A praça da liberdade muitas vezes me lembra
um deserto. Deve ser por causa do espaço aberto e plano, e eu vou lá geralmente
quando está ensolarado, calor, e cheio de pessoas que andam de um lado pro
outro como se fossem besouros rola-bosta. Curiosamente estava assim da última
vez que eu estava lá, apesar das nuvens escuras que se aproximavam. Era mais ou
menos onze e cinqüenta quando cheguei à estação de metrô que fica no centro
daquela praça. Quarta-feira, dia dos namorados, não que na hora eu soubesse
disso...
Meio-dia, e eu estava esperando meu amigo,
Júlio. Tínhamos um plano. Parecia uma novela, mas era só um plano, e ele já
estava atrasado. Gosto de muitas coisas, atrasos não é uma delas. Eu gosto de
regras. Sempre tive um afeto especial por elas. E eu recém tinha lido “O Clube
da Luta”, não me impressionei tanto pelo livro. Criativo, legal, umas frases
bacanas pra ter impacto, mas niilismo nunca foi minha onda. Mas uma coisa me
chamou atenção, uma coisa salvou o livro todo. Regras, ele falava de regras.
Sete eram as regras, e apesar delas serem sobre gente estúpida se batendo,
ainda assim eram regras. Isso me fez colocar num papel as minhas regras.
Escrevi oito. Não cabiam apenas sete na minha vida.
I-) Tenha uma rotina, não a quebre.
II-) Seja pontual e honre compromissos.
III-) Não conheça pessoas novas.
IV-) Não fale nada útil, caso não seja
extremamente necessário.
V-) Nunca é realmente necessário, portanto,
silêncio é teu aliado
VI-) Seriedade anda de mão dadas com a
chatice, e você fecha o círculo.
VII-) Mentir é obrigatório quando se tem
interlocutor, e sentimentos são considerados como verdades.
VIII-) Nunca, jamais, em hipótese alguma
quebre as regras, nenhuma delas.
Essas são as regras, e até o momento as
três primeiras e a última já tinham sido quebradas. Eu suava, por causa do
calor, do nervosismo, e ainda mais por ter quebrado meu conjunto perfeito de
regras. Estava ouvindo Pink Floyd. “Jogando fora os momentos que fazem um dia
tedioso”, dizia a música logo que David Gilmour começava a tocar. Não jogue
momentos fora, é contra as regras. Mas Júlio não entendia minhas regras, sempre
dizia que era baboseira de gente velha. Eu sou velho, ele que não entende.
Meio-dia e cinco, nada de Júlio. O plano
era o seguinte. Saímos da escola onze e trinta, ele pegava o irmão dele na
escola ao lado, enquanto eu ia de metrô até a Liberdade. Ele iria até sua casa,
e deixaria seu irmão lá mesmo. Iria para a Liberdade, e onze e cinqüenta nos
encontraríamos na praça. Regra um quebrada. Ele não trocaria de roupas, não
comeria, nem sequer respiraria dentro de sua casa, ele iria para a Liberdade.
Mas ele estava dez minutos atrasado. Como as pessoas não entendem muito bem o
quanto minhas regas são importantes, eu tolero cinco minutos de atraso, ele
estava dez. Isso era muito mais do que o tolerável. Regra dois tinha sido
quebrada.
Não era o melhor dia da minha vida desde o
começo. Estouraram o zíper de um dos bolsos da minha mochila novinha no metrô.
Eu tinha comido aquele macarrão da escola. Ainda bem, quando eu espetei ele com
o garfo amarelo de plástico ele quase me mordeu. Aqueles garfos sempre estão
engordurados. E aquele macarrão não tinha me deixado legal, estava meio
enjoado, e o calor não ajudava. Minhas roupas pareciam estar coladas no meu
suor. Minhas costas estavam molhadas de suor, minha cueca estava apertando
minhas bolas, e eu estava me coçando por causa da sensação de aperto. Quinze
minutos atrasado e eu no Sol.
Ah, como pude me esquecer. A terceira
regra. Ela também tinha sido quebrada. Minhas três principais estavam mortas.
Eu me sentia horrível por isso, mas eu tinha lido que uma bomba que não explode
não tem motivo pra ser feita. Talvez essas regras fossem bombas. Eu preferia
elas inteiras, eram mais bonitas de serem admiradas. Maldito seja o facebook.
