sexta-feira, 5 de julho de 2013

Mais um desses perdidos...


                                                              “Há um pássaro azul no meu coração,
                                                              que quer sair.
                                                              Mas eu sou demasiado duro para ele.
                                                              E digo, fica escondido, queres arruinar-me?”
                                                                                                             (Charles Bukowski)

Tem dias que não são feitos pra dar certo. Mas, os dias que dão certo são desconfortáveis demais, não consigo ser dono de um e continuar de consciência limpa. Mas é assim que tudo flui acorde mais um dia, tome um banho gelado, uns goles de café com vodka, e siga a vida.
_Não te preocupa, amigo, é normal que seja assim.
      Chegar ao inferno é assim, mas não é normal. Só não me confesso pra evitar de acabar lá, porque de certa forma, se eu me confessar alguém me manda pra lá mais cedo.
      Devia ter um carro, Mercedes Benz, isso sim é classe. Mas por, algum motivo qualquer, ainda não tenho. Nem minha bicicleta anda bem das pernas – ou rodas – foi uma vítima quase fatal dos dias que não dão certo. Mas logo seria consertada. Questão de sorte, ou então, questão de algum dia de consciência suja.
      Devia parar de me empolgar com as coisas. No geral elas dão errado, de uma forma ou de outra. Mesmo quando dá certo, tá errado. E aqueles caras que lêem livros, eles dizem saber disso. Não... não. Se eles soubessem mesmo, já teriam feito dos livros uma fogueira, e teriam dançado ao redor dela. Estuprar o cadáver já não é mais crime quando se tem uma cara permanentemente carrancuda.
      Aquele egípcio que inventou o relógio, ele sim, devia tratar de desinventar aquilo ali. Eu o odeio cada vez que toca o alarme. Cinco e meia da manhã. Meu anjo despertador é alguém falando sobre o trânsito. Rádio relógio não é caro. Esse aí... foi de graça. São Paulo tem um charme, mas ele só era visto da Avenida Paulista. Daqui da Baixada do Glicério ninguém vê. E mesmo às cinco e meia da manhã, quando a cidade está ainda dormindo, é possível ver a sujeira se mexendo nas ruas lá embaixo. Como se faz pros dias darem certo? Minha vida é um conjunto de dias que deram errado.  
      Morando no pior lugar que meu dinheiro pode pagar, e vivendo do pior jeito que consigo. É um esforço fracassar em tudo que se tenta, eu mesmo, fracassei até nisso. E mesmo assim, minha roupa de dormir continua sem rasgos evidentes, e por coincidência, vai ser minha roupa de trabalhar também. A outra muda de roupa tinha ficado pra da janela, secando. Mas minha roupa não sabe secar com chuva. Os pequenos detalhes que fazem o dia dar errado.
      Um passo a menos. Acordado e vestido. Dois detalhes a menos, talvez hoje o dia não dê tão errado. Pão, café de ontem, é isso aí.
_Temos ainda dois dedos da garrafa, é o suficiente pro café da manhã.
      Não é todo dia esse luxo. Quarto e banheiro. Eu teria o prazer em fazer faxina, se tivesse alguma coisa pra faxinar. É o lado bom, e o lado ruim de não se ter nada em casa. Donas de casa não parecem ser tomadas pelo tédio enquanto limpam o teto com aspirador de pó Max 3000 super-plus. Eu lavaria meu colchonete se isso não fosse jogar sabão fora. E, se tivesse uma mesa, ela estaria limpa. Mas o frigobar, dele sim eu me orgulho. Vazio e limpo, e está assim desde que um motel o abandonou. Logo compro também uma vassoura, sim, quem sabe um rodo. Até mesmo uma lata de cera. Encerar o chão, deixá-lo brilhando. Olhar para o teto e não ver nenhuma teia com aranhas nojentas que moram e comem melhor que eu, e isso ainda na minha casa.
      Barriga cheia.
_Sim, quase isso.
      Falar sozinho é um hobby saudável, melhor que a época em que costumava dançar com a música da rua. O eco fica mais divertido quando eu conto alguma piada. Às vezes até moldo meu cobertor na forma de um boneco. Assim não me sinto totalmente louco. Eu nunca me apeguei aos detalhes. E o cobertor parece mais humano que eu.
