Não me lembro muito bem que horas eram
quando cheguei ao aeroporto de Miami, Estava com o relógio biológico fora de
sintonia com tudo que estava lá fora, sabia disso porque eu tinha visto pela
janela do avião que estava escuro, mas eu me sentia como se mal fossem seis da
manhã. Não que isso fosse de grande importância, mas sabia que de certa forma
era bom sinal eu estar vendo aquele céu negro. Aquele céu me dizia que eu já não
estava tão longe do destino final e de algum tempo relaxando, apenas cerca de
seis horas – no máximo seis e meia. Lembro de sentir meu coração palpitando
logo que o avião pousou, tamanho o nervosismo. Não era pra menos, eu não estava
muito afim de ser mais um brasileiro deportado. “Você não foi aceito em nosso
país, portanto terá de pegar o próximo avião com destino à São Paulo, e nunca
mais poderá voltar aos Estados Unidos da América!”. Foi tudo que imaginei
quando saltei do avião. Bom... Se fosse assim, eu pelo menos tinha estado por
quinze minutos em solo americano... melhor que você.
E mesmo não lembrando qual número o
relógio local marcava com certeza eu lembro da moça gordinha que me aguardava.
Uma das coisas boas em ser menor e estar viajando sozinho de avião é o
tratamento que te dão. As aeromoças te paparicam sem a menor cerimônia, como se
você realmente fosse importante - eu poderia me acostumar. Seja um cobertor a
mais, ou um cookie, eu na vejo problema... Mas, como sempre, temos os pontos
fracos. Ou no caso “o ponto fraco”, pra ser mais exato. É que a paparicarão
passa dos limites, você tem de estar sempre acompanhado, é imperativo...
sempre! No avião é mais sutil, mas sempre tem alguém, pelo menos, de olho em ti. Você vai ao banheiro,
ou coçar as costas, e se olhar de soslaio, vai ver alguém esquisito te
observando (só faltam binóculos...). No avião é mais tranqüilo. Você ainda pode
ir no banheiro sozinho, ou ir na cozinha pedir mais uma lata de refrigerante.
Nada demais. Mas espere chegar ao aeroporto, parece que quando se chega ao
aeroporto, é normal pensarem que deve ter drogas na sua mochila, ou que tem
algum plano para matar o presidente, escondido no bolso interno do seu casaco.
É sério, dá vontade de fugir, de tanto que te tratam como alguém que quer
fugir.
No meu caso essa moça gordinha era Nancy,
vestia um uniforme branco e azul marinho, com o emblema do aeroporto bordado no
peito, calçava sapatilhas pretas, e tinha as bochechas rosadas, e aparentava
ter uma imensa paciência e boa vontade naqueles um metro e sessenta. No caso,
ela seria minha acompanhante, mas não desse tipo, ela era encarregada de me
guiar e conduzir enquanto eu estivesse no aeroporto. Sim, eu tinha uma babá. E
ela não desgrudava de mim. Eu parava pra amarrar os cadarços do meu sapato, e
lá estava ela quase me engolindo com os olhos. E quando eu inventei de dar uma
rápida parada pra comprar uma lata de coca-cola, quase vai pro espaço minha
paciência, ela me tratava como se eu fosse um garoto de cinco anos e com
paralisia cerebral – nada contra quem tem cinco anos e tem paralisia cerebral,
ok? – era insuportável, apesar dela não ser agressiva, dava a impressão de que
a qualquer momento iria pular em mim (meu gato faz a mesma coisa quando vê um
passarinho). E lembro-me de ouvi-la falar ficar à ponto de rir. Ela forçava o
inglês mais simples que conseguia, com as palavras mais bobinhas que conseguia
encontrar, ainda por cima usava um tom de jardim de infância, como se eu
realmente fosse retardado – não que eu tenha um inglês impecável, mas eu
poderia entender melhor do que aquilo. Mas como era minha primeira viagem, eu
fiquei temeroso, talvez não fosse a melhor coisa dizer “pare de me tratar como
retardado, eu sei colocar uma nota de dólar numa máquina de refrigerante!”,
isso com absoluta certeza não passaria a imagem de um jovem educado e cordial.
E eu precisava passar essa imagem pra não ser mandado de volta à Tihuana-todos
que vêm de baixo dos EUA são obrigatoriamente deportados pra Tihuana. Então era
melhor continuar a ser tratado como retardado pra depois conseguir dar umas
voltas em Hollywood, não que isso tirasse a sensação de quase ser um retardado.
De qualquer forma, ela não desgrudou de
mim, por qualquer motivo que fosse, pelo menos andamos um pouco no aeroporto,
era imenso, montes de corredores e saguões, terminais, halls, lojas e muitas
cadeiras pros que esperavam o vôo. Tinha até um trem... E nós o pegamos. Nancy
me disse que era só pra ir pro outro lado do aeroporto, que andar demoraria
demais, e me cansaria. Maldita seja a preguiça humana, colocar um trem pra te
levar pro outro lado do aeroporto... Em que ponto chegamos?