Três semanas, três regras. Coincidência, claro. Era uma foto engraçada. Ela
tinha postado uma foto com uma lhama grande e branca, mais bonitas que os
grandes cavalos de raça que corriam em hipódromos. Mais
bonita que... mais bonita que as minhas regras. Eu tive que mandar uma
mensagem. Começou normal, ela gostava de lhamas também. Eu gosto mais, é claro,
mas o assunto rolou. E por três semanas nós conversamos. Todo dia. Mais de três
mil mensagens. Foi-se a regra três. E eu não conseguia acreditar que, depois de
três semanas com a regra quebrada ainda nada de ruim tivesse me acontecido. Me
causou uma grande dúvida sobre a legitimidade do meu sistema. Amanda era seu
nome. Era bonita, sem ser exageradamente bonita. “Eu não teria vergonha de sair
na rua com ela”. O papo era bacana. Ela disse que gostava de ler. É, não teria
vergonha.
A idéia do plano tinha sido dela. Não gosto
de planos. Era, pra ela, simples, só buscá-la na porta da escola, levá-la em
casa, conversar um pouco. Eu não queria conversar, acho que gostava dela. Vinte
minutos atrasado. Dentro da estação tinha uma máquina que vendia garrafas de
refrigerante, água e salgadinhos. Dois reais por uma garrafa d’água, que seja.
Sorvia a água enquanto esperava Júlio. Ele não podia ter demorado tanto, não
era possível. Planos não são legais, mas são compromissos, então há de se
honrá-los. Amanda estava nos esperando, eu tinha certeza. Tudo tinha ido por
água abaixo. Viu? Quebre as regras, olhe agora como tudo está, dia de sair é Domingo,
não Quarta-feira.
Com trinta minutos de atraso ele chegou.
Seis vezes o tolerável. Eu realmente o considerava demais. Senão teria ido
embora após cinco minutos. Júlio tinha trocado de roupas, e estava com um
pacote de salgadinho na mão. Ótimo, da regra dois tinha sobrado só o papel que
estava na minha carteira do Batman.
_Vamo logo, cara. Cê ta lerdo? – ele falou,
ainda de longe, como se o atrasado fosse eu.
_Já estamos atrasados. Ela nem está mais
lá.
_Claro que está, eu liguei pra ela, tá te
esperando.
_Então vamo rápido.
E fomos o mais rápido o possível. Demorou
cerca de oito minutos até chegarmos lá. Já era quase meio dia e quarenta quando
chegamos. Lá estava ela. Eu estava suando de nervoso, não pelas regras, mas por
vê-la. Era mais bonita que nas fotos. E sorriu quando me viu. Um dia de sorte?
Regras podiam ser descartadas? Talvez, por aquele sorriso... talvez. Ela estava
ainda na frente da escola dela, me esperando. Júlio tinha visto ela ainda de
longe. Visão não é uma das minhas virtudes. Conseqüentemente ele foi o primeiro
a falar com ela, pra me deixar por último... como um gran finale das
comprimentos. Um “e aí” e um beijo no rosto. E então ela me abraçou. Regras?
Quem precisa delas? Esqueceria as regras de qualquer coisa por aquele abraço.
_Oi, Bruno, como é que tá? – perguntou
Amanda, era a primeira vez que escutava a voz dela, combinava perfeitamente com
ela. E o cheiro de seus cabelos, vão ficar pra sempre na minha memória.
_To tranqüilo – respondi, tentando não
parecer eufórico, não deve ter funcionado, ela riu. A risada dela era alta, e
percebi que ela gostava de falar alto. Eu não falo alto, é horrível. Tenho nojo
de quem grita. Ou melhor, eu tinha, pois, a partir de agora, eu também pensaria
em começar a gritar. A regra cinco teria de ser repensada.
E então fomos escoltando-a até sua casa.
Não era tão longe. Quinze minutos andando. Minhas costas doem quando eu fico em
pé por mais de meia hora, ou então quando ando demais. E à essa altura elas
pareciam chiar e ranger de tanta dor, mas eu estava segurando a mão dela. Quem
liga pra dor, hein? Fomos conversando coisas banais. Principalmente comentando
as conversas na internet. Sabe como é, eu não levo muito jeito com pessoas
novas. Regra três tem motivos para existir, e não é só por causa disso, tem
alguns outros, mas isso não é importante do lado dela. Júlio parecia ter mais
assunto com ela do que eu. Normal, ele é treinado nisso, passou a vida fazendo
isso. E talvez, prestando atenção na conversa deles eu conseguisse achar algum
nicho, e então conseguiria fazer ela olhar pra mim. Mas eu me contentava em
apenas contemplar a imagem de nossas mãos juntas. Era definitivamente algo
realmente incrível, que valia mais que regras bestas.
