passas por tudo, respondes a tudo.
Não te matarão mais, por já seres cadáver."
Arthur Rimbaud
O gosto de limpeza da minha boca me dá nojo. Aliás, essa
limpeza toda me dá nojo. Tomar banho, escovar os dentes, passar fio dental,
desodorante, dar um gole naquele enxaguante azul, com cheiro de desinfetante de
privada. Isso agora me deixa com ânsia de vômito. Me sinto assim desde que me
tornei um adulto. Não sei bem como aconteceu, mas sei que agora nenhuma das
possibilidades do meu futuro me parece promissora. A vida é muito mais fácil
quando há felicidade te cercando. Cresci ouvindo essa bosta. Minha vó, meus
tios, todos falavam isso, sem parar. Mas agora acho todos os meus parentes
dignos de pena. Quanto mais felizes ficam, mais penso em desertar.
Mas nem sempre fui assim, sempre tem alguma coisa que joga o
homem num buraco, e logo depois lhe cospe na cara. Mulher é geralmente o
problema mais óbvio. Mas esse não é o meu. Pelo menos a única coisa decente que
tenho é Luana. Aquela menina do último ano de escola. Mesmo à distância, ela me
faz mais sentido do que muitas coisas. Faz mais sentido do que a escola, do que
arranjar um emprego, do que pegar o ônibus, do que tomar café. Luana tem essa
coisa que te joga no buraco, só pra esfregar na sua cara que ela é a única que
pode te tirar dali. Nem sabe que faz isso… acho que nunca vou contar. Se fosse
pra contar, teria contado naquele dia que quebrei o dente dela jogando futebol.
O Natal estava chegando, era dia quinze ou alguma coisa
assim… lembro que passava meus dias em casa, escondido num canto, debaixo de
cobertores, com uma lanterna na boca, e um livro aberto. As noites estavam
abafadas, o suor pingava, escorria pelos meus olhos. Levava o dobro do
tempo pra ler uma página. Mas não queria sair, era o que menos queria.
Escondido. Do mundo, dos problemas, da minha mãe… ahh, mãe, se pelo menos hoje
você pudesse ler… não, melhor não… acho que vou te culpar mais uma vez.
_ Sai daí, moleque, vai fazer alguma coisa. – o tom de
irritada era só pra me tirar do quarto, no fim, ainda era um doce de pessoa.
_Não, estou bem aqui… - não queria mesmo soar rude, mas fica
dificil quando se está com uma lanterna na boca. Me senti meio gay na hora…
_Não tô pedindo, vai no mercado,temos que comer.
É óbvio que só estava me enxotando pra for a de casa, por
mais que fosse por quinze minutos, ou meia hora… depende da fila do
mercado. Cospi a lanterna, coloquei um
papel de bala no meio do livro pra não perder a página – como se eu perdesse a
página. Página 157, segundo parágrafo, na quinta frase. Que livro! Simplesmente
genial. Pena que não lembro qual é o livro.
_Tá bom, mãe, me dá a lista.
Ela me alcançou um pedaço meio amassado de papel. Tinha uma
caligrafia bonita, ainda que escrita de maneira apressada demais pra merecer
aplausos…. Sempre quis escrever bonito como ela. Nunca foi poética, mas uma
caligrafia daquelas, pelos deuses!
Poderia simplesmente falar como o azul do céu me irrita, mas se fosse
com aquela letra, eu me chamaria de Rimbaud.
Carne moída, cenouras, batatas, leite, macarrão e outra meia
dúzia de coisas. Olhei pra ela. Tinha um olhar de compaixão. Me senti doente.
Talvez eu estivesse doente, e na verdade esteja recebendo ajuda da única pessoa
que se importa comigo. Ou então ela realmente está com fome… Questões de mais,
macarrão de menos. Acho que tenho título pra mais um poema . Coloquei o
primeiro par de calças que vi. Calcei meus tênis roxos. Coloquei aquela
camiseta velha que ganhei do Arthur no meu aniversário. Achei meu iPod num
canto, roubei emprestado os fones de ouvido do meu irmão, coloquei um casaco
com capuz, baixei a cabeça e saí. Nesses últimos tempos andei substituindo meu
nojo pelo Nirvana por uma profunda empatia com Kurt Cobain. Ainda não aguento ouvir mais do que duas
músicas, mas acabei descobrindo um cara feliz e de bem com a vida. Preciso de
mais exemplos assim. O mundo todo precisa de mais exemplos que nem ele… que
nem… esquece.