O trem não era grande, era quase como uma
miniatura dos metrôs de São Paulo. De certa forma, tinha algo familiar neles,
talvez o cheiro fosse o mesmo. Andamos três estações. Descemos na “estação
três” e andamos mais um pouco pela imensidão do aeroporto. Tinha uma iluminação
forte, se não fossem pelas grandes janelas que davam vista pra pista de pouso,
eu não saberia se era dia ou noite. E era, diferente do aeroporto de Guarulhos,
estava quase vazio, e viam-se uns poucos passageiros perdidos por lá, como se
fosse baixa temporada (ainda que faltassem cinco dias pro Natal). Isso
aumentava ainda mais a sensação de deserto daquele lugar, eu teria me sentido
quase sozinho se não fosse por Nancy babando em mim.
Assim que descemos do trem, Nancy me levou para um lugar cheio de
guichês, disse-me que eu tinha que fazer uma entrevista antes de “entrar em
solo americano”. Sim, eu poderia ser deportado se não respondesse exatamente
aquilo que eles queriam que eu respondesse. Eu fui direto pra um guichê do tipo
“preferencial”. E lá tinha um cara, com farda de policial (ou guardinha de
aeroporto, quem sabe). E ele falou de modo rude:
_O que você veio fazer nos Estados Unidos
da América? - falou o guardinha.
_Passar as minhas férias.
_Quanto tempo você vai ficar?
_Até meio de fevereiro.
_Você estuda? Se sim, quando voltam suas
aulas?
_Sim, eu estudo, e elas voltam no meio de
fevereiro – voltavam antes, mas vai que... Né?
_Hmmm, Onde você vai ficar? – eu não
entendi nada do que ele tinha dito nessa frase, então olhei pra Nancy, que
compreendeu que eu não tinha entendido, e então repetiu a frase com um pouco
mais de calma.
_Vou ficar em Los Angeles, com um
amigo.
_ Ok, pode passar – e então ele carimbou
alguns documentos e os entregou para Nancy.
Eu estava faminto, então perguntei se não
tinha algum lugar decente por ali. Sabe como é, comida de avião não enche de
verdade, e eu precisava de alguma coisa pra me segurar de pé. Então, como se
finalmente eu tivesse falado alguma coisa que fosse útil, ela sorriu, e apontou
com a mão uma lanchonete logo à nossa frente. Era uma lanchonete bonita. Tinha
aspecto daquelas que aparecem em filmes dos anos sessenta, ou setenta, aonde os
jovens bacanas iam. Aqueles lugares onde tinham vários carrões estacionados na
parte de fora, enquanto os caras com grandes topetes e garotas com vestidos de
bolinha sentavam nas mesas, comendo seus hambúrgueres e tomando seus milkshakes
enquanto conversavam. Era realmente pra ser uma lanchonete assim, não tinham
carrões estacionados, era dentro do aeroporto, e não tinham os jovens bacanas
com jaquetas de couro dentro, aliás, tinha só um cara perdido lá, numa mesa com
uma só cadeira, e ele não demonstrava muito interesse nas coisas ao redor. Mas
era bem decorada a lanchonete. E enquanto eu pedia, reparei nas paredes
pintadas de branco, com quadros que eram fotos de carros antigos, nas mesas
amarelas e nas cadeiras vermelhas. Eu pedi um clássico, um hambúrguer, um copo
de coca-cola e uma porção de batatas fritas. Deram-me o copo, e apontaram a
máquina onde eu deveria pegar meu refrigerante. O pedido não demorou, aliás,
foi rápido demais, eu mal tive tempo de escolher uma mesa, e eles já estavam me
chamando pra buscar a comida. Nancy deve ter achado que eu não era capaz de ir
lá, e foi ela mesma, pegar a bandeja. Ela me entregou, e disse-me que faltava
ainda cerca de uma hora e meia pro meu vôo partir, e que por esse motivo não era
necessário que eu me apressasse. E não estava nos meus planos me apressar. Comi
com uma calma de rei, e fiquei olhando pro corredor do aeroporto logo à minha
frente. Engraçado. Vazio demais. No Brasil, qualquer lugar que você fosse iria
parecer um formigueiro, e ali estava calmo demais... Nancy não comeu nada, e
nem deveria comer mesmo, tinha aparência de quem comia ali todo dia. Mas ficou
me olhando comer com muita atenção. Ainda bem que eu não me sujei com catchup,
eu tenho certeza de que tinha um guardanapo na mão dela pra me limpar caso isso
acontecesse. Eu terminei de comer meu hambúrguer e as batatas, e então, antes
de sair, enchi meu copo mais uma vez, e então perguntei pra Nancy se teríamos
de ir a algum lugar mais, ou se ficaríamos ali mesmo até a hora do meu vôo.
Ela falou com aquele tom dela, que iríamos
voltar a andar. Eu simplesmente comecei a segui-la. Voltamos aos corredores, e
ela tentava imprimir um ritmo um pouco maior, claramente com traços de
ansiedade, tão esquisitinha. “Estamos indo à sala de menores”, ela disse. E é
claro que a imaginação foi a mil. Eu logo imaginei uma sala quadrada, com as
paredes pintadas de cinza, e com a tinta descascando, um lugar totalmente
deprimente, com cara de repartição pública, e lá teriam várias crianças e
adolescentes, sentados em cadeiras de madeira, olhando fixamente pro chão, e
completamente em silêncio, enquanto numa mesa sólida de mogno uma mulher velha
estaria digitando num computador velho, e essa mesa teria também vários papéis,
como se fossem processos. Eu fiquei completamente em pânico, eu preferia ficar
na lanchonete vendo o cara esquisito comer aquele hambúrguer pela eternidade.
