terça-feira, 11 de dezembro de 2012

Será que se eu pular, eu chego do outro lado?


Eu não sei qual ideia eu tenho quando levanto da cama de manhã. Não sei qual pensamento se abate sobre mim quando a porra do despertador toca, e eu deixo que ele me acorde. Eu ainda não consegui entender o motivo maior, aquela coisa me me segura, e não me faz jogar o despertador na parede. Eu sou maior que ele, e jogá-lo na parede resolveria todos os meus problemas. Seriam manhãs inteiras de sono, e dias inteiros livre, sem ter que correr para um lado e para o outro. Ou então, semanas e meses cheios do silêncio que se faz quando não escuto aquele "BEEEP BEEEP BEEEP". Talvez eu não possa fazer isso, mas eu bem que queria. Não consigo imaginar  - pra variar - de onde tirei a ideia de viajar pra fora do país, ainda mais ir para os Estados Unidos, aqueles caras são paranóicos, ficaram com medo até do meu ipod (ipod se escreve junto). Depois de tantos documentos, tantos lugares pra ir, tantas coisas pra provar que eu não sou um psicopata...eu to quase sentando e vendo o mundo acabar com um toddynho na mão (álcool faz mal pra saúde, ouviram crianças?). Mas de qualquer forma, uma estadia na Califórnia não pode ser desprezada. O estado americano que recebe mulheres do mundo todo... meu deus, uma chuva de mulheres. Mas ainda vou pensar se vale à pena.

Fato é que o maldito despertador teve de fazer hoje, novamente, seu trabalho. Me acordou às 07:15 (uma hora e quarenta e cinco minutos a mais que o normal, ainda assim, cedo demais). Tive que ir para uma parte da seleção para a obtenção do visto. Uma coisa bem de retardado - ou de americano, eu trato os dois como sinônimos. Estava marcado para ás 10:45, ou seja, tempo de sobra. Levantei, fiz a cafeteira trabalhar. Se o despertador me acorda, eu acordo a cafeteira, e ela acorda meu intestino. E enquanto o café não estava pronto, eu fui me trocar, joguei as cuecas sujas num canto - desses bem escondidos, para eu pode esquecer dessa cueca -, coloquei cuecas limpas, passei desodorante, pois todos os psicopatas são fedorentos que não usam desodorante, então peguei um jeans surrado, um par de meias decentes, e coloquei, logo em seguida calçando meu all star. Não é por ser fashion, ou querer andar na moda, eu só tenho aquele par de pisantes, eu gosto deles. E escolhi entre umas das minhas poucas camisetas. Procurei a que me fizesse ficar menos parecido com um psicopata. A camiseta do Pantera escrita "Cowboys From Hell" não iria me ajudar muito, a camiseta do Iron Maiden escrita "Death On The Road" ... não era bem o apropriado, pensei. Fiquei com a camiseta surrada do Ac/Dc, e puta que o pariu, era a mais surrada. Mas ainda assim, uma boa banda, uma boa camiseta, e ainda me fazia parecer apenas um moleque que ouve rock, gostei disso. Nenhum menino que ouve rock e usa all star é considerado psicopata sanguinário (ou pedófilo, traficante, terrorista, etc). Estava enfim vestido como sempre. Isso me deixa mais confortável e confiante, saber que eu estou parecido como sempre, e que as pessoas vão me olhar do jeito que sempre olham. Com isso eu sei lidar. Logo que terminei de me vestir, meu café estava pronto, servi uma boa quantidade em uma caneca, e coloquei um pouco de açúcar - não muito, muito açúcar afeta sua masculinidade. Passei manteiga num pão, não muita, muita manteiga afeta sua masculinidade. E comi bem devagar. Pois tem o ditado que diz "Comer depressa afeta sua masculinidade" ... não é isso, mas é quase isso, e eu passei a mensagem, e passar a mensagem é o importante. Terminei de comer e fui arrumar minhas coisas. Chaves, ipod,  (junto...se escreve junto!), celular, cartão de crédito, um livro pelo qual nunca paguei, nem eu, e nem ninguém (Numa Fria - Bukowski... você só é um macho alpha quando lê Bukowski, nunca vi um macho alpha que não tivesse lido Bukowski). E claro, peguei aquele tufo de documentos, era muita coisa, devia ter ali umas cem folhas com autorizações, fotos, documentos, cópias de coisas inúteis, pornografia com cavalos... não... essas eu preferi deixar em casa. Eram sete e quarenta e cinco.

De qualquer forma, eu estava pronto pra sair de casa, e ir para mais um lugar que iria me levar ao sonho californiano. Logo seria eu e três belas garotas, uma mexicana, uma loira e uma ruiva, todas de biquíni e besuntadas em óleo, se esfregando em mim com vontade, e dizendo o quanto eu era lindo e perfeito, e que tinham esperado a vida toda por um homem como eu. E me fazendo propostas de casamento, tudo para não me deixar voltar. Me dariam um filho, uma casa e um greencard, apenas para continuarem com meu corpo entre o corpo delas todas. Mas eu tinha que por minha cabeça no lugar, e eu ainda estava em casa, e tinha uma caminhada de vinte minutos até o metrô. Destranquei o portão, saí, e tranquei-o novamente, certificando-me de que ele estava realmente trancado... nunca se sabe, e eu não confio em fechaduras, cadeados e coisas do tipo. Me parece o tipo de coisa que os caras fabricam para não trancarem, e aí eles vendem os cadeados para as prisões, que vão segurar os caras que teriam arrombado minha casa, e ai esses cadeados - os da prisão - seriam ruins, e aí os presos fugiriam, e aí a tal empresa de cadeados poderia vender cadeados para os ricos poderem se proteger, e fariam também cofres imensos para eles protegerem o dinheiro deles, mas esses seriam também propositalmente ruins, essa coisa é só um ciclo vicioso, e os únicos cadeados bons, são aqueles que protegem a fábrica de cadeados, e aqueles que são também usados pra trancar as casas dos caras que vendem cadeados, eles não curtem o caos que provocam, e eu não sei porque diabos eu estou falando disso.

