segunda-feira, 29 de abril de 2013

Ela era linda, mas Henry nem viu seu rosto.


        Não me lembro muito bem que horas eram quando cheguei ao aeroporto de Miami, Estava com o relógio biológico fora de sintonia com tudo que estava lá fora, sabia disso porque eu tinha visto pela janela do avião que estava escuro, mas eu me sentia como se mal fossem seis da manhã. Não que isso fosse de grande importância, mas sabia que de certa forma era bom sinal eu estar vendo aquele céu negro. Aquele céu me dizia que eu já não estava tão longe do destino final e de algum tempo relaxando, apenas cerca de seis horas – no máximo seis e meia. Lembro de sentir meu coração palpitando logo que o avião pousou, tamanho o nervosismo. Não era pra menos, eu não estava muito afim de ser mais um brasileiro deportado. “Você não foi aceito em nosso país, portanto terá de pegar o próximo avião com destino à São Paulo, e nunca mais poderá voltar aos Estados Unidos da América!”. Foi tudo que imaginei quando saltei do avião. Bom... Se fosse assim, eu pelo menos tinha estado por quinze minutos em solo americano... melhor que você.
      E mesmo não lembrando qual número o relógio local marcava com certeza eu lembro da moça gordinha que me aguardava. Uma das coisas boas em ser menor e estar viajando sozinho de avião é o tratamento que te dão. As aeromoças te paparicam sem a menor cerimônia, como se você realmente fosse importante - eu poderia me acostumar. Seja um cobertor a mais, ou um cookie, eu na vejo problema... Mas, como sempre, temos os pontos fracos. Ou no caso “o ponto fraco”, pra ser mais exato. É que a paparicarão passa dos limites, você tem de estar sempre acompanhado, é imperativo... sempre! No avião é mais sutil, mas sempre tem alguém, pelo menos, de olho em ti. Você vai ao banheiro, ou coçar as costas, e se olhar de soslaio, vai ver alguém esquisito te observando (só faltam binóculos...). No avião é mais tranqüilo. Você ainda pode ir no banheiro sozinho, ou ir na cozinha pedir mais uma lata de refrigerante. Nada demais. Mas espere chegar ao aeroporto, parece que quando se chega ao aeroporto, é normal pensarem que deve ter drogas na sua mochila, ou que tem algum plano para matar o presidente, escondido no bolso interno do seu casaco. É sério, dá vontade de fugir, de tanto que te tratam como alguém que quer fugir.
   No meu caso essa moça gordinha era Nancy, vestia um uniforme branco e azul marinho, com o emblema do aeroporto bordado no peito, calçava sapatilhas pretas, e tinha as bochechas rosadas, e aparentava ter uma imensa paciência e boa vontade naqueles um metro e sessenta. No caso, ela seria minha acompanhante, mas não desse tipo, ela era encarregada de me guiar e conduzir enquanto eu estivesse no aeroporto. Sim, eu tinha uma babá. E ela não desgrudava de mim. Eu parava pra amarrar os cadarços do meu sapato, e lá estava ela quase me engolindo com os olhos. E quando eu inventei de dar uma rápida parada pra comprar uma lata de coca-cola, quase vai pro espaço minha paciência, ela me tratava como se eu fosse um garoto de cinco anos e com paralisia cerebral – nada contra quem tem cinco anos e tem paralisia cerebral, ok? – era insuportável, apesar dela não ser agressiva, dava a impressão de que a qualquer momento iria pular em mim (meu gato faz a mesma coisa quando vê um passarinho). E lembro-me de ouvi-la falar ficar à ponto de rir. Ela forçava o inglês mais simples que conseguia, com as palavras mais bobinhas que conseguia encontrar, ainda por cima usava um tom de jardim de infância, como se eu realmente fosse retardado – não que eu tenha um inglês impecável, mas eu poderia entender melhor do que aquilo. Mas como era minha primeira viagem, eu fiquei temeroso, talvez não fosse a melhor coisa dizer “pare de me tratar como retardado, eu sei colocar uma nota de dólar numa máquina de refrigerante!”, isso com absoluta certeza não passaria a imagem de um jovem educado e cordial. E eu precisava passar essa imagem pra não ser mandado de volta à Tihuana-todos que vêm de baixo dos EUA são obrigatoriamente deportados pra Tihuana. Então era melhor continuar a ser tratado como retardado pra depois conseguir dar umas voltas em Hollywood, não que isso tirasse a sensação de quase ser um retardado.