Um lugar desses me dava arrepios. Eu não estava preparado pra tudo aquilo, sou
claustrofóbico, e não curto detenção, e não é minha praia ficar uma hora
esperando meu vôo num lugar daqueles. Não adiantou eu me afligir, pois pelo
visto já estava bem próximo da tal sala. Eu vi uma placa que apontava pra
direita, e dizia “Sala dos menores”. Que seja, eu não vou exatamente morrer lá
dentro - espero.
Mas, aquele dia se mostrava incomum, e manteu-se
assim, e me surpreendeu mais uma vez. Tive uma surpresa quando entrei na sala,
era quase o contrário daquilo que eu tinha imaginado. Era grande, muito bem
iluminada, com paredes pintadas de verde, branco, e com desenhos de vários
personagens de desenho animado, tinha sofás e poltronas vermelhas, duas
estantes de livros, perto dessas estantes tinha uma grande mesa redonda com
lápis de cor, giz de cera, e papel pra desenhar. Era igual uma sala de jardim
de infância, a não ser pelas televisões de tela plana e os dois vídeo-games que
lá estavam. Mas é claro, eu tinha acertado – em parte – num aspecto daquela
sala. Tinha uma mulher, numa mesa grande atulhada de papeis, com um computador
(novo) digitando freneticamente sem olhar pro teclado. Era uma mexicana, cerca
de cinqüenta anos. Ela não tinha um olhar severo que nem gente velha geralmente
tem, pelo contrário, parecia-se com uma vovó que diz que você está magrinho.
Quando eu entrei na sala ela se levantou, e
falou seu nome. Consuela. Ela vestia o mesmo uniforme de Nancy. Era realmente
muito simpática, e não tentava falar um inglês mais simples do que era normal
pra ela, e o sotaque dela fazia tudo soar de forma engraçada e honesta. Ela
disse alguma coisa do tipo “agora quem te acompanha sou eu, rapaz, pode relaxar
por ai, quando for a hora eu te chamo”. Despedi-me de Nancy, e como o garoto
cordial que eu sou, agradeci a paciência que ela tinha tido comigo. Nancy riu,
e disse que nunca tinha cuidado de alguém que não tivesse dado trabalho, eu
tive que rir disso, vai que me mandam pra terra de Consuela, não queria ir pra
Tihuana, muito quente e muito mexicano pra mim. Ela se virou e saiu,
provavelmente babar no pescoço de algum outro coitado.
Consuela já estava de volta a sua mesa,
digitando no computador. Aquele tec-tec frenético era mais comum entre os
jovens, mas ela digitava com grande maestria, devia fazer aquilo à tempos. Eu
então pude voltar a ser quem eu realmente sou. Me dirigi apático a um sofá
vermelho. Sentei-me e abri minha mochila, de lá eu saquei meu livro e notas de
um dólar. “O crepúsculo dos ídolos” era o livro, quando fiz isso, Consuela me
olhou esquisito. Eu era o único ali com um livro em mãos. Levantei e
fui pegar um refrigerante num daquelas máquinas de um dólar. Coloquei a nota de
um dólar e apertei o botão... Ouvi o som da lata caindo. Me virei e vi uma
máquina de salgadinhos. Coloquei mais um dólar e peguei um Cheetos. Não que eu
estivesse com fome, mas aquela sala de jardim de infância me dava tédio. E só
então eu me dispus a prestar atenção em todos os que estavam naquela sala.
Tinham dois garotinhos loiros, irmãos gêmeos, de uns sete anos, que estavam
jogando vídeo-game. Tinha também uma menina mexicana de uns onze anos, sentada
na mesa redonda, e olhando fixamente para uma foto, ela tinha uma expressão
perigosa, do tipo que enfia um canivete na sua barriga se você tentar falar com
ela... Não valia o esforço. Mas não foram eles que chamaram a atenção. Pois,
logo que estava voltando pro meu lugar, com meu salgadinho e minha lata de
refrigerante, notei uma das coisas mais lindas e intrigantes que eu já tinha
visto na minha vida. Aquele espelho devia ter uns dois metros, e estava
incrivelmente limpo, era quase como se eu estivesse andando em direção à mim
mesmo, e como eu sou bonito... Devo ter ficado um minuto todo olhando o espelho
(ou uma hora, quem liga pra tempo quando se vê alguém tão incrível quando eu
mesmo?).