De qualquer forma, meu portão parecia bem trancado, e eu espero não entrar nesse ciclo dos cadeados. Comecei a andar até o metrô. Precisava de música, calma, alta, e que me fizesse dar uma viajada. Comfortably Numb foi a escolhida - não do dia, é mais um costume... coloco ela como primeira música, ai posso sempre começar meu dia ouvindo ela. Ajuda de verdade, aquele cara... Gilmour? Sim, Gilmour, ele sabe fazer uns solos, tenho que tomar cuidado pra não chorar enquanto escuto aquela música, mas não consigo não cantar. Um dia aprendo a tocar guitarra só pra tirar essa música. A caminhada até o metrô era bem tediosa, não tinha muita coisa pra se admirar, eram subidas e descidas longas de monótonas, e os pontos de referência são sempre fáceis de se ver. Tinha um mercado na esquina, e um muro com um grafite bonito que foi estragado por uma pichação que dizia "Mais respeito" e "Eu picho, você pinta, vamo ver quem tem mais tinta" , tinha também a loja de chocolates, e a praça... mas num todo, era só um monte de retas, e pode-se ver toda a inclinação da rua, de tão retas que são. O ser humano sempre teve essa maldita tendencia de deixar o mundo todo reto. Até a sua coluna eles querem que seja reta. Logo acabou Comfortably Numb, e a música que começava era Cold Shot, dum texano metido a besta que enfiou seu helicóptero na neve pra esfriar a cabeça, dizem que ele não tinha um cheiro muito bom, mas não lembro da guitarra dele ter nariz. Passaram-se mais algumas músicas, e mais uns minutos daquela caminhada chata e incessante até eu avistar o metrô. Eu ainda tenho a fixa ideia de que todos no metrô são frangos que entram no caminhão que os leva pro abate, e fazem isso de livre e espontânea vontade. De qualquer forma, entrei na estação do mesmo modo que faço todo dia. Tudo parecia normal. Os mendigos, os cachorros, os policias no canto - sempre o mesmo canto. E os frangos, dúzias deles, centenas deles, milhares deles...segundo estimativas, milhões deles. Me dirigi à bilheteria, tateei meus bolsos à procura do dinheiro pras passagens, que ótimo, tinha esquecido o dinheiro em casa, e já eram oito e três... maldito despertador, sempre fazendo seu trabalho.

Voltei correndo pra casa, claro. Nem notei todas aquelas pessoas que me olhavam de soslaio. "Olhe que homem louco! Correndo por aí como se o mundo fosse acabar..olha, milho cócócó". Cheguei em casa em doze minutos, e eu corri o máximo que pude, peguei a grana das passagens (de ida e volta, não ia querer correr até em casa pra pegar a grana de novo... deve ser uns vinte quilômetros até o lugar da entrevista, então correr vinte quilômetros pra pegar o dinheiro da passagem pra voltar pra casa, e voltar correndo até o metrô pra poder voltar pra casa não me parecia uma opção agradável). Voltei correndo para o metrô, eu já estava ofegante no meio do caminho, mas me forcei a continuar. Meu peito queimava quando eu cheguei novamente no metrô, e eu estava suando feito um porco, que ótimo. Treze minutos na volta. Puta que o pariu, eu tinha perdido nessa brincadeira no mínimo vinte e cinco minutos, já era oito e meia, e pra variar, eu estava começando a ficar paranóico com isso. Entrei na fila pra comprar as passagens, sempre tinha reparado no quanto as pessoas são esquisitas ao máximo no metrô, nunca pensei em ver um homem vestido de amarelo, verde, com um tênis laranja e um boné vermelho da Ferrari e ainda por cima usando um óculos de mosca. Não antes de começar a andar de metrô. Comprei as duas passagens. Três reais cada. Não acho caro pelo tanto de diversão que eu tenho lá dentro - do metrô... vagões e essas coisas. Mas os óculos de mosca sempre reclamam. Entrei na fila pra poder passar na catraca... o ser humano gosta tanto de retas que toda vez que se junta forma uma. Uma reta formada por humanos que gostam de retas, gosto de pensar por esse lado. Coloquei o bilhete naquele buraquinho - de colocar o bilhete, largue de pensar besteiras, tem coisas mais interessantes para enfiar no cú. Eu sempre me perguntei pra onde diabo vão todos os bilhetes que colocamos la dentro. Será que eles usam como combustível? Ou então moem toda aquela porra e colocam no hambúrguer do McDonald's... ou pior (melhor talvez), só reciclem aquela coisa, e fazem você pagar mil e trezentas vezes pelo mesmo bilhete. Não sei, não sei nem como cabe tantos bilhetes num buraco de catraca só. Deve ter algum portal ali...só pode!

Gosto de descer as escadas rolantes, sempre penso que sou um ser superior descendo à Terra para glorificar toda a raça humana com minha incrível sabedoria. Gosto de olhar o decote das mulheres que estão abaixo de mim. E de olhar as pernas das que estão acima. Gosto de encarar os que estão no contra-fluxo. E gosto de tocar guitarra imaginária enquanto estou na escada rolante. Devo Ser algum astro do rock numa descida apoteótica, com minha guitarra de ouro e pele de lagarto, e minha roupa cheia de cristais, descendo no meio do palco enquanto o público me ama. Gosto disso, pena que dura só trinta segundos essa tal descida. Logo que desci o trem já estava parando, e abrindo aquelas portas mecânicas que sempre me lembram algum filme de terror. Entrei - como sempre - na ante penúltima porta do primeiro vagão. Ela sempre me deixava exatamente na boca da escada rolante da estação que eu queria. O trem não estava lotado, mas tinha gente o suficiente pra ocupar todos os bancos. Até mesmo os preferenciais, merda. Sentar nos bancos preferenciais de metrôs e ônibus era igual a sentar no chão, ou comer de boca aberta. Todos sempre te olham com uma cara de nojo, ainda que não exista nenhuma lei que diga que é proibido, o mundo é louco, mas eu preferia ver o mundo louco sentado num banco azul de deficientes. Lembro-me de uma vez que me fiz de retardado mental para poder sentar num daqueles bancos sem nenhum olhar incriminador. Fiquei fazendo careta e puxando assunto com todo mundo, até me babei uma hora...não sei se eles caíram, um cara tão lindo como eu nunca poderia ser retardado, mas de qualquer forma, muitas pessoas riram (me incluo nessa, mas nunca mais vou repetir, já que uma senhora se ofereceu pra limpar a saliva que tinha escorrido pelo meu queixo, e ela passou a mão em muito mais lugares que meu queixo, todo o resto da viagem). Eu estava na linha vermelha, ou seja, a menos civilizada de todas - contando com o fato de eu estar num vagão cheio de frangos, civilidade não é algo à ser cobrado.O metrô estava rápido. Ou pelo menos na média de velocidade, naquela na qual ele sempre tem de estar, mas como quase nunca consegue manter essa velocidade, quando consegue, isso é como se ele estivesse rápido. A viagem na linha vermelha durou "apenas" meia hora. Ou seja, já eram nove horas. Me restava apenas mais uma hora para chegar na tal entrevista. Malditos americanos, e malditos os seus horários de merda.