Quando chegamos na frente do prédio onde
ela morava, ela perguntou se alguém queria água, ela subiria e iria pegar.
Júlio não é do tipo contido, basicamente mandou ela subir. Ela foi, rindo.
Estávamos na parte de fora do prédio, que fica numa rua bastante inclinada. O
prédio dela tinha duas portas antes de se chegar ao saguão. Uma era feita de
barras de ferro, e a outra parecia madeira pesada, ou até mesmo ferro pintado,
pra parecer madeira. Ela tinha desaparecido quando Júlio falou:
_ É, cara, parece que hoje é um dia bom.
_Né, eu quebrei metade das minhas regras e
nem morri.
Júlio riu. Ele não leva as regras à sério,
eu levo. Ou pelo menos levava. Quando Amanda voltou trazia uma garrafa e um
copo de plástico. A garrafa estava suada de tão gelada que estava a água que
continha. Ela tomou o primeiro gole. Até tomando água ela parecia bonita. Me
pergunto até hoje o motivo de ter reparado nisso. Eu enchi o copo novamente e
tomei-o todo de uma só vez. Então Júlio pegou o copo, a garrafa, e encheu ele
mesmo, rindo como se aquilo fosse algo fora do comum. De certa forma era. Ele
tomou meio copo, e então jogou o resto fora.
_Cê cuspiu na água, né, filho da puta?
_ Só um pouco – respondi.
Amanda riu alto mais uma vez, e me lançou
um daqueles olhares que quase me fazem desmaiar. Eram profundos, negros,
brilhantes e felizes aqueles olhos. Incrível como eu não pensava em nada
enquanto ela me olhou. A sensação de tempo era descartável. E então ela desviou
o olhar, como se quisesse me fazer vontade. Ela queria, e tinha conseguido.
Eu não agüentava mais ficar em pé, tive de
me sentar, Júlio se sentou, e então ela sentou do meu lado. E então voltou a
conversa. E novamente Júlio era o centro das atenções, ele é bom com isso. Mas
eu participava do assunto, na medida do possível, mas a regra seis é mais parte
de minha personalidade do que apenas uma regra. Júlio não entendia as regras, e
ele era engraçado, tem boas piadas sempre. Eu gosto de silêncio e de ser chato.
Amanda pelo visto gostava de gente menos contida. Ela ria, e ria, e não parava
mais de rir, e de vez em quando ria das minhas piadas, cada vez que seus olhos
brilhavam e ela soltava uma gargalhada com uma piada minha meu coração vibrava.
Mas as piadas acabam, mesmo as piadas de Júlio, mas mesmo quando acabavam ele
sabia ser engraçado:
_Aí, acabou o assunto – disse ele olhando
pro céu. Nuvens cinzentas e pesadas estavam chegando mais perto. Provavelmente
logo encobririam o sol. Nem gosto de sol mesmo. Aquela estúpida bola de fogo
que só me torra o saco. Mas que ele fique lá, não gosto de frio.
_Pois é, mas eu posso pegar meu violão e
meu skate, oque vocês acham? – Amanda tinha solução. Ela parecia entender das
coisas. Eu entendo das coisas.
_Pode ser, ainda que eu não saiba tocar –
respondi. E ela riu, mais uma vez ela riu. Respirar é difícil quando se está
maravilhado.
_Ok, vou lá, já volto!
Júlio me olhou com cara de quem gostava de
tudo que estava acontecendo. Ele é meu co-piloto. Eu não sou o carismático, mas
ele faz com que eu pareça. E eu o sério, na maior parte do tempo ele é bem mais
útil. Carisma é melhor que seriedade.
_É, parça, acho que ela gosta de você. –
Era legal ouvir aquilo dele. Eu posso entender de Senhor dos anéis e
Schopenhauer, mas ele entende de mulher, e se ele diz, é verdade. Ele dizia que
a regra dele era não mentir. Eu nunca precisei mentir pra ele, mas achava
admirável o quanto ele gostava de ser sincero.
_Espero que goste mesmo, acho que gosto
dela, cara.
_Ihh, cara, sai dessa. Sem relações lembra?