Eu sentei no sofá, e comecei a comer o
salgadinho. Era salgado demais, e sujou muito minhas mãos. Mas logo acabei o
pacote e tomei meu refrigerante. Eu queria ler, mas minhas mãos não deixariam
que eu lesse sem sujar todo o meu livro. Pedi à Consuela que me mostrasse onde
era o banheiro, eu ia aproveitar a ocasião e tirar a água do joelho. Ela me
pediu pra esperar na porta da sala “por um instante”. E então aconteceu algo
que eu devia ter previsto. Um guarda chegou e falou que iria me acompanhar até
o banheiro. Era tão difícil assim chegar ao banheiro? Ou eles achavam que eu
realmente queria fugir? Tanto faz, eu já estava seguindo o guarda até o
banheiro, ele me esperou na porta, enquanto eu usava. Pelo menos ele não entrou
comigo... Lavei a mão, mijei, e lavei as mãos de novo – sou limpinho. Quando
sai, o guarda esticou o pescoço pra dentro do banheiro (devia estar procurando
alguma bomba ou drogas/ armas que eu devia ter largado lá). E me escoltou até a
sala dos menores de novo.
Quando eu cheguei na sala, tive uma surpresa
que faz meu tédio sumir tão rápido quanto possível. Tinha uma pessoa a mais,
sentada num banco de madeira junto à parede. Uma garota de uns quinze anos.
Linda. Era japonesa, com certeza, parecia uma boneca, ou alguma coisa ainda
mais bonita e perfeita. Tinha a pele muito branca, os cabelos negros e
brilhantes que chegavam até o meio de suas costas, e os olhos... Aqueles olhos
eram incríveis. Eram negros e profundos. E tinha um brilho perigoso no fundo
daqueles olhos tão lindos. Como se tivesse alguma fera aprisionada ali. E com
certeza entendia de moda. Pois apesar de estar viajando ela ainda estava
impecável. Vestia uma camiseta do Motorhead, uma jaqueta de couro, uma calça
jeans escura, justa e rasgada, e botas, que lembravam algo do tipo “botas de
pirata”, pois tinham fivelas grandes e prateadas. Enquanto eu... Minha camiseta
do Ac/Dc já estava toda amassada, meus tênis estavam velhos e desamarrados, eu
tinha derrubado óleo de hambúrguer na minha calça, e também no meu casaco –
sim, um charme, como sempre.
Mas notei também, que apesar de estar
impecável, e ser absurdamente linda, ela não se mostrava exatamente empolgada.
Parecia, na verdade, que ela não se sentia muito bem, espero que não seja
diarréia, ou alguma coisa que não seja sexy... Isso quebra o clima.
E eu, como a doce pessoa que sou, tive de ir
ajudá-la, sem segundas intenções, é claro. Eu bem sei que em alguns momentos as
pessoas precisam de um abraço, um carinho, ou qualquer coisa do tipo... E
porque não eu? Fui o mais rápido que pude para a maquina de refrigerante e
peguei mais uma lata. Voltei e sentei-me ao lado dela. Abri o refrigerante, e
pra puxar assunto, eu ofereci pra ela um gole de coca-cola (e é nessa hora que
se espera que aconteça igual na propaganda da televisão, eu dou a coca pra ela,
ela sorri, e depois de quinze segundos nós estamos nos beijando, sem segundas
intenções, é óbvio). Ela me olhou fixamente, de maneira fria e ao mesmo tempo
intensa, e por um instante eu me senti transparente, senti um enorme calafrio
apenas com o olhar dela, e naquele mesmo instante eu pensei em abandonar toda e
qualquer posição cavalheiresca que eu tivesse dentro de mim, e ir correndo pro
sofá chorar igual uma garotinha sem sua barbie. Mas por algum motivo, qualquer
estúpido motivo que fosse, eu não fui pro sofá. Eu fiquei lá, e abracei
Nietzsche o mais forte que podia, e desejei que ele tivesse deixado o pobre e
fraco Deus vivo, assim talvez ele pudesse me ajudar. De qualquer jeito, naquele
momento era eu, Nietzsche e aquela linda garota que com certeza era uma super
ninja que trabalhava pra máfia. Mas em vez de pular em mim, arrancar meus
braços e enfia-los nos orifícios mais óbvios, ela só disse, com a voz mais doce
que já tinha ouvido “não, obrigado”. A voz era doce, mas o tom era frio. E
parou de olhar pra mim, simplesmente esqueceu de que eu estava ali, e voltou a
fitar a parede oposta. Que diabos tinha acabado de acontecer? Eu tinha de puxar assunto, era compulsório.
“Muito legal sua camiseta”, eu disse, tentando parecer alguém com classe, com
meu sotaque de brasileiro. Ela olhou pra mim de novo, me salva Nietzsche, joga
seu bigode nela! E sorriu. Eu tive uma experiência de quase morte nesse
momento, eu tenho certeza que meu coração parou. “Deus está morto, né? Eu logo
logo também vou estar...”, pensei. E eu ouvi Nietzsche rir de mim. Era o
sorriso mais perfeito que eu já tinha visto. Era a prova que eu precisava pra
continuar puxando assunto. Mas depois de quase ter me matado, ela só disse um
tímido “Obrigada”, e voltou a olhar para aquela parede... De novo. Quê? De
novo? Eu fiquei muito intrigado com ela. Tinha alguma coisa muito esquisita com
ela. Se fosse qualquer outro cara, tudo bem, eu entenderia se ela desse “um pé”
e ignorasse, mas eu? É impossível resistir... Eu sou incrível demais pra você
me dar um pé. Devia só estar fazendo
charme, sim, era isso. Ela me queria, eu podia sentir isso no ar, e eu até
admirei ela por um instante, devia estar fazendo um esforço tremendo pra não me
beijar ali mesmo. “Overkill é meu álbum favorito deles”, continuei como se nós
já estivéssemos conversando há muito tempo. Agora sim, ela teria de me dar uma
resposta decente. E logo ela começou a virar a cabeça, mais uma descarga de
adrenalina, eu devia estar com minhas pupilas do tamanho de bolas de gude, e
provavelmente estava tremendo. Mas ela só me fitou, e dessa vez não parou de
olhar. Eu falei alguma coisa errada? Tinha cheetos nos meus dentes? Era outra
banda na camiseta dela? Não, não – chequei os meus dentes – e não. Não fazia a
mínima idéia de que atitude tomar. Não sabia qual tinha sido o erro. Eu me
senti corar enquanto ela me encarava. Tinha a sensação de estar na frente de um
estádio de futebol lotado de pessoas em silêncio e me encarando.
