domingo, 9 de dezembro de 2012

Pros que reclamam de má sorte...

Jim nunca gostou de carros, ou melhor, nunca teve a chance de gostar de carros. De motos ele gostava, mas os carros sempre o traíam. E não é pouca coisa... Jim já passou por mais incidentes envolvendo carros que aniversários. Nunca foi culpa dele, mas de certa fora, esse azar o acompanhava.

Sua primeira lembrança é a de um acidente de carro. Ele tinha quatro anos, e estava brincando no quintal de casa, na caixinha de areia dele, ele não saía daquela caixa de areia, parecia um gato.Quando um cara dentro de um carro azul marinho simplesmente capotou na frente de sua casa - ou pelo menos foi isso que Jim conseguiu ver. Ele não viu que o cara tinha atropelado uma moça no caminho. E também não viu que ele tinha tido uma briga com a mulher, e depois de ter batido nela, saiu pra beber e agora estava voltando pra casa com um buquê de flores. Mas de qualquer forma, não é a melhor lembrança pra se ter da infância.

Mas como tudo tende sempre a piorar para Jim, logo quando tinha acabado de completar sete anos, estava dentro do carro com seu tio, sua tia e um primo. Quando o carro pareceu virar uma sanfona, jogando Jim para um lado e pro outro, sucessivas vezes até o pobre garoto perder a consciência. Foi tudo que ele viu... mas não foi tudo que aconteceu, pra variar. Uma picape vermelha tinha entrado com força na lateral do carro preto que John - tio de Jim - dirigia. A picape vermelha tinha cruzado o sinal vermelho, e vinha com muita velocidade. E John teve o azar de estar passando no cruzamento errado, na hora errada - e com os passageiros errados. O carro vermelho capotou umas cinco vezes, segundo as testemunhas, enquanto o cara da picape não sofreu um único arranhão. Jim acordou pela primeira vez em um hospital. Sentia-se fraco, tonto e tinha a visão embaçada. Passou um dia inteiro inconsciente. Pelo menos ele acordou, o primo de Jim nunca teve essa oportunidade. Ele foi arremessado pela janela aberta, e em seguida esmagado pelo carro. Jim teve a sorte de não ter visto.

Passaram-se três anos sem acidentes, e Jim ainda não tinha um problema com carros nem nada, até gostava, mas apenas os de corrida, que não fossem azuis, nem vermelhos. Estava indo para a praia com seus pais - Mariah e Henry - no sedã prateado da família, quando o Henry, que estava bebendo cerveja desde de manhã, conseguiu atropelar uma velha que estava atravessando a estrada. Dessa vez Jim viu tudo, preferia não o ter feito, mas não tinha volta. O carro a tinha acertado no meio, e ela voou, quando Jim chegou perto, tudo que conseguiu ver foi sangue, muito sangue. Não sabia de onde vinha tanto sangue, a velha nem era grande, era só uma velha magrela e pequena, com um cabelo branco como a neve, e agora tingido de vermelho, que usava um poncho de lã azul e branco - era o tipo de velha que teria dado a Jim biscoitos e um copo de leite. Mas ainda assim, ela estava imóvel, e o sangue não parava de sair. Ela estava jogada numa posição estranha. O braço estava num ângulo que parecia doloroso. Jim queria continuar olhando, triste pela pobre senhora, mas ainda assim fascinado. Mariah levou Jim pro carro, enquanto Henry saía em disparada com o sedã que estava agora amassado. quando chegaram à praia não falaram nenhuma palavra sequer durante o dia todo. E quando chegou a noite, Mariah foi à cama de Jim conversar com ele. Disse-lhe que se alguém perguntasse, ele nunca tinha estado lá. E  que nunca tinha visto a pobre senhora. E que aquele amassado nunca tinha estado lá, também. Jim concordou com a cabeça, mas naquela noite não conseguiu dormir. Ficou pensando na cor rubra que tinha se apoderado dos cabelos cor-de-neve da pobre senhora que ele jamais soube o nome. E no poncho bonito dela, ele queria ter elogiado aquele poncho.

A frequência dos acidentes estava aumentando. Com onze anos, ele viu do banco da frente a mãe atropelar um homem. Estavam no mesmo sedã prateado. Era de dia, e eles estavam  na frente de um mercado movimentado. Mas podemos excluir a culpa de Mariah - dessa vez - aquele homem estava ensandecido correndo no meio da rua, e literalmente se atirou na frente do sedã em que estava Jim. De qualquer forma, dessa vez Jim viu de camarote o quanto o corpo humano era frágil perante um carro. E viu mais uma vez sua mãe chorar. Desceu do carro com pressa, com vontade de ver como estava aquele cara metido a fortão, que acha que pode parar um carro com os braços. Estava consciente, mas tinha uma fratura exposta na perna esquerda, no meio da canela, e estava com um corte na barriga, provocado pelo plástico dos faróis que se estilhaçaram com o impacto. Ele sobreviveu, é claro...mas sem aquela perna. E mais uma vez Jim não conseguiu dormir. Porém não se sentia culpado, não tinha nada que um garoto de onze anos pudesse fazer, só deitou, e ficou tentando imaginar o motivo que leva alguém a se atirar na frente de um carro.