É uma das tuas regras!
_Eu já quebrei tantas, dane-se as regras.
_Então tá, já é. – o significado dessas
palavras? Não entendi até hoje, mas nunca significava alguma coisa ruim.
Amanda voltou com um violão em uma capa,
que estava feito uma mochila em suas costas, e um skate debaixo do braço
direito.
_Vamos ficar na pracinha, ai ninguém enche
o saco, minha mãe pode chegar daqui a pouco, aí vai mandar eu subir.
_Vamo logo então, caraio! - Júlio riu,
Amanda também, eu fingi que tinha achado graça, forçar uma risada é natural...
Júlio pegou o skate dela, e foi um pouco na
frente. Eu levava o violão, não podia deixar uma dama carregando peso, falta de
educação, e como chato, eu tenho que me comportar como um velho. Velhos são
chatos e cavalheiros, eu também tenho esse hábito. Ela pelo menos tinha me dado
a mão de novo. Tão pequenas eram suas mãos. Eu olhava espantado. Pareciam
delicadas demais para serem tocadas. Mas eu não as soltaria por nada.
Chegamos à pracinha bem rápido. Não
conversamos no caminho. Eu me sentia bem. Apreciar o silêncio era ótimo, uma
das minhas coisas favoritas. Ela não parecia gostar. Estava sempre olhando pro
celular. E pro horizonte, observando as nuvens, ou qualquer coisa desse tipo.
Era bem pequena, a tal praça. Nunca tinha ido antes, ainda que já tivesse
andado o bairro da Liberdade quase todo. Talvez apenas não lembrasse. Sentamos
nos bancos de pedra, e ela pegou o violão.
Júlio puxou assunto, e já tinha várias
piadas. Eu estava relativamente quieto. Pra mim parecia tudo normal. Eu gosto
mais de ouvir as conversas. São tantos os gestos quase imperceptíveis. E eu me
divirto caçando-os, e cada olhar, cada movimento das mãos, dedos, pernas. Cada
passada de mão no cabelo. É algo realmente divertido. Por exemplo, quando
alguém que não é tão habilidoso com mentira tenta mentir, é possível descobrir
apenas olhando para suas mãos. Colocadas nos bolsos, ou então inquietas, com os
dedos sempre em
movimento. Ou então pela expressão facial. É difícil pra quem
mente te olhar fixo nos olhos, ou então não olhar fixo nos olhos. Sempre
opostos. Mas Júlio não parecia mentir. Apenas se mostrava como sempre. Com
movimentos exagerados, gargalhadas altas, e piadas que pareciam ter sido
pensadas por horas. Amanda parecia natural, eu acho. Não era familiarizado com
os gestos dela, mas apesar de estar à vontade, ainda mantinha os movimentos de
forma natural, e tocava alguns acordes desconexos em seu violão. Normal.
Enquanto a mim... Talvez eu parecesse desconfortável, entediado, ou mesmo
preocupado, mas eu estava apenas me divertindo.
Júlio, que estava sentado em um banco de
pedra um pouco mais à frente do banco em que eu estava sentado junto com
Amanda, de repente se levantou e falou de um modo que insinuava que queria me
dar espaço.
_Posso andar um pouco com o skate?
_Claro que pode, pra que pedir, só cuidado
com a lixa, é nova. – respondeu Amanda. Eu não entendo de skates. Prefiro
Bukowski.
Então meu co-piloto foi dar um volta por
ai. Era minha deixa. Peguei o violão da mão dela. Coloquei-o no chão, em cima
de sua capa. Sentei-me mais perto dela,
abracei-a e então tentei impor um tom mais sério na minha voz.
_Você sempre me mandava um monte de
beijos...
_É, eu sei...
_Algum deles de verdade?
_Todos, ué. – ela riu desconfortavelmente –
Mas acho que, sei lá, você tá muito perto.
_Isso é ruim?
_Não, que é... sei lá...
Sei lá? Quem diabos repete “sei lá” tantas
vezes? Eu tinha notado que era um hábito, mas pensei que fosse mais uma
daquelas coisas que você fala repetidamente pra ter personalidade, ou qualquer
coisa desse tipo. Foco. Não gostava de quebrar mais uma regra, mas agora que a
número quatro tinha sido quebrada junto com a cinco e a sete, eu já não tinha
como escapar. Então que pelo menos eu tivesse um pouco mais de foco na
conversa. Ah, a regra sete. Gostava tanto dela. Maquiavel, eu devia ser você,
só então eu conseguiria mentir sempre. A sete sempre foi meu ponto fraco...