Fiz a conversão para a linha azul. Essa é ligeiramente mais civilizada. As pessoas são um pouco mais educadas, e os trens fedem um pouco menos. Talvez pelo fato de serem mais novos, ou pelo fato de que essa linha seja quase toda subterrânea (enquanto a vermelha tem quase todo seu trajeto feito debaixo do Sol). Não sei ao certo, mas fato é que nessa linha eu me sinto um pouco menos desconfortável. É que eu tenho tendência a suar frio naquela chacoalhação toda. Muitas vezes me esforço pra não vomitar pela janela do vagão, porém na linha azul essa vontade diminui.  Mesmo assim, ainda parecem frangos. E eu tenho uma mania chata de contar quantas pessoas entram e saem do vagão a cada estação. Mas não dessa vez, eu tinha alguma coisa decente pra ler. Ler no metrô é difícil, além de ficar enjoado naquele diabo de lugar, é sempre apertado, sempre cheio, então tenho que fazer um esforço extra pra conseguir. Mas vale à pena, sempre vale. Andei umas seis estações, ou quatro, não lembro. Desci na estação Vila Mariana. Um saco de lugar, conheço muito mal aquele pedaço, mas de qualquer forma, tinha o endereço, então a única coisa que tinha a fazer era seguir caminho até aquele prédio. Sempre me imagino como um Indiana Jones nessas horas. Um aventureiro explorador, desbravando os perigos da cidade. Me defendendo com unhas, dentes e ipod dos batedores de carteira, usuários de crack e velhas que ficam no seu caminho não importa a sua direção. E sempre tem os checkpoints, onde eu salvo meu progresso - eu to falando dos pontos de táxi, postos policiais, botecos e qualquer outro lugar onde tenha gente que pareça conhecer o lugar, aí eu posso perguntar se estou na direção certa. E mesmo que muitas vezes eles me sacaneiem, eu ainda consigo me manter mais ou menos na direção certa.

O caminho foi tedioso, muito tedioso. Eu estava na calçada ao lado de uma avenida de quatro faixas, e seguindo sozinho pela calçada. Me senti como na cena de algum filme de velho oeste, quando o cara durão sai sozinho pelo acostamento de uma estrada no meio do deserto, com uma espingarda, um cantil, uma faca e uma pistola no coldre, só que minhas armas são diferentes, elas não atiram - que droga, não?. Mas logo eu avistei um monte de gente. E eu não estava exatamente perto, é que devia ter umas cem pessoas atulhadas na entrada daquele prédio. "Cheguei", pensei.  E realmente eu tinha chegado, só não esperava ver tanta gente lá.

Só que quando cheguei lá, ás nove e quarenta e cinco, descobri que meu horário era, na verdade, dez e quarenta e cinco, e não dez horas. E descobri isso do pior jeito, passando vergonha na frente de todo mundo, que novidade. Eu cheguei, e os instrutores que ficam na entrada do prédio estavam gritando "Quem está agendado para às dez horas, por favor, entrem nessa fila prioritária. Celulares, ipods, chaves, objetos cortantes e isqueiros não são permitidos!!" . Que ótimo, eu tinha todos esses objetos. Mas como tem gente esperta no mundo, tinham uns guarda-volumes ali perto (ao lado do prédio para ser exato), Cobravam dez reais a cada hora por um armário no qual mal cabia uma mochila, mas fazer oque? Era isso, ou tacar minhas coisas todas numa vala. Que seja, saquei o cartão de crédito e fui até a tiazinha, que ficava nos fundos do estacionamento/guarda-volumes, passei os dez reais. Ela tinha uma verruga meio esverdeada no nariz, que parecia uma bala de menta com pelos. Ela me conduziu até o armário numero 13 - se eu fosse um cara com superstições, iria começar a chorar nesse exato momento. Beleza, problema solucionado. Entrei correndo na fila, e esperei os seguranças me revistarem. Passaram o detector de metais em mim. Ele não apitou, mas os seguranças riram, e disseram que eu tinha habilidade em ser revistado. Na minha mente eu dei um murro no meio daquele nariz pontudo e torto dele. Lá dentro do prédio, outra fila, mas ali tinha umas ajudantes, umas meninas legais, vinham falar com você, e te mostrar quais documentos você teria de apresentar, e a ordem de cada um deles. Ela tirou uma folha daquele bolo de documentos, e por sorte eu tinha deixado a pornografia com cavalos em casa, aquela folha estaria junto com ela. Examinou a folha, e disse-me com a voz mais amigável que conseguiu "Senhor, seu horário é só daqui quarenta e cinco minutos". Puta que o pariu, pra variar, eu comecei tudo errado. Me dirigi a saída, e enquanto eu saía todo mundo ria de mim. Claro que tentando disfarçar, mas imaginem só, aquele louco que vive correndo e suado passando mais um vexame. Era tudo que eles queriam. Que seja, tinha quarenta e cinco minutos pra ficar torrando no Sol, não poderia querer outra coisa.

Nesse momento comecei a notar o motivo de todo mundo olhar pra mim e rir. Comecei a entender o motivo de ser - pra variar - a gozação das pessoas. Notei que todos ali eram bonitos, e estavam bem vestidos. Notei que todos pareciam felizes e ricos. E tinham roupas caras, sapatos caros, óculos caros. E tinham cheiro de perfume caro, eles tinham aspecto de serem caros. Tinham cara de serem as pessoas que limpam o rabo com notas de dólar. E eu estava mal vestido, suado, e ainda por cima tinha passado vexame. Aquele era o tipo de gente que não passava vexame. Os caras ali estavam usando ternos bonitos demais para passarem vexame. Tinham os cabelos arrumados demais para serem capazes de fazerem qualquer coisa vergonhosa. E as mulheres ali tinham vestidos, cabelos loiros, e classe. Até aquelas lindas crianças loiras dos olhos azuis tinham um toque de superioridade - eram o tipo de criança que aparece em comercial, mas que é esnobe até com os próprios brinquedos, aquelas crianças que tinham bicicletas de marcha.  Eu estava no meio de gente superior. Pessoas superiores nunca erram. E eu usava um jeans surrado, e um all star batido. Foi a primeira vez que senti vergonha de ser eu mesmo em algum lugar. A primeira vez que a minha roupa me deixou indignado. E eu tentava esconder meus sapatos, e tentava secar o suor, mas nada adiantava. Eu continuava sendo a piada. Tive que pedir pra tiazinha da verruga passar mais dez reais, pelo tempo do armário, já que iria demorar mais que uma hora até ter saído daquele inferno. O tempo foi passando devagar, e eu fui perdendo a graça para os classudos do lugar. Tinham entrado umas nuvens na frente do Sol, e graças a Goku eu parei de suar. Mas ainda fiquei com aquela sensação de estar pegajoso, e não me sentia muito bem no meio daquele povo que não sua e nem fede.