     Meu tênis tem uns buracos. No pé direito. Alguns eu consegui que remendassem, outros quase conversam comigo. Me orgulho desse par. Ganhei num sorteio. Mas abrir buraco é jogar sujo demais. Alguma coisa deu errado. Chuva, um cachorro molhado. É que, quando chove parece que essa parte de cá da cidade se dissolve em lixo e merda. Tudo vira um grude só. Tem aspecto de uma pasta preta, que fede igual mijo de mendigo. Não que perca meu tempo pensando nisso, mas faz parte. E no momento que pisar pra fora do apartamento sei que água vai encharcar minhas meias. E que a sensação que vou ter o dia todo é de como se estivesse patinando naquela bosta.
      Mas mesmo assim, não é tão ruim. Não pense nisso, dois dedos de vodka ajudam um pouco. Sempre odiei destilados, mas nem devem ter destilado essa porra. Podia ter roubado alguma coisa de qualidade. Passar o dia ouvindo o barulho que as meias encharcadas fazem no buraco dos meus tênis é aturável. Não quer dizer que deu errado. Característica não pode ser defeito.
      Quando eu por o pé pra fora desse lugar, nada mais é defeito, tudo é característica. É... andar um pouco faz pensar. Ver o charme da cidade, aquele que ninguém vê. Devia começar a acordar mais tarde. Só saio às seis e meia. E não consigo demorar uma hora pra me arrumar, e mesmo assim insisto em acordar com uma hora de antecedência.
      E aqueles espelhos na parede, eles incomodam ao mesmo tempo em que me confortam. Peguei-os não sei por qual motivo. Não couberam no elevador, e subir doze andares com eles me cortando os dedos não foi pouca coisa. Tanto é que só descem se forem quebrados ou carregando meu corpo. Têm o tamanho da parede toda. Seis espelhos de um metro de largura e um e oitenta de altura cada um. De alguma loja ou coisa assim, escondiam muito bem a tinta amarela e descascada da parede. Mas a umidade fazia o mofo se espalhar que nem... As outras três paredes pareciam suar quando chovia, de tanta água que escorria...
      Se eu tivesse energia elétrica, tomar banho seria um desastre. Meu banheiro parecia ter o teto mais baixo do que o resto do apartamento, fácil notar isso. Com um e sessenta e dois, só entrava curvado nele. E o vapor solto pelo chuveiro era absorvido pela parede, e depois cuspido na forma de mais mofo ainda... Quem sabe uns azulejos em vez de tinta...Seria o máximo. Vermelhos ou azuis, grandes azulejos brilhantes e decorados. Sim...
      Seis e meia, hora de mais um charmoso dia de chuva. Pelo menos a viagem era confortável. Quarenta minutos andando até meu trabalho pela área que mais gosto. O Centro. Do mundo, da cidade, o meu, tem hora que não sei quando um acaba e o outro começa. E mesmo assim, sigo firme e ironicamente centrado.
      A parte mais legal de ter dado errado – em tudo – é o caminho até o meu trabalho. Passo pelos lugares que mais amo. Eu amo aqueles que falharam, tanto quanto à mim mesmo. E no caminho tudo vejo são pessoas amáveis. Logo depois de sair do meu prédio, debaixo de uma garoa fina e sibilante como se fosse navalha, dou de cara com meu próprio lar. Meu covil. Pobres olhos turvos como as portas de aço das lojinhas, ainda todas fechadas. Glicério, você se supera cada dia mais. Cada par de olhos é um sonho que, por ter dado errado, se dirige ao metrô. Quantos sonhos cabem num vagão às seis da manhã? Eu nunca fui meu super-herói favorito. Não posso me dar ao luxo de pegar metrô, não quando tenho de caminhar pouco mais do que duas estações.
      Mas a simples caminhada até a praça da Sé me inebria com todo seu calor de gelar o sangue. Cerca de dez minutos de casa até a Sé. Tranquilo. Seria melhor se não estivesse garoando. Meu dedão já deu um beijo na chuva. E  o cabelo escorre rebelde na minha cara. Gosto da garoa. Ela me desconforta e acorda. Sinto-me mais vivo quando sou a falha. E chegar a Sé me explode em arco-íris e lhamas. Lhamas são ovelhas misturadas com girafas, melhor combinação? Uma lhama em São Paulo.