_Mas só escrever “beijos” não significa que
você tenha realmente me dado um beijo.
_Eu sei, mas é que, sei lá, eu estou meio,
sei lá. É que eu não... – ela estava cada vez mais desconfortável. Rápido demais?
Não. Já estava vendo ela conversar por mais de uma hora e meia...
_Você não o que? Não quer me dar um beijo?
_Não é isso, eu não posso.
Me poupe, menina. Tem sapinho? Claro que
ela podia, eu não posso estar ouvindo isso, com certeza é joguinho. Agora eu
tenho que me virar, não sei jogar isso, prefiro Mario Kart.
_Não pode ou não quer?
_Não posso.
_Algum motivo específico? – Vai que ela tem
sapinho. Eu não estou com vontade de pegar sapinho, se eu ainda tivesse regras,
adicionaria uma outra “Não pegar sapinho ainda que o sorriso dela me deixe
bêbado”. Seria a número oito, e então a oito viraria nove. Tudo de praxe.
_Tem sim, é que, eu, érrr... Como posso te
explicar? – Explicando, piranha, é só explicar. – Você apareceu faz pouco
tempo, e eu, sei lá, estou confusa. Gosto de um outro menino.
Menino? Como assim? Eu não sou menino.
Então você gosta de mim, e do outro que é um
menino? É isso? Com isso eu consigo lidar tranquilamente. Sou um homem.
Tenho até barba, de vez em
quando. Quando eu não tiro uma semana toda dá até pra ver de
longe no espelho. É uma sensação incrível. Um dia vou ter uma barba do tipo
Gandalf com Marx e... não, Marx não, né? Quem mais tem barba? Foco, cara, foco.
_Eu não sou menino. E me conta isso
direito. Fale a verdade, é melhor que me enrolar. Se você não quer, é só falar.
– Como assim? Não tem como você não querer... tem? Droga, eu pedi pra você
falar a verdade. Mente se quiser, mas me beije, menina...
_Eu só não posso. Eu gosto do Júlio.
É, se alguma vez você viu um copo quebrando
e teve a oportunidade de prestar atenção nos cacos que voavam, você vai
entender como eu me senti. Mas eu comecei a rir. E falei baixo, mas de um modo
que ela escutasse. “Droga!”.
_Não fica assim, você é um cara legal. E eu
achava que gostava de ti, mas tudo aquilo que eu esperava de você o Júlio fez.
E você é sério. Parece mau humorado.
Eu sou legal, não estou mau humorado.
Porque tenho que ouvir isso?
_Mas eu tô confusa. Me sinto confusa demais
pra dizer que não quero. Só queria que você tentasse, sei lá. Me ver como
amiga.
Amiga? Amiga meu cú. Você disse que me
amava pelo facebook, e mandou até carinha feliz, como assim amiga? E para de
falar “sei lá”, ou eu meto a mão na sua cara. Eu vou recriar as regras. Número
um : “piranha toma tapa na cara” dois: “Não quebra a regra um, ela é
divertida”. Só. Fodam-se as regras, eu queria chorar, gritar, e ao mesmo tempo
eu ria por dentro. Eu sempre soube que era chato, mau humorado e tudo mais. Mas
ela devia entender. Ela disse que me amava. “Now our love is sour”. Interpol,
não era pra você fazer sentido! “Love will tear us apart”, Joy Division errou,
porque o amor só me despedaçou, ela não parecia nervosa, nem tremendo. Aliás,
continuava normal, no máximo desconfortável, como se eu fosse um mendigo pedindo
esmola. E estava fingindo que tocava violão nos dedos. A palheta ainda estava
na mão dela.
_Como assim? – eu perguntei. Eu achei que
você quisesse ficar comigo, e tivesse me chamado aqui pra isso.
_Eu não quero apressar as coisas, vamos com
calma. – Eu pareço apressado? Eu to correndo? Eu devia te foder, mas eu ainda
estou conversando, e você pedindo calma?.
Júlio chegou, estava suado, mas não parecia
cansado. Como era magro, sua camiseta suava estava colada no corpo de um jeito
nojento. Eu não conseguiria gostar dele. Deve ser as piadas.