Os quarenta e cinco minutos se passaram, e os organizadores começaram a gritar "Todos que tem entrevista marcada para as dez horas e quarenta e cinco minutos, por favor, entrem nessa fila.  Celulares, ipods, chaves, objetos cortantes e isqueiros não são permitidos!". Beleza, dessa vez eu sabia meu horário. Sem vexame, eu espero. Entrei de novo, e estava esperando pra ser revistado pelos seguranças, com aqueles detectores de metais que mais parecem aspiradores de pó, daqueles que são portáteis. Quando chegou minha vez, o mesmo segurança que tinha me revistado antes foi encarregado de me revistar de novo. Que ótimo.

_E aí cara, é tua hora mesmo? - falou com um tom bem irônico
_É, acho que fiz uma confusão, não? - ser um cara legal, e deixar passar, é a chave pro sucesso.
_Qualquer coisa, a saída é ali, acho que você já viu. - todos que ouviram isso riram, corei na hora. E na minha mente, eu já tinha arrancado dois dentes dele com um soco, e colocado esses dentes dentro dos olhos dele. Mas eu prefiro esperar pelas minhas garotas bronzeadas, e embora arrancar-lhe uns dentes me pareça muito justo, tomar uns tiros por isso não me parece divertido.

Lá dentro eles olharam os documentos, fizeram uns rabiscos numas folhas que eu tinha impresso (nenhum cavalo), e me mandaram subir uma escada até o terceiro andar, onde seria feita a tal entrevista. Era uma escada pintada de verde limão. Os caras podiam entender de documentos, mas de cores... eu duvido. Quando cheguei no terceiro andar, vi que era só uma ampla sala com pequenas cabines onde os solicitantes eram entrevistados por pessoas atrás de vidros. As pessoas detrás dos vidros falavam por microfones similares aos usados por atendentes de cinema. O vidro era grosso, mas estava extremamente limpo. E tinha uma câmera posicionada num pequeno tripé, logo atrás do vidro, umas dessas Canon que os jovens usam pra tirar fotos e postar no facebook. Fui chamado pra cabine nº 16. Onde uma atendente surpreendentemente bonita me pediu pra sentar. Meu deus, que olhos incríveis, eram os olhos mais verdes e profundos que eu já tinha visto. E mesmo não estando muito interessada em mim, sempre que me olhava, eu sentia como se ela estivesse olhando minha alma, e lendo meus pensamentos. E aqueles cabelos castanhos, quase louros de tão claros que eram, lhe caíam perfeitamente, e o seu rosto tinha um contorno delicado, com uma pele delicada, e lábios carnudos, tinha um piercing no nariz que mostrava que ela não era totalmente divina. E a voz dela combinava perfeitamente com seu rosto, era a voz mais musical que eu já tinha ouvido. Ela era perfeita. E naquele instante, eu a amei, e tudo que eu queria era poder levá-la pra casa. Tê-la pra mim, e foda-se todas as garotas bronzeadas da Califórnia. Mas ela não deu a mínima pra mim, nem sequer me olhou direito. Fez algumas perguntas sobre meu tempo de estadia, meu retorno, o quanto eu ganhava, minha intenções no país dela, e todas essas coisas. Então ela tirou minhas digitais numa maquininha na qual eu não tinha reparado, e tirou também uma foto com aquela câmera. Depois disso, disse-me que meu visto tinha sido aprovado, e que sairia na semana que vem. Me devolveu todos os documentos que tinha checado antes, e simplesmente chamou o próximo. Ela nem me disse tchau. Pelo menos eu iria ter as garotas da califórnia pra mim. Todas elas, com seus corpos esculturais, eu era um cara de sorte...

Saí daquele lugar infernal - mesmo abrigando um anjo, aquilo era um inferno. E me fui direto para o guarda-volumes. Peguei minhas coisas todas de volta, e joguei a chave do armário nº 13 no colo da velha verruguenta. Fui direto pro metrô, sem nem olhar pros lados. No ipod tocava alguma música do Iron Maiden, ou era Justin Bieber? Lady Gaga? Manowar? não lembro, não prestei muita atenção, mas a letra dizia "Ai meu deus, que coisa louca, estou apaixonado pela a aeromoça, ela mexeu com meu coração, por favor piloto pare esse avião!", deve ser Chico Buarque, só pode. Cheguei no metrô e dei graças à Goku novamente por ter comprado duas passagens, não parecia ter nenhum banco por perto.

Fui direto pro centro da cidade. Tinha que ir na imobiliária pagar meu aluguel. O centro era cheio de bancos, e se eu sacasse o dinheiro lá, não ia precisar ficar andando com dinheiro por ai. Fui num banco mais quieto, nem fila tinha. Meu dia estava começando a melhorar. O cartão não foi aceito da primeira vez... e eu demorei um pouco pra reparar que tinha colocado a senha errada. Coloquei a senha certa, saquei o dinheiro, soquei tudo no meu bolso, e fui - como sempre - para um bar, mas não pra beber, só precisava ir no banheiro contar o dinheiro, não gosto de fazer isso em público, e em São Paulo, é pedir pra ser assaltado. Ok, entrei no bar, fui pro banheiro. Tinha aquele cheiro familiar. Uma mistura de mijo com um leve toque amadeirado de vômito velho e merda escorrida, não estava tão ruim assim.Contei o dinheiro três vezes, e arrumei as notas de modo que ficasse no bolso da minha calça, mas não aparecesse. Saí do bar sem pagar nada, e ouvi o dono resmungando alguma coisa sobre "Bêbado filho da puta que é enxotado dos outros bares e vem vomitar no meu". Nada anormal. Tinha que ir no prédio da imobiliária pagar o maldito (ou bendito) aluguel, e assim eu teria onde morar por mais um mês.

No meio do caminho um cara esquisito meio que brota do nada, põe a mão no meu ombro e pergunta:

_Onde tem um itaú? - ele era um pouco mais baixo que eu, estava vestindo uma camisa branca, calça social preta e uns sapatos esquisitos. Tinha um rosto bem normal, mas tinha os cabelos desgrenhados, me lembrou um pônei velho pelo jeito de andar - ainda que eu nunca tenha visto um pônei velho.
_Não tenho certeza, mas acho que na rua de trás deve ter um. - respondi tentando parecer o mais seco possível.
_Tem certeza? - tornou a perguntar
_Acabei de dizer que não... - ele não se tocou, e nem ia se tocar.
_Você mora aqui? - "caralho, um tarado, é hoje que eu morro", pensei.
_Não. - eu estava com um tom suficientemente mal educado pra ele se tocar.
_Onde você mora? - "É, eu vou morrer hoje"
_Longe.
_Muito longe? - nesse momento ele colocou a mão no bolso, pensei que fosse tirar uma arma e me dar um tiro ali mesmo, quase saí correndo. Era um celular branco, por sorte.
_Sim, bem longe.
_Tá indo pra onde agora? - eu tive que parar, encará-lo, fiz o olhar mais insano que consegui, engrossei e subi o tom da minha voz, e disse com - oque eu pensei ser - uma calma assustadora...
_Isso de alguma maneira te interessa?
_Não mas é que...
_Então cale a tua boca, e saia daqui, seu palhaço. - eu estava quase tremendo de medo. Puta que o pariu, é hoje que eu morro.
_Mas é que a moça me disse... eu... - e nesse momento ele estava com as duas mão segurando o celular, ele recuou, e eu vi o medo nos olhos daquele homem. Ele colou o celular no peito e abaixou a cabeça, e completou - eu só tava perguntando.

