I: Os aplausos só vão durar enquanto não
forem teus.
Marcos não era o garoto mais popular da classe, aliás,
sempre foi motivo de chacota. Estava na quarta série, e entendia muito bem o
quanto crianças podiam ser cruéis umas com as outras. Não que ele visse algum
motivo para elas serem cruéis com ele, mas elas o eram, e muito. O garoto não
dava um sequer motivo – pelo menos à seu ver – para as outras crianças o
tratarem sempre de modo tão malicioso, mas elas sempre foram. Desde que
conseguia se lembrar, nunca tinha sido bem aceito pelos seus colegas. Não era o
fedorento da classe, não comia cola, não ficava com os dedos na bunda, não
puxava saco da professora, não era o pior na educação física e nem falava como
uma garotinha, e mesmo assim as crianças o viam de modo diferente.
Logo que entrou
na primeira série, foi rejeitado pelas crianças que se denominavam “líderes” da
classe (aquele tipo de grupinho, que tem os meninos que jogam bola melhor, e as
meninas mais bonitinhas). Não entendia ele porque, mas entendia que aquilo não
lhe ajudava, já que sempre que podiam, os outros garotos faziam questão de
atormentá-lo.
No começo eram
apenas provocações mais tímidas por parte das outras crianças. Coisas que não
eram realmente um incômodo. Esbarrões, empurrões, ou então derrubar o estojo
dele, como se fosse acidente. Até esse ponto ele agüentava fácil. Pensou que
fosse coisa normal de todas as crianças, e pelo que ele observava, era. Pois os
garotos faziam isso entre eles. Mesmo assim ele não via aquilo como algo certo.
Alguém poderia se machucar ou ficar sem o lápis, e não era engraçado ver alguém
com o queixo sangrando ou sem lápis, então Marcos nunca nem tentou repetir
aqueles atos. Mas com o tempo, tudo foi piorando, ele ia ganhando apelidos, e
as provocações começaram a ficar mais sérias. Apelidaram-no, na segunda série,
de “bolinho de banana”, por causa de uma festa que houve na sala, onde todos
levaram coisas legais – brigadeiros, tortas, coxinhas e empadinhas – e ele
tinha levado um bolo de banana feito pela sua avó. O bolo estava bom, e não
sobrou nenhum pedaço, e mesmo assim ele ganhou o apelido, já que não tinha
levado nada “descolado” pra festa.
Na terceira série
começou a ser comum as surras que ele tomava. Não eram muitos garotos, dois ou
três o surravam enquanto toda a sala – e algumas vezes a professora – o
assistiam apanhar. O menino nunca provocou ninguém, mas mesmo assim começaram a
dar-lhe socos e pontapés. Muitas vezes, ele era pego desprevenido, fazendo
lição, ou caminhando pela escola, então os colegas de classe davam-lhe tapas,
chutes, o derrubavam e uma vez arrancaram-lhe sangue do nariz, depois de uma
rasteira – ele estava jogando bola e um dos colegas deu-lhe uma rasteira
maliciosa, fazendo-o cair de cara no chão, nada aconteceu ao garoto que o
derrubou, já que tinha sido apenas uma “falta”, um acidente de jogo, na visão
do professor. Claro, ele não jogava bem, mas não chegava a ser o pior, e ainda
assim era escolhido depois do garoto de óculos, e uma vez até mesmo depois do
menino que não tinha um braço, mas mesmo assim sempre ajudava o time, e mesmo
assim... E ele até tentava se defender, e era bem forte para a idade, mas ainda
tinha medo de machucar os outros colegas, então sua defesa se baseava em tentar
esquivar-se dos golpes desferidos pelos garotos. E era uma cena legal de se
ver, já que mesmo enquanto apanhava de três garotos ele mantinha a calma e
conseguia evitar grande parte dos golpes, e só dava algum soco, chute ou
rasteira quando era extremamente necessário, e mesmo assim, tentava machucar o
mínimo possível os colegas, que não estavam realmente se importando com o
cuidado que Marcos tomava a cada soco que desferia. Então estava feito, tinha
ganhado também a fama de “bunda mole”.