Por sorte Consuela conseguiu me salvar. Ela
viu, ainda por detrás do monitor, tudo que se passava ali. Então, quando ela
viu que eu já tinha sofrido o suficiente, ela se levantou e veio até mim.
Pronto, fui deportado. Vão me proibir até de pensar nos Estados Unidos. Eu
cheguei tão perto de L.A... Quase lá!
A mexicana parou na minha frente e falou:
_Ela não fala
inglês, menino.
_Sério? –
respondi.
_Sim, ela não
entende você, menino, desculpa, devia ter te contado antes – disse a senhora.
Eu estava a ponto de rir do sotaque dela, mas lembrei que o meu não devia ser
muito melhor.
Logo que Consuela voltou pro seu computador
eu levantei, acenei levemente com a cabeça pra garota japonesa – que continuou
a olhar a parede e não pareceu ver meu gesto. E voltei pro sofá vermelho de
onde eu nunca deveria ter saído. Era o sofá mais distante daquele banco onde
ela estava, mas ainda dava pra ficar olhando pra ela, e ela só perceberia se
olhasse diretamente para mim. Comecei a ler, pra ver se me acalmava, não deu
nada certo, eu lia duas palavras e tornava a encará-la. Fato é que li umas
cinco páginas sem realmente entender coisa alguma. Não que fosse culpa do
Nietzsche, era culpa daquela menina que continuava a ser bonita daquele jeito.
Era quase tão bonita quanto eu.
Eu parei de ler, porque uns dez minutos
depois de ter ido pro outro sofá, e Consuela deu pra menina um celular. Ué, não
sabia dessa, será que isso era parte do procedimento padrão deles? Eu já não
tinha passado por uma entrevista suficientemente constrangedora? Todos os
menores iriam receber ligações? Até aqueles dois garotinhos gêmeos? Não faz
muito sentido, mas esses americanos não são uns bons exemplos de “pessoas que
fazem sentido”, não depois de alguns aviões e prédios caindo... Eu não os
culpo, todo cuidado é pouco, mas mesmo assim, ligar pros menores perguntando se
esses eram terroristas não parecia uma coisa muito útil.
Me perdi nesse raciocínio por um tempo, e
quando voltei a prestar atenção no que ocorria naquela sala, eu vi a menina com
os olhos vermelhos, e pela primeira vez expressando alguma emoção. Mas não que
isso fosse bom sinal, se aquele rosto, sem nenhuma expressão já quase me parava
o coração, o rosto dela a ponto de chorar fazia meu mundo desabar. Aquela
carinha de choro era ao mesmo tempo a coisa mais linda e a coisa mais triste
que eu já tinha presenciado. Ela desligou o telefone e desabou. Ela chorou
igual uma criança. Ela soluçava e estava inconsolável, lembrou-me aquela
garotinha do filme “Monstros S.A.”. Aquela cena me cortou o coração, mas, como
eu não sabia dizer “relaxa ai, pô, isso ai passa” em japonês, eu continuei com
a minha cara de bunda, fazendo de conta, pra variar, que eu não ligava. Deve
ter dado certo, porque logo depois que ela desligou e chorou um pouco, a
mexicana foi lá pegar o telefone, deu também uns tapinhas no ombro da menina.
Que apesar de chorar, não fazia nenhum barulho, muito pelo contrário,
continuava em silêncio e tentava não chamar atenção. Era a pessoa mais linda
que eu já tinha conhecido. Ok, não. Essa pessoa sou eu, tudo bem, agora eu
exagerei. Tudo bem que ela era linda, e se vestia bem, mas “ser mais” que eu é
exagero.
Fiquei naquela sala mais uns dez minutos,
vendo a pobre garota soluçar, e aos poucos ir se acalmando, e imaginando o
motivo de tanto choro. Que será que disseram pra ela? Será que vai pra Tihuana?
Consuela se levantou da mesa e chamou meu nome. Disse que era pra colocar a
minha mochila, pois teríamos de ir para a área de embarque do meu vôo, pois em
cerca de meia hora, meu avião iria decolar, e como menor desacompanhado, eu
tinha de ser o primeiro a embarcar. Peguei minhas coisas e dei uma última
olhada pra menina. Ela me olhou de relance, mas fingiu não ter ficado triste
por ter deixado o homem da vida dela escapar. Consuela me chamou de novo, já da
porta da sala, dizendo alguma coisa do tipo “Pare de babar e ande logo, cara!”.