Aí o pônei velho simplesmente se virou, atravessou a rua, e começou a andar o mais rápido que pôde. Ele estava basicamente paralelo à mim, e eu o encarei por um tempo. Ele se forçava a olhar pro chão, mas de tempos em tempos virava a cabeça para me olhar, e cada vez que ele notava que eu o estava encarando tornava a olhar para o chão e acelerar o passo. Eu me senti por um momento o Chuck Norris. Nem tive que bater no cara pra ele sair correndo. Eu devo ser muito macho mesmo. Incrível.

_É cada louco que eu encontro - falei pra ninguém em especial, e ninguém me ouviu. Continuei andando até chegar a imobiliária. A parte mais legal de andar no centro não é estar no centro da maior cidade brasileira. É ver o quanto as pessoas são babacas no centro da maior cidade brasileira. Tem uns gritando, outros tocando violão, mais uns fazendo mágica, tem os pastores,  os fiéis, os casais, os mendigos, é tudo muito incrível. E todos são muito babacas. Agora eu entendo de verdade o motivo do medo que as pessoas sentem em relação a São Paulo.

 O Sol ainda estava alto. Era mais ou menos uma da tarde. Quando cheguei na imobiliária eu estava empapado de suor, ofegante e precisando urgentemente de um copo d'agua. Tomei um copo d'agua no bebedouro, e fui no banheiro lavar a cara antes de subir para onde era a sala na qual eu pagava o aluguel. Só quando olhei no espelho reparei que estava usando fones de ouvido, só que não estava mais ouvindo música. Eu devo ter alguns problemas, só pode. Guardei os fone no bolso e olhei meu celular. Nenhuma mensagem, ótimo. Sequei a cara e o pescoço com papel toalha, não foi uma ideia muito inteligente, ele se encharcou todo e se rasgou, espalhando pedacinhos de papel no meu cabelo e na minha orelha. Com um pouco de esforço eu consegui tirar todos os pedaços de mim. Subi pro escritório do cara que recebia os aluguéis, o cara era um gordo branquelo, que tinha cabelo só na lateral da cabeça, e por isso penteava para o centro, pra ver se escondia a careca. Ele falhou miseravelmente nessa tarefa. Ele usava uma camisa que parecia ser inicialmente ser feita de papel crepom azul claro, mas que estava agora azul marinho por causa do suor. Ele estava mais nojento que eu, disso eu tenho certeza. Dei-lhe o dinheiro e peguei o certificado de pagamento do aluguel. Por um mês eu ainda teria onde morar. Me despedi dele com um aceno de cabeça. Só quando eu saí percebi que não tinha falado sequer uma palavra com ele, coitado. Logo que eu entrei ele começou a conversar comigo, por um momento eu podia jurar que tinha respondido, talvez pelo fato dele não calar a boca. Ele falava por nós dois. Saí olhando pro céu. Não parecia que ia chover, pelo contrário, o Sol estava bem forte lá no alto.

Passei num boteco e tirei uma nota de dez do bolso. Eu tinha sacado um dinheiro a mais, justamente pra isso. Tomei uma lata de coca-cola, e comi um salgado. Tava morrendo de fome. Tomei a coca-cola e saí ás pressas do bar, eu mal podia esperar pra chegar em casa. E lá estava eu voltando pro metrô, um astro do rock descendo as escadas rolantes enquanto procurava nos meus bolsos os últimos cinco reais me que restavam. Fui pra bilheteria, que estava vazia, muito menos gente usa o metrô ás duas da tarde. Comprei meu bilhete e guardei os dois reais que me sobraram. Estação São Bento, fiquei esperando o metrô bem debaixo da placa que dizia "Sentido Jabaquara". Chegou o trem, e ele estava vazio, ótimo, eu precisava sentar. Minha lombar já estava doendo. Peguei o livro do Bukowski que estava na minha cintura desde que tinha pego minhas coisas naquele armarinho. Abrí-o em um conto. "Dor de vagabundo era o conto... não preciso dizer que foi um ótimo conto, preciso? Falava de um cara que era um poeta muito ruim, e não falava nada com nada, mas as pessoas o adoravam, Henry Chinaski, pra variar, não gostava dele e estava bebendo, e no final do conto ele acaba num bar, bebendo com uma mulher, que criativo. Fui para o próximo conto, "Não exatamente Bernadette", e depois mais um ... e eu estava no quarto conto quando reparei que tinha passado a estação Sé - onde eu tinha que ter voltado pra linha dos frangos vermelhos... ou linha vermelha dos frangos...ok, esquece. Estação Parada inglesa? Puta que o pariu, nunca tinha estado naquela estação antes, tinha pego o trem sentido Tucuruvi. ótimo dia. Desci, do  trem e fui imediatamente para o outro lado da estação, no sentido Jabaquara. Dessa vez, eu estava de verdade no sentido Jabaquara.

Logo que o trem chegou eu avistei um cara que não via a muito tempo, um colega de classe, um cara que sempre quis ser mais inteligente que eu, e nunca tinha conseguido. Diogo era o nome. Ele tinha uns dois metros, e era gordo, mas gordo pra valer... devia estar pesando uns cinquenta quilos... tão gordo que parecia que tinha dois pães no lugar onde deveriam ser bochechas. E ele nem tinha pescoço mais, ele parecia um dedão com cabelos. Ele ainda se vestia do mesmo jeito. Camisa polo com listras horizontais, que parecia que era justa por causa da enorme barriga, calças azuis de moletom, e um tênis de mola pra amenizar o impacto nos calcanhares e joelhos - eu não creio que o tênis ajudasse muito, uma dieta seria melhor. Ele me reconheceu, merda. Entrou no vagão junto comigo, e logo puxou assunto. Perguntou da minha vida, onde morava, se estava trabalhando... essas coisas todas, eu repetia as perguntas, e não prestava muita atenção nas respostas. A única pergunta que lhe fiz com real vontade foi quanto ao meu livro. Mostrei-lhe o livro, e perguntei se ele já tinha lido Bukowski, a resposta foi "Não tive a oportunidade". Depois disso, o papo morreu, e ele é o típico cara chato, só repete os assuntos, coisa de gordo isso. Logo ele me disse que tinha recém começado a fazer faculdade de filosofia. "Essa é a minha deixa", pensei. E então comecei a perguntar:

_De quais autores você gosta?
_Platão, Sócrates, Platão, Hegel, Marx, Kant...
_E Platão? Gosto de Platão, e você?
_Sim, eu gosto, e disse Platão...
_Não, não disse...
_Tudo bem, então.
_E Nietzsche? Já leu Nietzsche?
_Já, ele é legal.
_Claro que é, até Deus leu Nietzsche!!!
_Humm....- ele não entendeu, isso é natural...