_Voltei, seus puto! – E ele olhou pra mim,
com um olhar do tipo “quantos beijos essa novinha ganhou?”, mas o meu olhar
devia estar dizendo “Eu vou bater nessa piranha”.
Ele, de alguma forma entendeu. E lá veio mais uma enxurrada de piadas. Ele
não sabia que ela tinha mudado de alvo. Mas eu agora entendia. Ela estava
olhando pra ele com os olhos faiscantes desde que estávamos conversando na
frente do prédio dela. Naquela hora eu tinha pensado “Merda, eu queria ser o
carismático”, e sem saber, eu tinha me tocado de tudo. Eu tinha, Amanda também,
mas Júlio não parecia ter entendido, ou então estava mentindo. Ele não era de
mentir. Mas era bom com piadas. E Amanda ria de modo cada vez mais exagerado.
Mas, apesar de estar rindo, ela se levantou, e começou a falar.
_Eu tenho que ir pra casa, são quase três
horas, e sei lá, eu tenho que comer alguma coisa, você me leva até em casa? Vamos
Júlio? – Sua voz agora me dava nojo, e eu estava quase chorando. Isso era algo
que cortava meus ouvidos e me dava vontade de ouvir B.B. King. Se eu soubesse
chorar, eu já estaria me desmanchando. Mas eu sou muito homem pra essas coisas.
Chorar é coisa de maricas.
_Eu levo sim, mas eu vou de skate, senão
vai se foder. – Júlio falou isso com naturalidade, não era uma piada, mas ela
riu, e como riu... Ele tinha entendido. E me olhou com uma cara de cachorro. Do
tipo que falaria “puta que o pariu, fodeu...”. Eu só olhei, com os olhos
vermelhos, e dei de ombros.
Aquilo foi horrível. Eu não sou bom com
mentiras, e não choro. Ele sabia disso, e ela teria notado se pelo menos
tivesse olhado pra mim. Mas parecia encantada por ele. É, eu devia ser o
carismático. Em qual fila eu pego a ficha pra troca de personalidade? Eu não
poderia ficar do lado dela, não conseguia. Foda-se, eu vou embora, pensei.
Júlio não vai encostar um dedo nela depois de ter me visto daquele jeito. Ou
então, se encostar, melhor assim, ela é legal e tudo mais... Quê? Não, ele não
vai... mas se ele for... Não.
_Eu, é... já deu minha hora, e vai chover,
eu tenho que ir embora. Dormir, jogar GTA, um monte de coisas. Falou aí. – Eu
falei, com a voz trêmula. Eu agüentava. Mais um ou dois minutos. Calma, seja
meticuloso. Você tem que jogar. “Y” é o botão de roubar carro. Mas não era
simples assim.
_Não, brô. Vamo levar ela lá, ai vou embora
contigo – Ele quase implorou pra que eu fosse. Eu não. Ela me dava nojo, eu a
odiava. Eu cuspiria na cara dela. Lhamas fazem isso, eu posso também, não?
_Se eu não for vai dar problema...
_É, se tem que ir vai. Não fica enrolando –
Eu devia ter metido a mão na cara dessa menina. Não sabe calar a boca, com essa
gargalhada escrota. Eu gostava da voz dela.
_É, eu vou.
_Se cuida então, te vejo amanhã na escola?
– Se ela tivesse olhado pra mim teria visto. Minha visão estava turva. Merda,
deve ser um cisco no meu olho. Ou então essa piranha fodeu meu dia. “Normal,
acontece sempre!”.
Então eu peguei minha mochila, levantei, me
virei de costas, quase pisei no violão dela, e fui trôpego em direção à estação
Liberdade – eu não sabia em qual direção devia seguir, e nem me preocupei, mas
até aí, não devia ser tão longe. Ainda ouvi Júlio dizer “Puta que o pariu”, e
Amanda com aquela voz... nojenta, maldita, irritante, linda... dizer “Que
foi?”. Júlio respondeu mais alto que o normal, queria que eu escutasse “Nada
não, vamo logo que eu tenho mais oque fazer”.
Virei a primeira esquina que vi, tinha que
sumir do campo de visão dela. Não que adiantasse, ela não estava afim de mim
mesmo, nem me olhava. Não chorei, não. Chorar é coisa de bichona. E aquela
lágrima que caiu é culpa do cisco de Amanda que caiu no meu olho.
Eu estava meio perdido, meio desnorteado.
