aposto que esse ai vai ter que copiar a redação sete vezes pra conseguir nota zero”. Marcos ficou vermelho.
    A professora entregou todas as redações, inclusive a de Marcos, que tinha um grande “10,0” acompanhado de uma carinha feliz e um parabéns abaixo da nota. Enquanto ele olhava sua nota, escutou vários outros resmungando sobre a nota, e gritando que tinha havido uma injustiça tremenda. E a professora disse “todas as redações foram lidas e corrigidas, vocês não são mais terceira série pra ganharem nota de graça!”. Ele pensou que dispensaria a carinha feliz da prova por uma foto da sala naquele momento. Então, Profª. Marina colocou ordem na classe, fez todos se calarem, e começou a ler a redação escolhida. Primeiro leu o título, que era “O pacote de bolachas e cachorro cinza que gostava de chocolate”, e depois de olhar pra classe e sorrir, ela começou, com empolgação, a ler a redação:
    Era a historia de Marcos, ele sabia, e conteve, com maestria, um sorriso orgulhoso que ele sentiu vontade de dar. A historia falava sobre um garoto que tinha comprado um pacote de bolachas recheadas, e que tinha sido atacado por um buldogue cinza enquanto comia as tais bolachas, então inicia-se uma briga entre o menino, o cachorro, e um gato intrometido, pelo pacote das bolachas. E a historia falava das mordidas de formiga que o garoto tomava, das picadas de abelha que sofria o gato, do arranhão que o cachorro sofreu no olho. E no fim, os três – cachorro, garoto e gato – percebem que quase todas as bolachas voaram do pacote enquanto lutavam, e sobrava apenas uma, e então, decidem dividir a ultima bolacha em três partes iguais, e quando tiram a bolacha fora do pacote, e vão dividi-la, passa uma pomba e rouba o ultimo biscoito das mãos do garoto. E os três ficam a ver navios enquanto a pomba, se exibindo toda em cima de uma árvore, se delicia comendo aquela “preciosa delícia que tinha sido roubada” do garoto com tanto facilidade.
     Marcos olhou em volta, e viu que a sala toda ria da historia. Todos estavam maravilhados e entretidos com as peripécias do garoto, com a força do cachorro, com a astúcia do gato, e estavam também revoltados com a atitude de gatuna daquela pomba, alguns até gritavam “que maldita essa pomba, eu subiria naquela árvore e pegava minha bolacha de volta!”. E então a professora, que estava vermelha de rir da história, pediu “Os aplausos que essa historia merece!”. Todos aplaudiam vigorosamente, alguns assobiavam. A sala fazia muito ruído. Provavelmente todos da escola deviam estar ouvindo aquela quarta série barulhenta, que estava embriagada com uma comédia tão bem feita. Então a professora falou:
 _Aplaudam o colega de vocês que escreveu essa historia! – e todos se entreolharam, mas como nenhum deles assumiu a autoria daquela historia, a professora foi forçada a falar novamente – Foi o colega de vocês, Marcos, que escreveu essa historia, aplaudam-no, ele merece.
   E então, a sala que ainda estava agitada se calou. Não ouvia-se nenhum aplauso, nenhum assobio, nenhuma voz. Parecia que tinham matado todos naquela sala. E a professora estava agora com um sorriso solitário na frente da sala. Enquanto todos, sem expressão, apenas encaravam o garoto sentado no meio da sala. Nada foi falado por cerca de dois minutos, e Marcos estava quase tendo que ir para o corredor uma vez mais. Até que Yuri foi o primeiro a falar:
_Eu nem gostei desse lixo de historia mesmo, parece uma daquelas que você lê num livro velho e cheio de poeira que nem Madalena.
   Então a sala voltou a falar, porém todos concordando com Yuri. Marcos olhou para a para a professora, que não sabia qual reação esboçar. Ela mandou a sala se calar, e logo todos estavam copiando a redação de quatro páginas de Marcos, e respondendo os exercícios. Todos, menos o autor, que teve o privilégio de ficar lendo durante a aula. Todos reclamaram durante a aula sobre o tamanho da redação, mas Marcos os ignorou, aquela era a vingança que ele podia ter após três anos e meio quieto e agüentando aqueles idiotas.
   Mas na saída, cerca de sete meninos cercaram Marcos numa parte mais quieta de uma rua que ele pegava para voltar para casa, e espancaram-no até cair, logo após isso, abriram suam mochila, pegaram o livro de capa azul, rasgaram todas as páginas, picaram-nas e sujaram de cola tudo aquilo que tinha sobrado dos cadernos e da mochila – e até do próprio garoto. E depois correram. O garoto se levantou, e estava voltando para casa, manco e todo sujo de cola e papéis, quando conseguiu ver de relance, andando logo atrás dele, Adriana, que tinha um sorriso malvado estampado na boca. Enfim ela tinha reparado nele.