Mas sempre tinha
sido muito inteligente. Tirava sempre boas notas na escola, era muito esforçado
e quieto. Isso não parecia grande coisa, já que nunca lhe pediam nem cola na
hora das provas. Mesmo ele tirando sempre a nota mais alta da sala – como uma
constante – nunca era pra ele que pediam cola, era pro garoto de óculos (que
não era grande coisa, aliás, aquele garoto não sabia nem fazer conta de
multiplicar, enquanto Marcos já conseguia com facilidade fazer todas as
expressões numéricas que eram passadas na lousa). No começo, a avó de Marcos
tinha lhe dito que todos sempre pedem cola pro garoto mais inteligente da sala.
E que se ele fosse esse garoto, logo iriam falar com ele por causa das
colinhas. Claro que foi-lhe dito também que era errado ter amigos apenas por
causa de colas, pois esses que pediam cola não eram realmente amigos, mas
apenas pessoas com interesse, que logo que fosse findada a prova iriam voltar a
ignorá-lo. E mesmo assim, quando o garoto viu que ele era esse garoto, o mais
inteligente, não conseguia pensar em outra coisa senão que logo as pessoas
iriam começar a falar com ele, mesmo que fosse apenas pra pedir cola. E ele
pensou que assim que o fizessem, ele daria as respostas da prova, e conseguiria
falar um pouco com os colegas, que então iriam ver que o garoto não era
esquisito, e que era bem legal. E então ele iria ter alguma chance de ter amigos...
Óbvio que isso não aconteceu, pois mesmo com notas altíssimas ele continuava
sendo ignorado por todos, até por Adriana, uma menina loira e baixinha, que era
muito simpática com todos, mas desprezava-o sem ter sequer algum motivo.
Marcos tinha visto
Adriana logo que entrou pela primeira vez na sala. E ouvia tudo que ela dizia,
sabia de cor seu nome completo, seu número da chamada e até mesmo as matérias
que ela mais gostava. E ela nunca teve a decência de pelo menos dizer-lhe um
“oi”. Eles eram quase vizinhos, já que ela morava num prédio amarelo de
apartamentos – que ficava a uns cem metros de sua casa – e, portanto a via
todos os dias enquanto ia para a escola, ou quando saia para andar de bicicleta
pelas redondezas (pelas redondezas significava andar até o fim da rua e voltar
quantas vezes ele agüentasse, só pra conseguir olhar algumas vezes para
Adriana). E mesmo assim, ele nunca nem olhou para ele.
Mesmo sem amigos
o tempo passou, e então o “bolinho de banana” chegou até a quarta série. E
mesmo nem aquele gordinho sendo amigo dele, ele continuava com a calma que
sempre tivera. Aprendeu que quanto mais cara de mau ele fizesse, menos seria
provocado. Então, acabou virando o “bolinho-de-banana-esquisitão”. Ele começou
a ser, em vez de constantemente provocado, evitado pelos colegas. Marcos não
oferecia perigo nenhum, e se alguém tentasse falar com ele, ele logo abriria um
sorriso. Mas sempre que via os garotos que faziam de tudo para tirá-lo do sério
por perto, esboçava uma cara de “sai pra lá”, que no começo foi ignorada, e
usada para zoá-lo ainda mais. “Você tem dor de barriga, cara?” – gritava um
garoto, “só pode ter comido bolo de banana demais” – completava algum outro,
para completar a piada. E assim foi por algumas semanas. Até que uma vez ele,
em vez de perder a calma, deu um soco forte o suficiente num garoto maior, e o
fez cair sentado. Tinha dado o soco no peito, pra não machucar demais, porém
ainda assim tinha feito forte o suficiente, talvez desse modo os garotos
parassem. E funcionou, em
parte. O garoto que tinha tomado o soco contou tudo para a
professora – Profª. Marina, uma professora com cara de japonesa, com uns
cinqüenta anos, e que falava “poblema” – e esta chamou a avó de Marcos, e os
pais do outro garoto. E então, por mais ironia do destino que pareça, Marcos
tomou uma advertência por ter dado um só soco, enquanto o outro garoto, Yuri,
nunca tinha tomado sequer uma bronca por perturbar o garoto durante três anos.