Ela não tinha reparado que não era eu quem estava babando. Olhei-a uma única
vez mais, e então virei-me para a tal mexicana que me encarava com uma
expressão desgostosa. Ela era baixinha e redondinha, parecia mesmo uma vovó.
Logo que nos afastamos da sala de menores eu
me senti tentado a perguntar quem era a menina, e, é claro, perguntar o motivo
de tanto choro por causa de uma ligação telefônica. E a mexicana, como toda boa
mulher, começou a matraquear com todo fôlego que tinha, e com aquele inglês
esquisito que tinha:
_A menina da
sala é japonesa, veio passar as férias com os tios, que moram em Nova Iorque. Agora
ela tinha que voltar pro Japão, o único problema é que não tem vôo hoje pro
Japão.
_Até ai – eu
disse – um dia a mais longe dos pais não mata, pelo contrário, te deixar um dia
a mais vivo – nós dois rimos.
_O problema –
recomeçou ela- é que não tem vôo amanha, nem amanhã, aliás, acabaram de dizer
pra ela que não vai ter vôo a semana toda, e que não é certeza que tenha vôo na
semana que vem. E já faz um mês que ela está ai.
_Um mês? Ela ta
aí faz um mês? E porque não volta pros tios em Nova Iorque?
_Eles viajaram
para a Europa. Parece que tem uma empresa ou algo do tipo lá.
_Entendo... Mas
como ela come? Onde dorme? – eu devo ter feito umas setenta perguntas pra ela.
E ela, com
calma, começou a responder:
_ Sim, está ai
faz um mês, a companhia aérea paga tudo. Hotel, comida, e algumas outras coisas
que ela precisa, lavanderia, por exemplo. Mas mesmo assim, não deve ser fácil
pra ela. Sozinha num país estrangeiro, sem falar inglês, sem ter com quem
conversar, e todo dia receber a mesma noticia. Ela é forte, eu mesma não
conseguiria-.
É tudo pago? Eu não teria problemas. Sozinho
e sem conversar com ninguém? Isso é quase um sonho. Imagine eu, um mês longe
dos meus pais. Sem aquele monte de gente me torrando o saco. Não sei porque ela
chora tanto, eles até lavam a roupa dela.
Eu teria dito isso pra Consuela, mas isso
acabaria com a imagem de bom moço que eu tinha que ter pra não acabar deportado
pra Cancun. Então eu fingi que estava triste.
_Isso é triste,
ela parece uma menina boazinha.
_E é, não
reclamou uma vez sequer, mas ela já não está mais agüentando – disse ela.
_É verdade, eu
não agüentaria uma semana – eu sei mentir bem, isso é verdade. Mas não sabia
que era bom assim... Cheguei a me convencer de que ficaria triste na situação
da menina japonesa.
Infelizmente esse não era o meu caso. O meu
vôo sairia em vinte e cinco minutos, e eu estava cruzando os corredores daquele
aeroporto, acompanhado da minha fiel escudeira, a mexicana Consuela. Íamos
rápido por entre os saguões e corredores bem iluminados daquele aeroporto.
Passamos por vários terminais de embarque. Conferi minha passagem, precisava
chegar ao terminal quarenta e um, estávamos no trinta e três. Tranqüilo, vai
ser tudo tranqüilo... Continuamos caminhando, ainda num ritmo acelerado. Eu,
como menor desacompanhado, tinha que ser o primeiro a entrar no avião, como se
fosse um retardado, assim eu entro primeiro e eles colocam o babador em mim... Que seja, pelo
menos é só pedir e eu ganho outro cookie. Chegamos ao bendito quarenta e um. E
olha que legal, o vôo iria atrasar.
Tudo por causa do piloto, que não estava
muito afim de voar. Disse que primeiro tinham que consertar a porta de seu
banheiro particular. Palhaço... E ainda assim ele era o palhaço que iria me
tirar do chão por seis horas, então era melhor que consertassem logo aquele
banheiro, já que o piloto queria assim. Não quero morrer por causa de alguma
coisa que o piloto comeu e não caiu bem. Imaginem “Avião cai porque piloto
estava na fila do banheiro para passageiros comuns”, não... Não é bem assim que
eu quero morrer.
Tinha um balcão no saguão quarenta e um,
então eu e Consuela nos dirigimos a ele. Era um balcão de informações, no
momento, mas era inicialmente onde eles pegavam suas passagens, olhavam pra tua
cara, e aí decidiam se você voava ou se tinha muita cara de terrorista pra
isso. O cara do balcão era um homem negro de mais ou menos um e oitenta e cinco
de altura, e ele trajava um uniforme diferente de Consuela, era uma paletó azul
marinho, com a gravata vermelha e a camisa branca, tinha um lenço vermelho que
parecia ter sido cuidadosamente dobrado e colocado no bolso do peito do paletó
pela mãe dele. Logo que chegamos o cara começou a falar com ar superior e
entediado. Ele devia ser o príncipe do saguão quarenta e um.