São Paulo à noite. Sempre
me deixou inebriado. Aquele som dos carros passando, as luzes em todos os
lugares, o cheiro de fumaça, a música alta. Gosto desse cenário. Ser um
desocupado as vezes tem suas vantagens, mas… aquelas pessoas dentro dos carros
não percebiam o quanto de sorte que tinham. Sempre ocupados, com tempo de menos
pra pensar, e lugares demais pra ir. Sempre coisas pra fazer. Gosto de pensar
que gente assim tem sorte. É o que me resta, certo? É isso ou ouvir comerciais sobre ar
condicionado. Isso seria depressivo demais. Não aguentaria.
O caminho já era natural. Poderia ir até o mercadinho de
olhos fechados. Cinco minutos pra ir, dez pegando as coisas, cinco na fila,
sete minutos pra voltar. Vinte e sete
minutos. Nove músicas. Não dessa vez,
aproveitei que tinha saído de casa pela primeira vez em doze dias pra ir no
mercado mais longe. Demoraria uma hora, mas… a noite estava linda. Nenhuma
estrela no céu, e um caos ao meu redor. Sempre me senti muito mais sozinho no
caos. O silêncio sempre me leva pra perto dos meus pensamentos, prefiro ficar
longe deles.
Meu moletom cinza tinha cheiro de cigarro. Não devia ficar
roubando cigarro da minha vó. Minha mãe sempre me disse que isso é feio. Sorte
dela que não sou bonito mesmo. Tirei meu
Ipod do bolso. Parei a música. Atravessei a rua andando à passos largos. Cabeça
baixa pra evitar que qualquer um me reconhecesse. Oras, do que eu tô falando,
eu não tenho conhecidos ali.
Andei mais um pouco. Tinha o posto de gasolina, só dois
carros lá, e os caras de uniforme amarelo e vermelho estavam num canto jogando
jogo da velha. E tinha um num canto olhando uma revista de lado. Uma das mãos
dentro da calça. Tinha a padaria, mas sempre tinha mais policiais lá do que
clientes. Por causa dos ratos, porque o dono tinha matado a esposa, ou pelas
brigas. Pensando bem, aquilo devia ser um puteiro. São Paulo ás vezes faz com que
me sinta em casa.
_Victor! Cara… quanto tempo que não te vejo. – aquela voz.
Senti meu coração disparar, e a vontade de me esconder de novo. Não tinha
nenhum cobertor livre na rua. E não acho que aquele mendigo sujo na frente da
padaria estivesse disposto dividir o dele e dormir de conchinha comigo.
_Oi... – olhei pra ela e sorri. Nunca gostei da minha voz.
Me dá nojo. Mas aqueles olhos. Mataria duas dúzias de joaninhas pra poder mijar
neles. Mas, que diabos. Não quero falar com ela. Não deveria ter atravessado a
rua. Ela não me acharia. Porque não posso ter um segundo de paz?
_Onde você tá indo? Tá sozinho? Eu não conheço essas ruas.
Vim ver umas roupas e – parei de prestar atenção nessa parte. A voz dela ainda
saía, mas não me preocupei em prestar atenção nas palavras. Era tudo no som da
voz dela. Soavam como notas de uma guitarra. Me arrepiei todo dentro do
moletom.
_Tava indo pro mercado, minha mãe quer cenouras. E Abacates.
E eu vou comprar camisinhas. Sim, tenho uma namorada, e nós costumamos, você
sabe…. – Sim, uma namorada, linda,
loira, alta. E nós nos amávamos. Sim, acho que consigo usar esse pensamento
mais tarde, sozinho... Meu Deus! Que
olhos essa menina tem. Desviei dela e
continuei andando de cabeça baixa.
Sentia meu estômago pulando corda.
_Posso ir com você? O metrô é aqui perto, e eu vou pra casa
da Pri, você tá na faculdade?– perguntas, perguntas … Sei fazer perguntas
também.
_Voce tá de sutiã? – não foi a melhor pergunta.
_Na verdade não – e riu, sem graça – E você?
_Talvez – acho que falei sério demais. Luana arregalou os
olhos e cobriu a boca com a mão.