Não que tenha afetado muita coisa, mas foi claramente injusto, e Marcos sabia
disso, mas de nada adiantava contar, nessa hora, todas as coisas que Yuri já
tinha feito pra ele. Iriam dizer que ele estava querendo levar Yuri – a vítima
– junto pro buraco com ele. Como se fosse tudo invenção dele, pra não se ferrar
sozinho. E mesmo que Marcos não fosse assim, os adultos “responsáveis” não tinham
como saber, já que a maioria das outras crianças fazia exatamente isso. Então
calou-se, e aceitou a advertência e a surra que tomou em casa.
As provocações
físicas pararam, pois a diretora da escola – Dona Sônia – tinha dito que
ficaria de olho em Marcos, e qualquer coisa que acontecesse ao garoto seria
rapidamente apurada, e todos os envolvidos seriam punidos caso ela “sequer
pensasse em sonhar” que Marcos não fosse o único envolvido. Mas as verbais
continuavam. Aquelas indiretas e que continuam cruéis. Sempre escrevendo “bolo
de banana” na lousa, ou então fazendo referência aos apelidos do garoto em
conversas que tinham o volume propositalmente aumentado, para que Marcos
ouvisse. E voltaram os esbarrões e todas as outras provocações que tinham sido
abandonadas. Tanto é que virou hábito dele juntar todos os cadernos, lápis e
canetas do chão, sempre que chegava à sala de aula. E ele nada poderia fazer,
imagine tomar uma suspensão? Ele não era garoto de tomar suspensão, era demais
pra ele. Tudo que ele fazia era ignorar, o máximo que podia. Porém, algumas
vezes, ele não conseguia agüentar, então pedia licença da sala, e tentava ao
máximo, segurar o choro no corredor. Ele arregalava os olhos o máximo que
podia, e não deixava cair uma lágrima sequer, era a maior demonstração de
valentia que ele podia dar, não deixar uma lágrima cair no meio dos outros. E
ele muitas vezes teve que sair às pressas para o corredor, para que as poucas
lágrimas que escapavam conseguissem cair longe da vista de todos aqueles rostos
que sempre se mostravam ansiosos para qualquer demonstração de fraqueza por
parte de Marcos.
Ele parou de andar
de bicicleta por ai, não queria mais passar na frente do prédio de Adriana, não
estava mais interessado em passar intervalos no pátio da escola, não jogava
mais futebol, não falava mais com professores e muito pouco com a própria
família. Passava a maior parte do tempo brincando sozinho num terreno baldio ao
lado de sua casa, ele era um exército de um homem só. Tinha uma espada de madeira
e pregos que ele mesmo tinha feito, e um escudo que era uma tampa de panela
roubada da cozinha de sua avó, e então ele brincava por horas em silêncio,
deixando que apenas sua imaginação falasse. E na escola, ele descobriu que
poderia passar os intervalos na biblioteca, onde ele ficava em silêncio, já que
lá era “desabitado” – excetuando-se Madalena, uma senhora que parecia ter uns
oitenta anos, e estava sempre lendo algum livro gigante, com capa de couro e
empoeirado. E naquele silêncio, ele se via cercado de livros, que o divertiam
muito. Tantos os contos de fada que ele leu. Tantas as histórias incríveis que
ele tinha visto acontecerem bem na frente de seus olhos, e esse era o alento
que ele tinha por cerca de meia hora, até ser forçado a voltar para o mesmo
inferno que ele tinha que agüentar na sala de aula. Mas logo que conheceu a
biblioteca, ele fez uma carteirinha, e pegava um livro novo quase todo dia. A
carteirinha era uma cartela, com quinze páginas, e a cada livro pego, lido e
devolvido no prazo, ele ganhava uma carimbada em uma das páginas, e quando
completava-se a cartelinha, ele podia pegar um livro de uma estante reservada
para ele, estante essa que tinha apenas livros novos, e que não estavam
disponíveis em nenhuma outra parte da biblioteca. Logo o menino tinha vários
livros daquela estante reservada, e lia como se aquilo pudesse ajudar-lhe de
algum modo a escapar do pesadelo que vivia, e que não conseguia fugir de modo
algum. E incontáveis eram às vezes que Profª. Marina lhe chamava a atenção,
pois ele parava de fazer as cópias e contas para ficar lendo no meio da aula,
muitas vezes usando um casaco com capuz, pra não ter que ver os meninos fazendo
troça dele.