_O piloto se
recusa a decolar sem que seu banheiro privativo esteja disponível. Nós teremos
um atraso de mais ou menos uma hora. E esse garoto – olhou pra mim pela
primeira vez desde que começou a falar – é o menor, certo?
Não é que eu seja um cara violento nem nada,
mas aquele sujeito me dava nos nervos. Todo metidinho a poderoso, eu devia
enfiar um cabo de vassoura nele.
_Sim, ele é o menor, por quê? – respondeu-lhe
minha fiel mexicana, com um tom que mostrava que não era somente eu que me
incomodava com a presença daquele sujeito. Willis era o nome que mostrava no
crachá.
_Nada demais –
disse Willis com ar desinteressado – é tudo do procedimento padrão.
Puta que o pariu, ele deve achar que eu sou
terrorista, ou então que tenho drogas enfiadas na bunda, era tudo que faltava,
eu tento ir pra Los Angeles e enfiam uma câmera no meu rabo.
_Porque ainda
estão de pé na minha frente? – recomeçou nosso príncipe – sentem ali naquele
banco enquanto eu não chamo vocês para embarcar, ok?
Então ele apontou para um banco, era logo
atrás do balcão, assim ele não tirava o olho de mim. Mas, diferente do balcão
que ficava de frente para o saguão, nosso banco ficava de frente para uma
janela, uma grande janela que ia do chão ao teto daquele saguão, devia ter uns
cinco metros de janela de cima abaixo, e ela substituía a parede. Ou seja, eu
tinha uma visão de metade da pista de pouso, do avião que eu iria usar e de
mais uns três.
_Fiquem aqui, e
só levantem se for extremamente necessário, ok?
_Senhor, sim
senhor! – respondi.
_Está certo –
respondeu Consuela com seu sotaque. Por um momento eu pensei no porque de
pessoas com sotaque tão forte trabalharem exatamente naquilo, sabe, num emprego
onde tudo que se tem que fazer é falar. Mas eu gostava dela, era uma vovó
mexicana bem tranqüila.
Então eu comecei a observar aquele cara do
balcão de informações, ele realmente devia pensar que era superior, não foi
apenas comigo que ele usou aquele tom, ele falava com todo mundo daquele jeito,
como se fosse o próprio Obama. Então ele derrubou uma caneta, e na primeira
tentativa de pega-la chutou pra debaixo do meu banco, eu peguei a caneta, e
enquanto ele vinha andando em minha direção reparei que ele estava com a
braguilha da calça aberta, e que saia uma boa parte de sua cueca por ali. Era
uma cueca verde de patinhos amarelos, e era impossível não reparar naquilo,
pois com suas calças azuis, fazia aquilo quase brilhar, aposto que não fui o
primeiro a reparar, e com certeza não seria eu quem avisaria da calça dele. E
era, pra todo caso, uma bela cena, ele com aquela cara de tacho, de quem grita
que é rico e tem um iphone, e ainda assim com as cuecas de fora. Já não se
fazem esnobes como antigamente.
Depois que ele voltou pro balcão, olhei para
Consuela, ela estava pegando no sono. A idade chega, né? Ela estava com a
cabeça pendendo pra frente, de um jeito muito esquisito, nada natural, acho que
com a idade o corpo deve mudar bastante pra ela se sentir confortável com
aquela posição. E eu vi que se ela continuasse naquela posição iria se babar
toda, mas quem sou eu para acordar aquela pobre senhora, tão prestativa, e que
me acompanhava de tão bom grado? Só o cara que tinha pago pra ela me acompanhar
poderia fazer aquilo, e não acho que ele realmente esteja afim de acordá-la. E
além do mais, eu simpatizava com ela, apesar do jeito doce, ela tinha cara de
vovô que fazia bolo e depois ia treinar boxe e correr uma maratona. Era a vovó
Clint Eastwood. Falava o suficiente, e se eu não comesse meus vegetais
provavelmente ia tomar um tiro. E eu já tinha até memorizado o nome dela.
Deixei a velhinha dormir, e guardei o livro
na mochila, já que estava até essa hora estava socado no bolso do meu casaco. O
livro estava meio amassado, provavelmente aquele bigodudo tinha pago o preço
por não me ajudar, e além do mais, aposto que ele nada tinha a dizer sobre
atraso de aviões e negros que não colocam a cueca dentro da calça.
Então, depois de guardar o livro, lembrei-me
de que tinha uma janela do tamanho de um trem na minha frente, alguma coisa pra
prestar atenção... Pessoas, sempre elas. Dava pra ver todo mundo trabalhando lá
embaixo, nos aviões. Devia ter uns cinqüenta caras trabalhando no avião em que
eu iria voar. E eram todos parecidos, de capacete branco, colete alaranjado com
duas listras verticais verdes fluorescentes, de calça jeans e botas. A maioria
tinha uma barriga protuberante e barba por fazer, eram homens do trabalho,
provavelmente não sabiam fazer outra coisa se não trabalhar e tomar cerveja.
Tinha um grupo encarregado das malas. As
malas vinham em containers brancos com o logotipo da empresa pintado neles.
Eram puxados por um carrinho de aeroporto até próximo do avião, onde tinham
esteiras. Essas esteiras levavam os containers, um por um até uma espécie de
elevador, que nivelava com a entrada de cargas do elevador, e então tinha outra
esteira que levavam eles pro fundo do avião, onde provavelmente alguém ia
procurar alguns relógios e computadores.