Logo nós estávamos - como ele disse - discutindo de forma amigável. Ele queria me convencer do Marxismo. Ele é o pior marxista que eu conheço, bateu o recorde. O pior dos piores marxistas do mundo. Só eu tenho o costume de ler mar-chis-ta? Aí me vem a imagem de Karl Marx cantando uma marchinha de carnaval, usando uma máscara e tudo mais, cercado de mulheres semi-nuas. E a marchinha dele se chama "A Marxa com a Xuxa só para socialistas 5", mas ninguém precisava saber disso. Logo eu comecei a cortar o papo, disse pra ele que ele era ruim. E que era melhor ele ir estudar agronomia. Que se ele parasse de ler um pouco e começasse a pensar, talvez um dia ele conseguisse ser chapeiro no McDonald's. Ele ficou irritado comigo, com razão, eu acredito. Descemos os dois na Sé, e enquanto eu estava indo em direção  a escada rolante que faz a conversão para o sentido Inferno-Itaquera, ele foi pra saída. Ainda bem. Não merecia nem mais um segundo olhando aquele molequinho escroto, nem ouvindo a voz dele.

Encontrar ele fez eu me lembrar de uma boa época, ele ficava na sala, enquanto eu ia beber no banheiro da escola. Ou então matava aula pra ir beber. Ou então nem entrava na escola pra ficar vagabundeando na rua. Tirei aquele ano todo pra ser feliz, o ano que eu mais me diverti. Eu fui reprovado, é claro. Ele foi aprovado como o melhor aluno da sala. E, é claro, fez questão de me contar, mas quando ele me contou isso - numa festinha da sala -, eu estava tão bêbado, e tão enjoado, que por pouco não vomitei nos tênis de mola que ele usava. Ele sentia nojo de mim, mas tinha que tentar ser melhor... Pobre gordinho. "Diogordo" era como chamávamos ele, ou de Barney... ele parece o Barney. Eu nunca gostei de assistir Barney, sempre preferi os Teletons... não... Teletubbies... é Teletubbies.

Estava na plataforma onde se pegava o trem sentido Inferno-Itaquera. Fui pro fundo, pra variar, já que odeio pegar o trem no meio, e se eu embarcasse na frente, ele não iria me deixar onde eu queria. Penúltima porta do último vagão, foi para onde eu me dirigi. Quando eu cheguei lá tinha só umas quinze pessoas. E já eram quase três horas. Eu queria ir pra frente. Gosto de ser o primeiro a entrar no vagão. Passei na frente de uma tiazinha - crente, pela saia jeans e pelo cabelo comprido e amarrado num rabo de cavalo - devia ter os seus quarenta e cinco anos, e já era meio gorda. Quando passei na frente dela, ela falou alto, quase um grito:

_Isso, passa mesmo, me empurra, aproveita e se joga! - pobre crentelha, querendo me fazer passar vergonha.
_Mas eu só quero pular, ver se consigo chegar lá do outro lado! - e ri.
_Então vai logo, babaca! - tsc tsc tsc, não entendem.
_Se a senhora tirar a cara feia da minha frente eu vou - comecei -, mas antes eu preciso de espaço, senão eu não chego do outro lado num pulo só! - ri alto comigo, e dessa vez todos os outros que estavam perto riram comigo, menos um babacão de terno, que era calvo, e penteava os cabelos pro meio da cabeça (que nem o cara da imobiliária, aliás, eles devem ser irmãos, só pode!).

Logo o trem chegou - já era o sexto trem do dia, chega, né?. Quando fui entrar, o irmão do cara da imobiliária me deu uma ombrada, querendo me derrubar, ele quase caiu sozinho, então eu tive que comentar com ele:

_Se queria pular primeiro, era só falar, cara... eu não ia te impedir! - ri sozinho, de novo. Pelo olhar dele, eu vi que ele queria arrancar meu olho com uma colher, e enfiar na minha bunda.

Sentei no banco dos idosos, abri meu livro, e comecei a ler "O homem que adorava elevadores". Outro ótimo conto. Mulheres, bebida, sexo e um pouco de ironia, tava tudo ali. depois de ler esse conto eu só conseguia pensar no quanto um dia idiota conseguia ser ainda mais idiota. E quanto mais coisas você fazia, mais idiota ficava esse dia. Fui pra casa, tomei um banho, e fui dormir. Eram quatro meia. Tirei o despertador da tomada.

domingo, 9 de dezembro de 2012

Pros que reclamam de má sorte...

Jim nunca gostou de carros, ou melhor, nunca teve a chance de gostar de carros. De motos ele gostava, mas os carros sempre o traíam. E não é pouca coisa... Jim já passou por mais incidentes envolvendo carros que aniversários. Nunca foi culpa dele, mas de certa fora, esse azar o acompanhava.

Sua primeira lembrança é a de um acidente de carro. Ele tinha quatro anos, e estava brincando no quintal de casa, na caixinha de areia dele, ele não saía daquela caixa de areia, parecia um gato.Quando um cara dentro de um carro azul marinho simplesmente capotou na frente de sua casa - ou pelo menos foi isso que Jim conseguiu ver. Ele não viu que o cara tinha atropelado uma moça no caminho. E também não viu que ele tinha tido uma briga com a mulher, e depois de ter batido nela, saiu pra beber e agora estava voltando pra casa com um buquê de flores. Mas de qualquer forma, não é a melhor lembrança pra se ter da infância.

Mas como tudo tende sempre a piorar para Jim, logo quando tinha acabado de completar sete anos, estava dentro do carro com seu tio, sua tia e um primo. Quando o carro pareceu virar uma sanfona, jogando Jim para um lado e pro outro, sucessivas vezes até o pobre garoto perder a consciência. Foi tudo que ele viu... mas não foi tudo que aconteceu, pra variar. Uma picape vermelha tinha entrado com força na lateral do carro preto que John - tio de Jim - dirigia. A picape vermelha tinha cruzado o sinal vermelho, e vinha com muita velocidade. E John teve o azar de estar passando no cruzamento errado, na hora errada - e com os passageiros errados. O carro vermelho capotou umas cinco vezes, segundo as testemunhas, enquanto o cara da picape não sofreu um único arranhão. Jim acordou pela primeira vez em um hospital. Sentia-se fraco, tonto e tinha a visão embaçada. Passou um dia inteiro inconsciente. Pelo menos ele acordou, o primo de Jim nunca teve essa oportunidade. Ele foi arremessado pela janela aberta, e em seguida esmagado pelo carro. Jim teve a sorte de não ter visto.