      Tudo que se vê na Sé é fruto do homem. Vejo uma bela catedral. Li num jornal que ela é uma das cinco maiores construções góticas do mundo. Aquele jornal não foi meu melhor cobertor. Um marco-zero. Desse ponto minha cidade começa. Sim, minha, desposei-a. E agora vejo meus semelhantes, espalhados pelos tantos metros quadrados dessa praça encardida. Moradores de rua, dizem eles. Eu chamo de “os verdadeiros moradores de São Paulo”. São eles que sentem a cidade, que passam verões e invernos aquecendo-se no solo infértil daqui.
       Sempre tive como ponto máximo da evolução urbana a terra dos canteiros daqui. Sim, se andar um pouco por aí, com certeza vai ver várias praças, a Praça da República é um ótimo exemplo. Aqueles canteiros contendo terra argilosa, de tom marrom-alaranjado. Aquela terra é essa cidade. Representa-a perfeitamente. Quando qualquer garoa cai sobre ela, se espalha por tudo ao redor, impregnando e dominando tudo. Manchando o calçamento com uma cor que me causa náuseas. Encardindo praças, ruas e mais. E quando faz sol, então sim, ela se mostra verdadeira. Seca e rachada. Fica dura que nem pedra, infértil como um vagão lotado de metrô. E ainda assim... a amo, linda terra deslumbrante.
      Realmente, a Sé me conforta, mas no caminho até a Sta. Efigênia parece que tudo conspira à meu favor. A garoa e o céu nublado fazem-me reverberar por dentro, e esboçar um leve sorriso por fora. Todas as ruas do centro histórico. Direita. Nela eu me sinto um amante que é beijado e mordido. Todos lá. Beijam-me e me mordem, e minha esposa nada faz. Deve gostar disso, tanto me trata bem, deve ficar de longe, me vendo viver, e então, inebriar-se com todos os meus suspiros de ódio. Gosto mais desse caminho. Prefiro evitar a entrada pra Vinte e Cinco de março, ela desvirtua minha cidade. Aquela ruazinha que liga a R. Boa Vista com essa outra rua infernal devia ser fechada. Sempre que sou forçado a ver aquela descida pra inferno, sinto meu coração palpitar. Como se fosse uma bomba...
_Não chego mais perto que isso, senão explode.
      Então acabo embrenhado nas ruelas centenárias daquela parte tão viva – e velha – da cidade. Até a prefeitura. Que se impõe. Como um bloco maciço de mármore. Com um jardim suspenso que parece imortal. E mesmo com todo quebra-quebra que rolou por aqui, não reclamo. Protestos acontecem, eu protesto contra dias que dão errado. Mas gosto deles todos, os jardins, os blocos de mármore, e até mesmo os dias que dão errado. E sim, magnífico como só ele. O Viaduto do Chá.
      Sempre paro pra olhar os carros passando. É uma visão peculiar. Todo mundo que passa por ali sempre tem algo há fazer. Como num formigueiro. Um médico, outro advogado, um professor. Não, se fosse professor estaria tomando chuva junto comigo. E sem sapatos. Não gosto de professores. Queriam sempre mandar em mim. Professores gostam de mocorongos namoradores de livros. Nunca poderiam gostar de mim. Gosto de realidade. De ver o circo pegar fogo. O som de uma página virando me faz ter cólicas. E além do mais, carros são muito poluentes. Fazem fumaça. Nunca quis um carro. Mas poderia, sem problemas ser professor. Ensinar sobre a Galeria do Rock. E todos os perdidos que moram lá. Parecem brotar das lojas, e a partir de então começam a virar parte do prédio. Sempre passo lá por dentro, evitando o andar dos chineses. Aquele é o andar de compras – que é, na verdade um térreo. Eu gosto do primeiro andar. Gente com cabelos coloridos, piercings, espaçonaves e guitarras. Tudo combina com uma música do The Doors que sempre toca numa loja hippie.
_Qual o ápice?
_Hein?
_Da tua viagem! Me conte...