Seis meses depois, estava voltando do enterro de um tio meio distante da família - que por coincidência - morreu também num acidente de carro. Quando Henry, ainda com os olhos turvos de tanto chorar pelo irmão, conseguiu meter aquele sedã prateado com força num muro. Jim estava dormindo no banco de trás, não tinha visto nada acontecer. Acordou com o impacto da própria cabeça no vidro do carro. Era o fim do sedã prateado, e de um dedo de Henry. E Jim começou a ter receio com carros... começou a ligar os fatos. Já tinha sofrido mais acidentes do que qualquer um da sua idade, e viu uns outros tantos... parecia que esse tipo de coisa o seguia. E não era totalmente mentira. O garoto tinha quase doze anos e sobreviveu a mais acidentes que os caras da Nascar, não era pra qualquer um...

Outro acidente marcante ele sofreu quando tinha quinze anos. Ele estava voltando de uma festa com os amigos, mais velhos, estavam todos bêbados, menos Jim, que não bebia, mas não podia dirigir. Eram cinco dentro do carro. Phill, o dono do carro, e motorista. Nathan, o bêbado chato. Robert, o metido a bonitão. E Finn, o engraçado da turma. Jim tava bem no meio do banco traseiro, sem cinto de segurança e cada vez mais preocupado com a imprudência dos amigos. Até que os maus pressentimentos se fizeram valer. Phill invadiu uma casa, quebrando a cerca, atravessando o gramado e só parou quando arrebentou a parede frontal da casa. Acabou com metade do carro na sala de estar de alguma família que estava dormindo. Foi uma confusão daquelas, mas nada incrível, a família acordando e correndo de uma lado pro outro. A cara daquela mulher, quando viu um carro na sala dela, foi impagável. Ninguém se feriu, e Jim, que tinha "previsto" o acontecido, já estava agarrado num banco naquela hora, sendo que foi o único que nem ao menos bateu a cabeça. Tiveram que pagar a fachada da casa, e reconstruíram a cerca, recolocaram tudo em seu devido lugar... tudo pra manter a polícia fora disso.

Até completar dezoito anos foi isso, Jim sofreu mais alguns acidentes. Ele geralmente não tinha nenhuma parcela de culpa, mas odiava entrar em carros. Outra coisa curiosa era o fato dele nunca ter se machucado com gravidade. Uns hematomas, uns arranhões, e certa vez quebrou um osso da mão, mas fora isso, nunca  se feriu com real gravidade nos acidentes. Diziam que ele tinha um anjo da guarda. Ele respondia sempre algo do tipo "Que anjo da guarda me põe em um acidente de carro a cada seis meses?". Todo mundo ria, ele não.

Como presente de aniversário, Jim ganhou de seu pai um carro. Ganhar um carro aos dezoito é o sonho de - quase - todos os jovens. Jim não queria o carro, mas de algum jeito foi convencido pelo pai. Henry disse-lhe que os acidentes aconteciam não por culpa dele, mas por culpa dos outros, e que como ele era uma pessoa atenta, nunca deixaria um acidente acontecer. Seu pai sempre conseguia convencê-lo. Aceitou o carro, e foi tirar a carteira de motorista. Ele dirigia incrivelmente bem para alguém que nunca tinha pego num volante. Tirou a carteira, e apesar de não gostar muito de ideia de ter que conduzir um carro por aí, admitiu sair com o carro de vez em quando. E a sensação de dirigir era ótima, a melhor que ele já tinha provado. Um misto de poder e liberdade... Ele, talvez, pudesse gostar daquilo.

Logo que saiu sua carteira, ele pediu pra levar o pai até o trabalho, e levou a mãe também pra fazer compras, e eles estava dirigindo cada vez melhor. Foi buscar o pai no trabalho, no mesmo dia. E foi buscar as roupas da mãe na tinturaria. Ele começou a gostar daquilo. Mas ainda ficava de certa forma receoso... e com razão, não é pra qualquer um passar a vida toda sofrendo inúmeros acidentes de carro, e ainda assim conseguir entrar em um... e ainda mais, dirigir um. Mas Jim estava se saindo bem.

Na semana seguinte teve um almoço, no domingo. Para celebrar o aniversário de vinte anos de casamento entre Henry e Mariah foi. Tudo aconteceu na casa de deles. Os parentes vieram de várias partes do estado, até aqueles que andavam meio afastados compareceram. Aproveitaram a data para se reaproximarem. E olhavam para Jim, agora um homem feito, e incrivelmente inteiro. Era de se espantar. A festa rolou bem, foi até tarde. Algumas discussões entre a família, nada de anormal. Mas logo já era hora de todo mundo ir embora. A despedida foi aquela coisa tradicionalmente chata... todo mundo dizendo que estava com saudade, e todo mundo marcando de se reencontrar, de fazer mais churrascos, de passarem o natal na casa de fulano... tudo o mesmo tédio de sempre. Quase todos tinham ido embora quando tio Charles disse que não tinha como ir embora, e que não podia dormir lá, tinha que acordar cedo pra trabalhar. Claramente Jim se ofereceu para levá-lo pra casa, era só uns 20km dali, nada demais. E eram dez da noite, a rua estaria vazia. Charles aceitou, claro. Como recusar a carona do sobrinho?