Continuei andando. Ela me seguia, fazendo perguntas. Não
estou estudando. Não gosto de ir no McDonalds. Odeio cinema. Não respondi
nenhuma das perguntas. Quando finalmente cheguei no mercadinho, me despedi. Já
não aguentava mais a presença daquela criatura do meu lado. Queria beijá-la.
Ter filhos com ela. Ela seria minha esposa, porque eu não precisava da minha
namorada russa. Sim, ela veio da Rússia ainda nova, a minha namorada loira. Seu
nome era difícil demais pra ser ficar
falando por aí. Mas não precisava dela. Casaria com essa menina, com a pele cor
de caramelo, com os labios cheios de batom vermelho, e aquelas mãozinhas. Ah…
faria carinho naquelas mãos, e beijaria tudo que elas tocassem. Sim, case-se
comigo.
_Bom, manda mensagem pra mim. Meu telefone é 98635-2457. –
repeti aquele número mentalmente até ter certeza de que tinha decorado. Que
memória incrível essa minha. Devia comprar um celular também. Poderia mandar
mensagem para todas as mulheres do mundo. Sete mil mensagens todo dia.
_Eu vou sim. Pode contar comigo. Claro que vou mandar. Logo de manhã, mas não tão cedo. Tenho que ir pra academia. Levantar peso. Levanto muitos, vários, um punhado de quilos no supino. – nunca pisei em uma academia, mas todas as moliéres amam os marombas. Estava com dor de cabeça já. Muita luz, e a voz dela me irritava.
_Eu vou sim. Pode contar comigo. Claro que vou mandar. Logo de manhã, mas não tão cedo. Tenho que ir pra academia. Levantar peso. Levanto muitos, vários, um punhado de quilos no supino. – nunca pisei em uma academia, mas todas as moliéres amam os marombas. Estava com dor de cabeça já. Muita luz, e a voz dela me irritava.
_Tchau… e … - ela chegou perto de mim, ficou na ponta dos
pés e me deu um celinho. Senti vontade de vomitar. Adrenalina correndo solta
nas minhas veias. Empurrei ela pra longe.
Aquele gosto de batom. Não que eu tenha hábito de comer batom, essa fase
já passou.
_Eu namoro! Como você se atreve a encostar essa boca imunda
em mim – ela me beijou, caralho! Esse deve ser o dia mais foda da minha vida.
Acho que vou virar vegetariano, comer coisa saudável. Será que ela quer um
pedaço de bolo? Eu compraria um bolo todo pra ela.
_Desculpa, eu só… desculpa. – Olhou pra baixo, pros meus
tênis. Acho que peguei pesado demais. Bom, ela que quis arriscar. Não devia
ficar agindo assim. Gente imprudente geralmente se fode mesmo. Tá certo.
Virei as costas, sem
falar mais nada. Entrei no mercado. Ela ficou me olhando, do lado de fora, como
se me esperasse. Feito cachorro. Mas não, o grande Victor não se importa com
mulheres como essas. Elas apareciam aos montes, e se empilhavam. Essa não me merecia. Nem mesmo todas as
mulheres da Rússia merecem.
Quando olhei pra trás ela não estava mais lá. Como assim ela
saiu andando? Oras, primeiro me roubou um beijo, depois saiu assim... Mulheres nunca fazem sentido. Ainda tremia. E
suava. E queria correr até o metrô. Mas não. Olhei para aquela lista. Meu Deus!
Acho que vou ditar uma carta para minha mãe. Ela copia tudo. Já fizeram isso
antes. Quem sabe eu fique cego, e tenha minha mãe pra escrever. Naquela
caligrafia, com certeza seria um escritor de sucesso. Entrei naquele labirinto
de corredores do mercado. Todas aquelas cores, e tantos nomes, e marcas, tudo
isso pra molho de tomate. E as frutas, e tudo mais… Mercado era um lugar infernal. Com aquelas
luzes brancas, e o piso branco. E sempre cheio de gente...
Peguei tudo que
precisava. Não peguei nenhuma
camisinha. Fui pro caixa. Era uma mulher
negra e gorda. Sentada numa cadeira de escritório. Usando uma camisa azul, com a estampa da
logomarca do mercado. Mas a logomarca ficava distorcida por causa dos peitos
dela. Os peitos dela estavam apoiados nas coxas. Ela tinha um pedaço de
salgadinho no cabelo. Ou era queijo?
Estava suando, e ainda por cima tinha uma verruga preta no queixo.