Passaram-se três anos sem acidentes, e Jim ainda não tinha um problema com carros nem nada, até gostava, mas apenas os de corrida, que não fossem azuis, nem vermelhos. Estava indo para a praia com seus pais - Mariah e Henry - no sedã prateado da família, quando o Henry, que estava bebendo cerveja desde de manhã, conseguiu atropelar uma velha que estava atravessando a estrada. Dessa vez Jim viu tudo, preferia não o ter feito, mas não tinha volta. O carro a tinha acertado no meio, e ela voou, quando Jim chegou perto, tudo que conseguiu ver foi sangue, muito sangue. Não sabia de onde vinha tanto sangue, a velha nem era grande, era só uma velha magrela e pequena, com um cabelo branco como a neve, e agora tingido de vermelho, que usava um poncho de lã azul e branco - era o tipo de velha que teria dado a Jim biscoitos e um copo de leite. Mas ainda assim, ela estava imóvel, e o sangue não parava de sair. Ela estava jogada numa posição estranha. O braço estava num ângulo que parecia doloroso. Jim queria continuar olhando, triste pela pobre senhora, mas ainda assim fascinado. Mariah levou Jim pro carro, enquanto Henry saía em disparada com o sedã que estava agora amassado. quando chegaram à praia não falaram nenhuma palavra sequer durante o dia todo. E quando chegou a noite, Mariah foi à cama de Jim conversar com ele. Disse-lhe que se alguém perguntasse, ele nunca tinha estado lá. E  que nunca tinha visto a pobre senhora. E que aquele amassado nunca tinha estado lá, também. Jim concordou com a cabeça, mas naquela noite não conseguiu dormir. Ficou pensando na cor rubra que tinha se apoderado dos cabelos cor-de-neve da pobre senhora que ele jamais soube o nome. E no poncho bonito dela, ele queria ter elogiado aquele poncho.

A frequência dos acidentes estava aumentando. Com onze anos, ele viu do banco da frente a mãe atropelar um homem. Estavam no mesmo sedã prateado. Era de dia, e eles estavam  na frente de um mercado movimentado. Mas podemos excluir a culpa de Mariah - dessa vez - aquele homem estava ensandecido correndo no meio da rua, e literalmente se atirou na frente do sedã em que estava Jim. De qualquer forma, dessa vez Jim viu de camarote o quanto o corpo humano era frágil perante um carro. E viu mais uma vez sua mãe chorar. Desceu do carro com pressa, com vontade de ver como estava aquele cara metido a fortão, que acha que pode parar um carro com os braços. Estava consciente, mas tinha uma fratura exposta na perna esquerda, no meio da canela, e estava com um corte na barriga, provocado pelo plástico dos faróis que se estilhaçaram com o impacto. Ele sobreviveu, é claro...mas sem aquela perna. E mais uma vez Jim não conseguiu dormir. Porém não se sentia culpado, não tinha nada que um garoto de onze anos pudesse fazer, só deitou, e ficou tentando imaginar o motivo que leva alguém a se atirar na frente de um carro.

Seis meses depois, estava voltando do enterro de um tio meio distante da família - que por coincidência - morreu também num acidente de carro. Quando Henry, ainda com os olhos turvos de tanto chorar pelo irmão, conseguiu meter aquele sedã prateado com força num muro. Jim estava dormindo no banco de trás, não tinha visto nada acontecer. Acordou com o impacto da própria cabeça no vidro do carro. Era o fim do sedã prateado, e de um dedo de Henry. E Jim começou a ter receio com carros... começou a ligar os fatos. Já tinha sofrido mais acidentes do que qualquer um da sua idade, e viu uns outros tantos... parecia que esse tipo de coisa o seguia. E não era totalmente mentira. O garoto tinha quase doze anos e sobreviveu a mais acidentes que os caras da Nascar, não era pra qualquer um...

Outro acidente marcante ele sofreu quando tinha quinze anos. Ele estava voltando de uma festa com os amigos, mais velhos, estavam todos bêbados, menos Jim, que não bebia, mas não podia dirigir. Eram cinco dentro do carro. Phill, o dono do carro, e motorista. Nathan, o bêbado chato. Robert, o metido a bonitão. E Finn, o engraçado da turma. Jim tava bem no meio do banco traseiro, sem cinto de segurança e cada vez mais preocupado com a imprudência dos amigos. Até que os maus pressentimentos se fizeram valer. Phill invadiu uma casa, quebrando a cerca, atravessando o gramado e só parou quando arrebentou a parede frontal da casa. Acabou com metade do carro na sala de estar de alguma família que estava dormindo. Foi uma confusão daquelas, mas nada incrível, a família acordando e correndo de uma lado pro outro. A cara daquela mulher, quando viu um carro na sala dela, foi impagável. Ninguém se feriu, e Jim, que tinha "previsto" o acontecido, já estava agarrado num banco naquela hora, sendo que foi o único que nem ao menos bateu a cabeça. Tiveram que pagar a fachada da casa, e reconstruíram a cerca, recolocaram tudo em seu devido lugar... tudo pra manter a polícia fora disso.

Até completar dezoito anos foi isso, Jim sofreu mais alguns acidentes. Ele geralmente não tinha nenhuma parcela de culpa, mas odiava entrar em carros. Outra coisa curiosa era o fato dele nunca ter se machucado com gravidade. Uns hematomas, uns arranhões, e certa vez quebrou um osso da mão, mas fora isso, nunca  se feriu com real gravidade nos acidentes. Diziam que ele tinha um anjo da guarda. Ele respondia sempre algo do tipo "Que anjo da guarda me põe em um acidente de carro a cada seis meses?". Todo mundo ria, ele não.

Como presente de aniversário, Jim ganhou de seu pai um carro. Ganhar um carro aos dezoito é o sonho de - quase - todos os jovens. Jim não queria o carro, mas de algum jeito foi convencido pelo pai. Henry disse-lhe que os acidentes aconteciam não por culpa dele, mas por culpa dos outros, e que como ele era uma pessoa atenta, nunca deixaria um acidente acontecer. Seu pai sempre conseguia convencê-lo. Aceitou o carro, e foi tirar a carteira de motorista. Ele dirigia incrivelmente bem para alguém que nunca tinha pego num volante. Tirou a carteira, e apesar de não gostar muito de ideia de ter que conduzir um carro por aí, admitiu sair com o carro de vez em quando. E a sensação de dirigir era ótima, a melhor que ele já tinha provado. Um misto de poder e liberdade... Ele, talvez, pudesse gostar daquilo.