Marcos tinha
recém feito dez anos, e como presente, ele ganhou vários rabiscos em seu
caderno, nas folhas que seriam usadas pra copiar a matéria. E esses rabiscos
estavam dizendo coisas do tipo “quem diria que iriam esquecer um pedaço de bolo
por tanto tempo na geladeira”, ou “deve ter um gosto muito ruim esse bolo, pois
está abandonado faz dez anos”, fora as tantas outras folhas que tinham sido
apenas sujas de cola ou de caneta. Ele conseguiu um outro caderno, e ganhou
toda a matéria perdida em folhas copiadas à mimeografo pela professora.
Até que certo dia,
Profª. Marina propôs para a classe uma avaliação diferente. Era o terceiro
bimestre, e a classe já tinha feito duas avaliações de português onde se faziam
apenas perguntas sobre a matéria, e sobre textos que estavam na própria prova,
e a professora queria tentar algo novo. Pensou que os alunos já estavam
suficientemente maduros para escreverem uma redação como prova. Mas não apenas
uma redação sobre algum tema – como era a lição de casa – em vez disso, eles
escreveriam uma historia inventada por eles mesmos. Não teria um limite de
linhas, nem seria proposto nenhum tema. Os alunos logo se animaram, poderiam
escrever uma historia de apenas cinco linhas, e assim poderiam ficar com os
dedos mais tempo enfiados nas calças, ou então poderiam comer mais cola.
Marcos, claro, logo se animou com essa possibilidade, pois nunca tinha pensado
antes em escrever ele mesmo, uma historia igual às que ele lia nos livros.
Nunca tinha passado por sua cabeça a possibilidade de, criar ele mesmo uma
historinha, e depois lê-la, e então encantar-se com alguma aventura que ele
mesmo tinha criado. Por esse motivo ficou demasiadamente ansioso com o dia da
“prova”.
Estava marcada
essa prova exatamente para uma semana após aquele dia. E durante essa semana,
Marcos nada fez além de pensar em como seria sua história. Ficava pensando nela
até antes de cair no sono, e chegou a sonhar com algumas possibilidades. Pensou
tanto em como criar a historia, e como seria ela, que escreveu mais de dez
durante essa semana, todas rejeitadas por ele. Todas “faltavam alguma coisa”.
Mas ele não desistia, muito pelo contrário, a cada historia que fracassava logo
após ser lida por ele mesmo, dava mais ânimo ainda, pois ele mesmo sabia que
não era do dia pra noite que ele conseguiria ficar bom em imaginar todas as
coisas que eram colocadas em
livros. E no dia em que chegou a “prova”, ele estava tão
ansioso que mal conseguia sentar-se na cadeira. Suas mãos tremiam, e ele mal
conseguiu apontar o lápis que tinha separado pra usar apenas para aquele dia.
A professora
passou distribuindo folhas de almaço para toda a classe. Logo após colocou o
cabeçalho na lousa. Marcos já estava adiantado, estava com o cabeçalho pronto
antes mesmo de a professora começar a passá-lo na lousa. E então viu toda a
sala, rindo debilmente, viu bolinhas de papel voando, e viu os olhares maldosos
que estavam soltos no ar. Mas ele concentrou-se, suas mãos pararam de tremer, e
então ele pôs-se a escrever quase que freneticamente. E as linhas brotavam com
uma facilidade incrível, o garoto estava quase embriagado com a sensação que
tinha. Escrever tinha se tornado tão – ou mais – prazeroso que a leitura. Pois
ali ele tinha total liberdade, ele decidia quem morria, qual era a cor do
dragão, e se a princesa era bonita. Era uma infinidade tão grande! E ele logo
se deu conta dessa infinidade, logo percebeu que aquela era alguma coisa que
valia a pena. Alguma coisa que, se o fizesse chorar, valeria tanto a pena que
ele o faria mesmo assim.
Ele não se deu
conta de que o resto da sala tinha terminado a redação, enquanto ele ainda
estava no meio. Todos tinham entregado as folhas de almaço para a professora
com vinte minutos de antecedência (prazo mínimo estabelecido por ela para a
entrega), enquanto Marcos estava totalmente envolvido pela escrita. Sentava-se no
meio da sala, e por esse motivo, virou alvo de várias piadinhas uma vez mais.