    De qualquer forma, ela não desgrudou de mim, por qualquer motivo que fosse, pelo menos andamos um pouco no aeroporto, era imenso, montes de corredores e saguões, terminais, halls, lojas e muitas cadeiras pros que esperavam o vôo. Tinha até um trem... E nós o pegamos. Nancy me disse que era só pra ir pro outro lado do aeroporto, que andar demoraria demais, e me cansaria. Maldita seja a preguiça humana, colocar um trem pra te levar pro outro lado do aeroporto... Em que ponto chegamos?
    O trem não era grande, era quase como uma miniatura dos metrôs de São Paulo. De certa forma, tinha algo familiar neles, talvez o cheiro fosse o mesmo. Andamos três estações. Descemos na “estação três” e andamos mais um pouco pela imensidão do aeroporto. Tinha uma iluminação forte, se não fossem pelas grandes janelas que davam vista pra pista de pouso, eu não saberia se era dia ou noite. E era, diferente do aeroporto de Guarulhos, estava quase vazio, e viam-se uns poucos passageiros perdidos por lá, como se fosse baixa temporada (ainda que faltassem cinco dias pro Natal). Isso aumentava ainda mais a sensação de deserto daquele lugar, eu teria me sentido quase sozinho se não fosse por Nancy babando em mim.
      Assim que descemos do trem, Nancy me levou para um lugar cheio de guichês, disse-me que eu tinha que fazer uma entrevista antes de “entrar em solo americano”. Sim, eu poderia ser deportado se não respondesse exatamente aquilo que eles queriam que eu respondesse. Eu fui direto pra um guichê do tipo “preferencial”. E lá tinha um cara, com farda de policial (ou guardinha de aeroporto, quem sabe). E ele falou de modo rude:
_O que você veio fazer nos Estados Unidos da América? - falou o guardinha.
_Passar as minhas férias.
_Quanto tempo você vai ficar?
_Até meio de fevereiro.
_Você estuda? Se sim, quando voltam suas aulas?
_Sim, eu estudo, e elas voltam no meio de fevereiro – voltavam antes, mas vai que... Né?
_Hmmm, Onde você vai ficar? – eu não entendi nada do que ele tinha dito nessa frase, então olhei pra Nancy, que compreendeu que eu não tinha entendido, e então repetiu a frase com um pouco mais de calma.
_Vou ficar em Los Angeles, com um amigo.
_ Ok, pode passar – e então ele carimbou alguns documentos e os entregou para Nancy.
     Eu estava faminto, então perguntei se não tinha algum lugar decente por ali. Sabe como é, comida de avião não enche de verdade, e eu precisava de alguma coisa pra me segurar de pé. Então, como se finalmente eu tivesse falado alguma coisa que fosse útil, ela sorriu, e apontou com a mão uma lanchonete logo à nossa frente. Era uma lanchonete bonita. Tinha aspecto daquelas que aparecem em filmes dos anos sessenta, ou setenta, aonde os jovens bacanas iam. Aqueles lugares onde tinham vários carrões estacionados na parte de fora, enquanto os caras com grandes topetes e garotas com vestidos de bolinha sentavam nas mesas, comendo seus hambúrgueres e tomando seus milkshakes enquanto conversavam. Era realmente pra ser uma lanchonete assim, não tinham carrões estacionados, era dentro do aeroporto, e não tinham os jovens bacanas com jaquetas de couro dentro, aliás, tinha só um cara perdido lá, numa mesa com uma só cadeira, e ele não demonstrava muito interesse nas coisas ao redor. Mas era bem decorada a lanchonete. E enquanto eu pedia, reparei nas paredes pintadas de branco, com quadros que eram fotos de carros antigos, nas mesas amarelas e nas cadeiras vermelhas. Eu pedi um clássico, um hambúrguer, um copo de coca-cola e uma porção de batatas fritas. Deram-me o copo, e apontaram a máquina onde eu deveria pegar meu refrigerante. O pedido não demorou, aliás, foi rápido demais, eu mal tive tempo de escolher uma mesa, e eles já estavam me chamando pra buscar a comida. Nancy deve ter achado que eu não era capaz de ir lá, e foi ela mesma, pegar a bandeja. Ela me entregou, e disse-me que faltava ainda cerca de uma hora e meia pro meu vôo partir, e que por esse motivo não era necessário que eu me apressasse. E não estava nos meus planos me apressar. Comi com uma calma de rei, e fiquei olhando pro corredor do aeroporto logo à minha frente. Engraçado. Vazio demais. No Brasil, qualquer lugar que você fosse iria parecer um formigueiro, e ali estava calmo demais... Nancy não comeu nada, e nem deveria comer mesmo, tinha aparência de quem comia ali todo dia. Mas ficou me olhando comer com muita atenção. Ainda bem que eu não me sujei com catchup, eu tenho certeza de que tinha um guardanapo na mão dela pra me limpar caso isso acontecesse. Eu terminei de comer meu hambúrguer e as batatas, e então, antes de sair, enchi meu copo mais uma vez, e então perguntei pra Nancy se teríamos de ir a algum lugar mais, ou se ficaríamos ali mesmo até a hora do meu vôo.