Logo que saiu sua carteira, ele pediu pra levar o pai até o trabalho, e levou a mãe também pra fazer compras, e eles estava dirigindo cada vez melhor. Foi buscar o pai no trabalho, no mesmo dia. E foi buscar as roupas da mãe na tinturaria. Ele começou a gostar daquilo. Mas ainda ficava de certa forma receoso... e com razão, não é pra qualquer um passar a vida toda sofrendo inúmeros acidentes de carro, e ainda assim conseguir entrar em um... e ainda mais, dirigir um. Mas Jim estava se saindo bem.

Na semana seguinte teve um almoço, no domingo. Para celebrar o aniversário de vinte anos de casamento entre Henry e Mariah foi. Tudo aconteceu na casa de deles. Os parentes vieram de várias partes do estado, até aqueles que andavam meio afastados compareceram. Aproveitaram a data para se reaproximarem. E olhavam para Jim, agora um homem feito, e incrivelmente inteiro. Era de se espantar. A festa rolou bem, foi até tarde. Algumas discussões entre a família, nada de anormal. Mas logo já era hora de todo mundo ir embora. A despedida foi aquela coisa tradicionalmente chata... todo mundo dizendo que estava com saudade, e todo mundo marcando de se reencontrar, de fazer mais churrascos, de passarem o natal na casa de fulano... tudo o mesmo tédio de sempre. Quase todos tinham ido embora quando tio Charles disse que não tinha como ir embora, e que não podia dormir lá, tinha que acordar cedo pra trabalhar. Claramente Jim se ofereceu para levá-lo pra casa, era só uns 20km dali, nada demais. E eram dez da noite, a rua estaria vazia. Charles aceitou, claro. Como recusar a carona do sobrinho?

Logo saíram no carro de Henry, pois Jim tinha esquecido de abastecer o dele. Agora Henry tinha um sedã vermelho escuro, lindo. Com dois anos de uso... mas estava como se fosse novo, era a preciosidade de Henry. Charles, pra variar, puxou assunto:

_E aí, cara, você não tinha medo de carros, e essas paranóias? - começou
_Eu tinha, ou tenho, não sei direito...
_Mas você sempre teve um azar, hein, cara...
_Pois é, as coisas acontecem... mas nunca foi nada demais. E como você bem sabe, a culpa não foi minha.
_Em nenhum deles? só pode estar tirando com a minha cara, você deve ter alguma culpa no cartório!
_Olhe, tio, eu tô te dando carona, mas não abusa, tá?
_Oh, desculpa aí, cara... só estava descontraindo... Mas e aí, tá namorando?
_Não! - respondeu com tom de quem não queria mais conversa... seguiram calados pelo resto do caminho.

Jim reparou que o lado da cidade em que vivia Charles era meio vazio. E meio afastado. Nunca tinha ido a casa dele, era sempre ele que ia visitar, nunca o contrário. De qualquer forma, deixou o tio dele em casa, se despediu brevemente, e quando entrou no carro, ouviu da janela de seu tio:

_Cara, você tem que aprender a brincar... parece com a sua mãe! - Charles era um sacana.

Estava voltando pra casa quando decidiu parar pra comer alguma coisa, parou num McDonald's e fez seu pedido. Ficou impressionado com o fato de que as dez horas da noite de um domingo as pessoas ainda estivessem trabalhando em algum McDonald's. E ficou impressionado com o número de clientes... aquele lugar estava quase lotado. Fez seu pedido, e se dirigiu a uma das poucas mesas que encontrou vazias. Comendo calmamente, e pensando que mesmo estando num churrasco, a coisa que menos fez foi comer... isso é pros convidados. Comeu as batatas, e quando finalmente terminou, se sentiu bem, e calmo. Coisa que não sentia há alguns anos. Entrou no carro, e se dirigiu pra casa...

Viu um sinal vermelho, mas viu também que a rua estava deserta. Sempre soube que era perigoso parar nesse tipo de sinal, mas decidiu não dar sorte pro azar.

_É melhor eu parar, o carro nem é meu, e está no seguro - falou ele pro banco vazio ao lado. E logo que ele parou, um ônibus passou rasgando no cruzamento. Devia estar atrasado. Por pouco, muito pouco ele não sofreu outro acidente. O sinal ficou verde, e logo que ele começou a acelerar sentiu uma pancada na traseira de seu carro. Afundou a cabeça no volante, não perdeu a consciência, mas ficou ligeiramente tonto. Sentiu que tinha cortado o supercílio com o impacto.

_Ohhh merda! - gritou - tinha que acontecer comigo....

Saiu do carro cambaleando, e olhou ao redor, a rua estava vazia... que novidade. Foi o mais rápido que pode olhar o estrago que tinha feito no carro. O outro carro era uma picape velha, de um verde escuro e descascado. Ela tinha se afundado na traseira do carro. Quem dirigia era uma mulher - que novidade -, ela estava com a cabeça afundada no volante, e os braços de alguma forma abraçavam estavam presos ao volante. E o fato mais marcante era um caco de vidro verde enfiado no pescoço dela. Devia ser do tamanho de uma lente de óculos.

_Hora errada pra dar um gole no vinho, não? - comentou com a moça inconsciente.

O celular ainda estava no bolso, que milagre. Ligou para o primeiro número que consegui pensar. Olhou em volta enquanto o celular chamava o tal número. A rua não tinha uma viva alma. Quem atendeu foi a polícia. Uma mulher com voz mecânica e fria começou a falar:

_Alô? Central da polícia militar falando, como poderia lhe ajudar?
_Moça, sofri um acidente de carro, poderia mandar uma ambulância? Tem uma mulher ferida aqui!
_Qual seu nome, senhor?
_Jim... mas moça, mande a ambulância!
_Senhor, peço que não se desespere... Aonde você está?
_Eu estou no cruzamento da 5ª avenida com a 27ª rua...
_Vou transferir a sua ligação para o centro de emergências dos bombeiros, senhor, as suas informações estão anotadas.
_Moça, essa mulher tá morrendo! - desesperou-se - você pode mandar logo a ambulância?
_Senhor, você está me desacatando. Por favor, se acalme! -tentou apartar
_Mas, como eu posso me acalmar enquanto essa mulher está.... - parou de falar
_Senhor? .... Senhor? Você está aí, senhor?
_Esquece. Ela morreu, pra variar. Manda uma viatura que eu quero ir pra casa. - desligou.