Foi chamado de “retardado”, “lerdão”, “tartaruga” entre outros, mas ele nem
ouviu-os. Escrevia o melhor que podia, e dava a própria vida em cada palavra
que escrevia, e não estava importando se sua mão doía – ainda que, por um
momento tivesse desejado que fosse ambidestro – ele continuava escrevendo, e
quando tocou o sinal, ele teve tempo apenas de colocar um ultimo ponto final em
sua historia. Ele tinha escrito nas quatro páginas da folha que lhe tinha sido
entregue, e sua mão latejava demais, pensou que se tomasse uma martelada na mão
nem iria mais sentir, de tanto que a mão doía. Chegou a imaginar que esta
estava inchando. Mas estava satisfeito com a historia, ainda que não tivesse
lido. Mesmo que nem lembrasse da metade do que tinha escrito, ele estava muito
sereno, tanto que passou o dia inteiro sendo chamado de vários nomes, e não
conseguiu ouvir nenhum, os colegas soavam como se estivessem aos pés de uma
montanha, enquanto Marco estivesse no topo... Ele estava muito alto para
consegui ouvi-los.
Foi pra casa o
garoto, e eram apenas três e meia da tarde quando ele dormiu, exausto. Acordou
apenas para jantar, e voltou para sua cama, e dormiu um sono sem sonhos, pesado
como uma pedra. Sua avó costumava dizer que quando alguém dorme muito exausto,
nem mesmo um trovão é capaz de acordar essa pessoa, e talvez ela estivesse
certa, pois quando Marcos acordou era uma manhã chuvosa, mas ele não tinha
ouvido nenhum trovão enquanto dormia, logo ele que acordava com o barulho de um
alfinete caindo no chão.
Arrumou-se
normalmente, tomou café, e foi andando para a escola. Não estava mais tão
animado, estava pronto para devolver o décimo quinto livro de sua quinta
cartela, pegar outro livro novo e esperar que ele não fosse riscado e sujo de
cola-refeição pelos outros colegas. Entrou na sala, foi para seu lugar, e antes
de sentar, olhou para a cadeira, que estava, como de costume, cheia de sujeira,
e mais cola, e a cola formava o desenho de um pênis, “clássico, porém velho”,
ele pensou. Trocou a cadeira e sentou-se. Leu na sua carteira, que estava toda
rabiscada várias palavras que foram no dia anterior usadas para apelidá-lo. Mas
não as reconheceu, ele não tinha ouvido coisa alguma na manhã anterior, mas
logo reconheceu que aqueles deveriam ser alguns dos novos apelidos que ele
teria, não que ele se importasse. Tinha um livro novinho para ler. Era o livro
que ele mais queria ler, desde o último que tinha lido. “Atlantis, a cidade submersa”
era o nome, e tinha uma capa azul com o desenho de homens-peixe nadando em
direção a uma cidade que era protegida por uma cúpula que parecia ser de vidro.
Ele pensou que aquela cidade era como ele, um aquário ao contrário, isolado no
meio de um monte de água. Os outros alunos ainda estavam chegando, e o
ignoravam, como normal. Logo entrou a professora, anunciando que iria devolver
todas as historinhas, que já estavam corrigidas. E que uma tinha sido
escolhida, e esta seria lida por ela, e depois todos os alunos iriam copiar a
redação escolhida no caderno, e fazer exercícios sobre ela. E isso serviria
como uma nota extra para os que não tinham se saído bem na redação. “E não são
poucos que precisam do ponto extra”, disse ela. E logo começaram a gritar “O
retardado vai precisar”, “Aposto que esse ai vai ter que copiar a redação sete
vezes pra conseguir nota zero”. Marcos ficou vermelho.