      Sim, tem um ápice. Melhor que a Praça da Sé. Bem melhor. Ali, logo depois de atravessar a Avenida São João, na frente da Galeria do Rock, aquela praça é o começo do auge. O auge negativo de São Paulo. É o lugar que mais amo odiar. Dali até meu trabalho, sim. O lugar meu encardido pela terra argilosa, o lugar com os piores amantes de São Paulo. O mais fétido, pútrido e nítido retrato do Centro. Nunca soube o nome daquela praça. Tem uma placa, mas não tomo ordens de placas, só de bobões. É uma de minhas tantas regras. O tédio me fez criar regras. Não tomar ordens de objetos. Quem é um adesivo pra me dizer se devo ou não ultrapassar a faixa amarela? Ou então, minha regra favorita: Nunca conheça pessoas novas. Muita conversa, besteiras, elogios, e falsidade dispensável. Vivo sem isso. Eu sempre quis ter uma máquina de algodão doce. Brotam fios de açúcar como se fosse mágica, e grudam-se no palitinho como se atraídos por força magnética. Devia ter seguido mais meus sonhos. Só é uma pena que seja tão enjoativo e doce.
   Descer a João de Barros é sempre uma comemoração. Mesmo com o cheiro da urina já impregnado nos cantos daquele lugar, e com alguns irmãos que parecem mais cadáveres que gente viva. E com a carranca de sempre, vou cantando I Will Survive enquanto desço aquela rua me sentindo como num grande filme de faroeste.
And I
Bang bang
I will survive...
     E ver a catedral da Santa Efigênia... Alivia-me. Uma construção muito imponente. Meio escura... demais, lembra-me minha casa. Isso desconforta e alivia. E ainda que todos aqueles pares de olhos passem batidos. Sem me notar, sem notar, com precisão, a real grandeza daquele edifício magnífico, imponente e intimidador, faço aquele bom sinal da cruz. Quem sabe a Santa não me ajude um pouco mais. Ou então atrapalhe tudo de vez. Mate-me de vida. Vai que numa dessas perco meu medo de altura. De cachorros, e de não poder fracassar em mais nada. Confundo-me muitas vezes. A cidade e Eu. Virando-me e desvirando tudo logo após. Tantas as ideias. Tantos milhões de sonhos. Uma pena que ninguém preste atenção. Quem entrega panfleto da loja de celular sabe.
     Não que seja um empreguinho ruim. Só é miserável. Faz você se sentir pior que lixo. Quando os caras acham que estão num filme do Matrix, e desviam dos panfletos como se fossem balas. Não posso muito reclamar, não ganho por panfleto entregue, se fosse assim eu engolia todos. Mas parece que eu tenho bafo. Não disse que não tinha. Mas desviar desse jeito joga qualquer um no chão. Aquele monte de gente indo e vindo, e muito raramente alguém pega um panfleto ou coisa do tipo. Me acostumei. Sinto-me um lixo quando nem as tias velhas pegam o panfleto por educação. Elas vão pra igreja, rezam, falam com papai do céu, e depois ficam com essa. Se não pegar meu panfleto eu enfio o inferno no teu cu. E depois o lacro à pregos.
    Pelo menos não sou tipo o Pulinho. Ele sim é feio. Chamam de pulinho porque uma vez sofreu um acidente de carro – atropelado enquanto entregava panfletos na Av. Paulista. Contam que ele saiu pulando numa perna só. Hoje em dia tem ainda o nariz quebrado, e uma perna grotescamente mais fina que a outra. Quem entrega panfletos não tem fisioterapia. Ele sim é feio. Eu só preciso de um trato... Coisa assim.
    Ou tipo o Leandrão. Vive de sofrer. Sempre apaixonado, sempre traído. Nunca quis que eu copiasse minhas regras num papel e colocasse num envelope, e fizesse de presente. Mas tem grana. Vive lá só pra ajudar o pai, que tem três lojas pela Efigênia. O tipo playboy que paga de trabalhadorzinho, que entende da vida. Tirou uma foto comigo e postou no Orkut esses tempos. Cara gente fina, fuma maconha pra caralho.
    Se eu abrisse uma loja eu não venderia panelas. Até hoje só cinco pessoas apareceram perguntando por panelas. Eu teria vendido só cinco panelas numa loja cujo custo seria mais de trezentos reais. É um absurdo. Eu devia pedir bolsa família. Ajudaria bastante se eu recebesse ajuda. Eu moro com o boneco de cobertor, serve Dilma?
   Oito da manhã, hora de pegar meus panfletos. Hoje tem chuva, e a rua vai ficar mais vazia ainda. E pelo jeito, esse tanto de polícia espanta os malandros velhos, que vendem produto chinês de contrabando. Mas os clientes gostam daqui por isso. Então de que me adianta? Quando o dia começa errado, só conserta se você não ultrapassa a faixa amarela, rapaz.
  


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