Parecia uma mulher adorável, a não ser pelas sombrancelhas, que estavam
desenhadas num ângulo tão sinistro.
_Próximo! – ela sentia nojo de mim. Nojo da minha carne
moída, nojo do pão. E do fato de que eu não comprava camisinhas.
_Está uma noite…
_Algo mais, “senhor”? - ela agora deu pra tirar com a minha
cara. Ficar me interrompendo quando vou falar coisa sem sentido. É esse tipo de
coisa que justifica meu racismo. Isso e também Luana. Mas Luana não era preta, nem usava salgadinho
pra prender o cabelo. Aliás, ainda tenho aquela presilha que roubei dela na
quinta série. Tem até cheiro de condicionador… do meu. Só tomei banho com a
presilha uma, ou duaz vezes. Isso é completamente normal pra quem tem cabelo
caindo no olho.
_Não. Que calor né?
_Vinte e oito e setenta. Cartão? – Uma nota de vinte e duas
de cinco. Ela levantou a nota, pra olhar contra a luz. Até cabelo no sovaco
tinha. Deve ser dessa nova remessa de feminista. Exceto por ela ser velha. Exceto
por ela trabalhar. Exceto por ela ser negra. Nenhuma líder feminista é negra. A
supremacia feminina ariana estaria comprometida… feminazistas? Ri com o
pensamento de ver aquela mulher gorda com um bigodinho de Hitler… O bigode dela
parecia mais o do Stalin… - O senhor tem setenta centavos?
_Não senhora. Sabe como é… andar com moedas… - fiquei sem
jeito. Qualquer pessoa digna devia ter setenta centavos no bolso. Aposto que
ela mesmo tinha setenta centavos, a Madonna tinha setenta centavos. O Bonno tem
setenta centavos no bolso…
_Tudo bem. – ela me devolveu um e cinquenta junto com a
notinha. Ganhei vinte centavos, talvez eu compre um celular, e mande mensagens
pra Luana. Não tinha nenhum bigodinho de Hitler nas partes dela que eu tinha
visto. Ainda não vi todas as partes.
Peguei as três sacolas numa mão e saí do mercado. Logo que
sai, vi aquele mendigo da frente da padaria. Ele pediu um trocado pra beber.
Dei um real pela honestidade, e cinquenta centavos por que odeio andar com
moeda. Ficam tilintando, e caem quando voce tira as coisas do bolso. Moeda é
coisa de pobre.
_Aquela menina lá, é sua namorada?
_Não, amigo. Não mais. – respondi o mendigo. Tinha um monte
de sujeira no cabelo dele, e ele provavelmente já tinha bebido. Deve ter um
curso de mendigo. Como conseguir esmola, onde dormir, como nao morrer de
cirrose. Esse daí era o primeiro da classe.
_Por que “não mais”? Ela tem mó rabão, cara. Foderia com ela
pro resto da minha vida.
_Que? - entendi o que
ele falou, ainda que o bafo de cachaça tenha me deixado tonto. Só não conseguia
acreditar naquilo. Como assim… Aleluia alguém que concorda comigo. É um puta
rabão mesmo.
_Oh, desculpa cara… é que, sabe como é né. Eu já tive a
minha época… - sai andando quando pressenti a historia de mendigo chegando.
Mendigos são melhores que bibliotecas. Acho que as pessoas mais sábias do mundo
são mendigos. Desde a Grécia antiga, qualquer pessoa respeitável faz questão de
viver num barril e se masturbar na praça da Sé.
O mendigo andou mais uns dois passos e pediu esmola pra uma senhora
velha. Pra ela ele pediu pra comer.
Odeio quando me dão três sacolas, um braço fica sempre mais
cansado que o outro. Não dá pra arrumar nunca. Não andei tão rápido. Por algum
motivo, minha casa era o último lugar onde eu queria estar. Mas cheguei. Abri o
portão. Não sei pra que uma corrente tão grossa, e um cadeado tão pequeno.
Aquilo não protege nada. Se alguém realmente quisesse entrar na minha casa e
matar minha família, faria questão de deixar o portão aberto.
Soltei as sacolas na mesa. Corri pro quarto. Tirei meu
moletom, minha camiseta e meus tenis. Me cobri. Não posso me cobrir. Tá muito
quente. Fui na sala. Achei o celular da minha mãe…986… puta que o pariu, qual o
resto do número? x