A professora
entregou todas as redações, inclusive a de Marcos, que tinha um grande “10,0” acompanhado de uma carinha
feliz e um parabéns abaixo da nota. Enquanto ele olhava sua nota, escutou
vários outros resmungando sobre a nota, e gritando que tinha havido uma
injustiça tremenda. E a professora disse “todas as redações foram lidas e
corrigidas, vocês não são mais terceira série pra ganharem nota de graça!”. Ele
pensou que dispensaria a carinha feliz da prova por uma foto da sala naquele
momento. Então, Profª. Marina colocou ordem na classe, fez todos se calarem, e
começou a ler a redação escolhida. Primeiro leu o título, que era “O pacote de
bolachas e cachorro cinza que gostava de chocolate”, e depois de olhar pra
classe e sorrir, ela começou, com empolgação, a ler a redação:
Era a historia de
Marcos, ele sabia, e conteve, com maestria, um sorriso orgulhoso que ele sentiu
vontade de dar. A historia falava sobre um garoto que tinha comprado um pacote
de bolachas recheadas, e que tinha sido atacado por um buldogue cinza enquanto
comia as tais bolachas, então inicia-se uma briga entre o menino, o cachorro, e
um gato intrometido, pelo pacote das bolachas. E a historia falava das mordidas
de formiga que o garoto tomava, das picadas de abelha que sofria o gato, do
arranhão que o cachorro sofreu no olho. E no fim, os três – cachorro, garoto e
gato – percebem que quase todas as bolachas voaram do pacote enquanto lutavam,
e sobrava apenas uma, e então, decidem dividir a ultima bolacha em três partes
iguais, e quando tiram a bolacha fora do pacote, e vão dividi-la, passa uma
pomba e rouba o ultimo biscoito das mãos do garoto. E os três ficam a ver
navios enquanto a pomba, se exibindo toda em cima de uma árvore, se delicia
comendo aquela “preciosa delícia que tinha sido roubada” do garoto com tanto
facilidade.
Marcos olhou em
volta, e viu que a sala toda ria da historia. Todos estavam maravilhados e
entretidos com as peripécias do garoto, com a força do cachorro, com a astúcia
do gato, e estavam também revoltados com a atitude de gatuna daquela pomba,
alguns até gritavam “que maldita essa pomba, eu subiria naquela árvore e pegava
minha bolacha de volta!”. E então a professora, que estava vermelha de rir da
história, pediu “Os aplausos que essa historia merece!”. Todos aplaudiam
vigorosamente, alguns assobiavam. A sala fazia muito ruído. Provavelmente todos
da escola deviam estar ouvindo aquela quarta série barulhenta, que estava
embriagada com uma comédia tão bem feita. Então a professora falou:
_Aplaudam o colega de
vocês que escreveu essa historia! – e todos se entreolharam, mas como nenhum
deles assumiu a autoria daquela historia, a professora foi forçada a falar
novamente – Foi o colega de vocês, Marcos, que escreveu essa historia,
aplaudam-no, ele merece.
E então, a sala que
ainda estava agitada se calou. Não ouvia-se nenhum aplauso, nenhum assobio,
nenhuma voz. Parecia que tinham matado todos naquela sala. E a professora
estava agora com um sorriso solitário na frente da sala. Enquanto todos, sem
expressão, apenas encaravam o garoto sentado no meio da sala. Nada foi falado
por cerca de dois minutos, e Marcos estava quase tendo que ir para o corredor
uma vez mais. Até que Yuri foi o primeiro a falar:
_Eu nem gostei desse lixo de historia mesmo, parece uma
daquelas que você lê num livro velho e cheio de poeira que nem Madalena.
Então a sala voltou
a falar, porém todos concordando com Yuri. Marcos olhou para a para a
professora, que não sabia qual reação esboçar. Ela mandou a sala se calar, e
logo todos estavam copiando a redação de quatro páginas de Marcos, e
respondendo os exercícios. Todos, menos o autor, que teve o privilégio de ficar
lendo durante a aula. Todos reclamaram durante a aula sobre o tamanho da
redação, mas Marcos os ignorou, aquela era a vingança que ele podia ter após
três anos e meio quieto e agüentando aqueles idiotas.
Mas na saída, cerca
de sete meninos cercaram Marcos numa parte mais quieta de uma rua que ele
pegava para voltar para casa, e espancaram-no até cair, logo após isso, abriram
suam mochila, pegaram o livro de capa azul, rasgaram todas as páginas,
picaram-nas e sujaram de cola tudo aquilo que tinha sobrado dos cadernos e da
mochila – e até do próprio garoto. E depois correram. O garoto se levantou, e
estava voltando para casa, manco e todo sujo de cola e papéis, quando conseguiu
ver de relance, andando logo atrás dele, Adriana, que tinha um sorriso malvado
estampado na boca. Enfim ela tinha reparado nele.
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