Cansado, meu peito doía, respirar era pesado, e meu coração não conseguia bater
com ritmo, eu o sentia vacilar. Sentia meu pés trêmulos, e minha visão ainda
estava turva. Não havia mais nada a se fazer... mostrei o dedo médio pro céu.
Pro sol, Apolo, Deus, Zeus, Silvio Santos, ou quem quer que fosse. Mas não
tinha sol, as nuvens estavam ali. Sério? Isso é hora de chover? Era hora de
chover. E a chuva não foi fraca. Começou a cair uma chuva forte, com os pingos
grossos. Daqueles que quando batem na sua cabeça fazem você ficar tonto. Teve
uma vez que eu vi um cara desmaiando na chuva por causa desses pingos, mas quem
liga? Eu não veria se isso acontecesse agora, não consigo nem ver minhas mãos.
Fui andando na chuva por cerca de uns dez
minutos, até conseguir achar a estação. Quando cheguei lá meus tênis estavam
encharcados. Eram brancos e novinhos em folha, mas agora estavam molhados,
sujos e cheios de folhas e até um papel de bala tinha nele, não pareciam mais
tão bonitos. Nada parecia bonito. Peguei o Ipod no meu bolso, estava molhado,
mas era à prova d’água, há, pelo menos
isso. Música aleatória. Quem sabe toca Safety Dance. Até I will survive eu
aceitava... Sério isso? “The sky is crying”? É óbvio que o céu está chorando,
Vaughan, eu não sou cego. “Can you see his tears rolling down the street?”...
tem mais lágrimas do céu em mim do que na rua... palhaço, não sei pra que te
escutar, no Texas todo mundo tem cheiro de cachorro. Se você não tocasse tão
bem eu iria parar de te escutar.
Fui passar na catraca. Não tinha mais carga
no meu bilhete único. Eu tinha ainda mais três reais. Vou comprar um bilhete, não
quero recarregar o bilhete, tem fila. Eu não gosto de filas, nem de pássaros,
nem cachorro, nem árvore grande, nem insetos... Comprei o bilhete e passei na
catraca. Não me senti um astro do blues enquanto descia as escadas rolantes.
Tirei a mochila e andei até um dos bancos que ficam nas plataformas. Abri a
mochila, meus cadernos estavam molhados nas bordas. Abri numa página qualquer.
Era na matéria de história. É tudo mentira mesmo, quem liga se eu escrever um
poema aqui? Rabisquei alguns versos até o trem chegar. Quando saí do banco
ficaram as poças d’água onde eu estava com os pés, e onde tinha sentado. Entrei
no trem. Tinha uma moça lendo “Cartas na rua”, eu me lembro de ter lido esse
livro, vai se foder você também, Bukowski. Terminei o poema. O título era “Um
poema pra você socar no rabo”, mas tinha uma lágrima nele. Tinha vinte e dois
versos, em quatro estrofes. Arranquei e folha do caderno, e não me incomodei de
tirar também metade de um texto sobre sistema colonial. Peguei minha carteira
do Batman, ela escorregou, caiu perto da mulher que estava lendo Bukowski. Ela
pegou a carteira, olhou pra mim, sorriu e falou com ar de quem está feliz:
_Ó sua carteira.
_Me dê, e vá para os diabos. – Ela riu,
deve gostar de Bukowski.
Peguei a minha carteira, abri, coloquei o
poema, e então me distraí com aquelas telas que ficam no metrô. Alguma música
muito alta abafava todos os meus pensamentos.
“A melhor escolha que fiz em toda minha
vida foi ficar com você, te amo, Patrícia” – Ronaldo Schüller.
“Amor, a cada dia que passa eu entendo que
fiz a escolha certa, feliz dia dos namorados!” – Patrícia Schüller.
Dia dos namorados? Como assim? Ahh, que
ótimo.
_Moço, caiu um papel da sua carteira no
chão, desculpa, não tive como não ler, mas são muitas regras, não?
Regras? Eu suspirei. Peguei o papel,
desdobrei, amassei, e engoli ele.
_ Regra número oito: “Nunca, jamais, em
hipótese alguma quebre as regras, nenhuma delas.”- falei olhando pra tela. Mas
a moça do Bukowski respondeu.
_CREEEEDO, porque fez isso?
Eu levantei, peguei o livro da mão dela, e
esperei o trem parar em alguma estação qualquer. Quando parou, abriu a porta e
eu joguei a porra do livro no vão entre “o trem e a plataforma”.
_Entende agora?