Tinha também outra turma, cuidando do
reabastecimento do avião. O faziam usando uma grande mangueira amarela – que
devia ser grande o suficiente pra passar uma pessoa por dentro. Eles colocavam
a mangueira em algum lugar embaixo da asa, ai tinha um cara que apertava alguns
botões, e logo depois ficavam conversando, tinha uns dez caras fazendo isso,
aposto que dava pra fazer usando só três.
Uns outros levando comida pra dentro do
avião, outros checando os pneus, e ainda tinham alguns só pra andar de um lado
pro outro sem fazer nada, usando quadriciclos vermelhos e coletinhos
alaranjados. Era uma grande confusão arrumada, fiquei hipnotizado por uns
quarenta minutos nisso, tentando ver exatamente quem era quem, e tudo que tinha
que fazer. Até dei nomes pra eles. Tinha o Joe, o Jack, Nick, Greg, Chris, Lou,
John, Bob, entre alguns outros. E eu sabia exatamente quem era quem. Enquanto
isso Consuela chegava a roncar do meu lado.
Perguntei para Willis se aquilo tudo ainda
demoraria muito, e eles disse que agora o problema era na cozinha do avião –
ótimo – e que agora teríamos de esperar mais meia hora. Que legal, eu realmente
gostava daquele aeroporto, não estava com pressa de sair dali.
E lá fora todos os caras de colete já tinham
feito tudo que era preciso no avião, e a maioria tinha ido num carrinho
esquisito pro outro lado da janela, e recomeçaram a trabalhar no avião do lado
do meu. Menos Henry e Charles, que estavam sentados numa caixa de madeira, e
fumavam cigarros enquanto conversavam. Provavelmente falavam de futebol,
dinheiro, sobre as esposas... Ou então, eles poderiam ser atores e poetas, só
esperando o sucesso chegar, já vi essa história antes.
Logo a meia hora tinha se passado, e finalmente
o cara das cuecas pra fora veio me chamar, e enquanto acordava a vovó ali do
lado, eu notei que ele finalmente tinha tentado colocar a cueca pra dentro, mas
ainda dava pra ver um pedaço que ficou preso no zíper. E finalmente depois de
uma hora e meia, nós poderíamos embarcar – eu e os passageiros, a vovó fica.
Consuela tava acordada, e deu pro Willis os meus documentos e as passagens,
enquanto íamos até o balcão. Ele passou um leitor de código de barras na
passagem e nos liberou. Consuela mandou que eu a seguisse novamente, e eu fiz
exatamente aquilo que ela mandou.
Fomos andando até um corredor de aspecto
esquisito, ai me dei conta que era, na verdade, não um corredor, mas uma
plataforma. E essa plataforma tinha sido erguida pelo caminhão que Henry tinha
estacionado. Ainda bem que ele era bom motorista. Enquanto isso, as pessoas que
estavam jogadas nas cadeiras do saguão começaram a se levantar, de modo que
pareciam zumbis com passagens aéreas, e eu só escutava o barulhinho do leitor
de código de barras, cada vez que lia uma passagem.
Consuela entregou meus documentos, se
despediu e virou as costas, e eu reparei que ela mancava da perna direita. Logo
apareceu uma aeromoça boazuda – daquelas que aparecem nos filmes pornôs não que
eu saiba exatamente como elas são, é que um amigo meu me contou – e pediu meus
documentos e falou que eu parecia educado e sério demais pra ser um menor
desacompanhado. Eu concordei. Levou-me pro meu lugar, e começou aquele discurso
sobre como usar a máscara de gás – que ela disse ser oxigênio, mas eu aposto
que era gás mostarda, sabe como é né? Melhor te matar antes do avião cair. E ai depois falou aquela frase que faz os
tarados terem ereção “Por favor, apertem seu cinto de segurança durante a
decolagem”, é, agora eu entendo, estou apenas no meu segundo vôo, e já sei
porque ninguém presta atenção naquela besteira toda. E outra, duvido que se
fosse pro avião cair, deixar meu cinto de segurança ajustado iria me salvar,
aliás, se fosse pro avião cair, eu preferia ter ficado olhando o Henry fumar
sentado naquela caixa.
_Senhor, poderia guardar sua mochila no
bagageiro que se encontra logo acima da sua cabeça?- disse a aeromoça.
_Claro! Só me
deixe pegar meu livro – respondi.
_ Tudo bem,
pegue seu livro. Nossa, você é realmente um garoto legal, até lê livros, devia
poder andar desacompanhado sempre – ela devia entender das coisas, e se não
entendia, pelo menos ficava ótima naquele uniforme.
_É verdade, eu
deveria – respondi já com o livro em punho.
Ela mesma pegou a mochila e a guardou. O
bagageiro se fechou com um “click”. Ela se despediu, e disse que estava “a toda
disposição”... Aham... Espero que esteja mesmo.
Abri o livro e procurei por alguma coisa do
tipo “Como lidar com medos de altura”...
Talvez Nietzsche tivesse alguma coisa pra
falar sobre medos irracionais...nao que eu os tenha.