Logo saíram no carro de Henry, pois Jim tinha esquecido de abastecer o dele. Agora Henry tinha um sedã vermelho escuro, lindo. Com dois anos de uso... mas estava como se fosse novo, era a preciosidade de Henry. Charles, pra variar, puxou assunto:

_E aí, cara, você não tinha medo de carros, e essas paranóias? - começou
_Eu tinha, ou tenho, não sei direito...
_Mas você sempre teve um azar, hein, cara...
_Pois é, as coisas acontecem... mas nunca foi nada demais. E como você bem sabe, a culpa não foi minha.
_Em nenhum deles? só pode estar tirando com a minha cara, você deve ter alguma culpa no cartório!
_Olhe, tio, eu tô te dando carona, mas não abusa, tá?
_Oh, desculpa aí, cara... só estava descontraindo... Mas e aí, tá namorando?
_Não! - respondeu com tom de quem não queria mais conversa... seguiram calados pelo resto do caminho.

Jim reparou que o lado da cidade em que vivia Charles era meio vazio. E meio afastado. Nunca tinha ido a casa dele, era sempre ele que ia visitar, nunca o contrário. De qualquer forma, deixou o tio dele em casa, se despediu brevemente, e quando entrou no carro, ouviu da janela de seu tio:

_Cara, você tem que aprender a brincar... parece com a sua mãe! - Charles era um sacana.

Estava voltando pra casa quando decidiu parar pra comer alguma coisa, parou num McDonald's e fez seu pedido. Ficou impressionado com o fato de que as dez horas da noite de um domingo as pessoas ainda estivessem trabalhando em algum McDonald's. E ficou impressionado com o número de clientes... aquele lugar estava quase lotado. Fez seu pedido, e se dirigiu a uma das poucas mesas que encontrou vazias. Comendo calmamente, e pensando que mesmo estando num churrasco, a coisa que menos fez foi comer... isso é pros convidados. Comeu as batatas, e quando finalmente terminou, se sentiu bem, e calmo. Coisa que não sentia há alguns anos. Entrou no carro, e se dirigiu pra casa...

Viu um sinal vermelho, mas viu também que a rua estava deserta. Sempre soube que era perigoso parar nesse tipo de sinal, mas decidiu não dar sorte pro azar.

_É melhor eu parar, o carro nem é meu, e está no seguro - falou ele pro banco vazio ao lado. E logo que ele parou, um ônibus passou rasgando no cruzamento. Devia estar atrasado. Por pouco, muito pouco ele não sofreu outro acidente. O sinal ficou verde, e logo que ele começou a acelerar sentiu uma pancada na traseira de seu carro. Afundou a cabeça no volante, não perdeu a consciência, mas ficou ligeiramente tonto. Sentiu que tinha cortado o supercílio com o impacto.

_Ohhh merda! - gritou - tinha que acontecer comigo....

Saiu do carro cambaleando, e olhou ao redor, a rua estava vazia... que novidade. Foi o mais rápido que pode olhar o estrago que tinha feito no carro. O outro carro era uma picape velha, de um verde escuro e descascado. Ela tinha se afundado na traseira do carro. Quem dirigia era uma mulher - que novidade -, ela estava com a cabeça afundada no volante, e os braços de alguma forma abraçavam estavam presos ao volante. E o fato mais marcante era um caco de vidro verde enfiado no pescoço dela. Devia ser do tamanho de uma lente de óculos.

_Hora errada pra dar um gole no vinho, não? - comentou com a moça inconsciente.

O celular ainda estava no bolso, que milagre. Ligou para o primeiro número que consegui pensar. Olhou em volta enquanto o celular chamava o tal número. A rua não tinha uma viva alma. Quem atendeu foi a polícia. Uma mulher com voz mecânica e fria começou a falar:

_Alô? Central da polícia militar falando, como poderia lhe ajudar?
_Moça, sofri um acidente de carro, poderia mandar uma ambulância? Tem uma mulher ferida aqui!
_Qual seu nome, senhor?
_Jim... mas moça, mande a ambulância!
_Senhor, peço que não se desespere... Aonde você está?
_Eu estou no cruzamento da 5ª avenida com a 27ª rua...
_Vou transferir a sua ligação para o centro de emergências dos bombeiros, senhor, as suas informações estão anotadas.
_Moça, essa mulher tá morrendo! - desesperou-se - você pode mandar logo a ambulância?
_Senhor, você está me desacatando. Por favor, se acalme! -tentou apartar
_Mas, como eu posso me acalmar enquanto essa mulher está.... - parou de falar
_Senhor? .... Senhor? Você está aí, senhor?
_Esquece. Ela morreu, pra variar. Manda uma viatura que eu quero ir pra casa. - desligou.


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