   Ela falou com aquele tom dela, que iríamos voltar a andar. Eu simplesmente comecei a segui-la. Voltamos aos corredores, e ela tentava imprimir um ritmo um pouco maior, claramente com traços de ansiedade, tão esquisitinha. “Estamos indo à sala de menores”, ela disse. E é claro que a imaginação foi a mil. Eu logo imaginei uma sala quadrada, com as paredes pintadas de cinza, e com a tinta descascando, um lugar totalmente deprimente, com cara de repartição pública, e lá teriam várias crianças e adolescentes, sentados em cadeiras de madeira, olhando fixamente pro chão, e completamente em silêncio, enquanto numa mesa sólida de mogno uma mulher velha estaria digitando num computador velho, e essa mesa teria também vários papéis, como se fossem processos. Eu fiquei completamente em pânico, eu preferia ficar na lanchonete vendo o cara esquisito comer aquele hambúrguer pela eternidade. Um lugar desses me dava arrepios. Eu não estava preparado pra tudo aquilo, sou claustrofóbico, e não curto detenção, e não é minha praia ficar uma hora esperando meu vôo num lugar daqueles. Não adiantou eu me afligir, pois pelo visto já estava bem próximo da tal sala. Eu vi uma placa que apontava pra direita, e dizia “Sala dos menores”. Que seja, eu não vou exatamente morrer lá dentro - espero.
    Mas, aquele dia se mostrava incomum, e manteu-se assim, e me surpreendeu mais uma vez. Tive uma surpresa quando entrei na sala, era quase o contrário daquilo que eu tinha imaginado. Era grande, muito bem iluminada, com paredes pintadas de verde, branco, e com desenhos de vários personagens de desenho animado, tinha sofás e poltronas vermelhas, duas estantes de livros, perto dessas estantes tinha uma grande mesa redonda com lápis de cor, giz de cera, e papel pra desenhar. Era igual uma sala de jardim de infância, a não ser pelas televisões de tela plana e os dois vídeo-games que lá estavam. Mas é claro, eu tinha acertado – em parte – num aspecto daquela sala. Tinha uma mulher, numa mesa grande atulhada de papeis, com um computador (novo) digitando freneticamente sem olhar pro teclado. Era uma mexicana, cerca de cinqüenta anos. Ela não tinha um olhar severo que nem gente velha geralmente tem, pelo contrário, parecia-se com uma vovó que diz que você está magrinho.
   Quando eu entrei na sala ela se levantou, e falou seu nome. Consuela. Ela vestia o mesmo uniforme de Nancy. Era realmente muito simpática, e não tentava falar um inglês mais simples do que era normal pra ela, e o sotaque dela fazia tudo soar de forma engraçada e honesta. Ela disse alguma coisa do tipo “agora quem te acompanha sou eu, rapaz, pode relaxar por ai, quando for a hora eu te chamo”. Despedi-me de Nancy, e como o garoto cordial que eu sou, agradeci a paciência que ela tinha tido comigo. Nancy riu, e disse que nunca tinha cuidado de alguém que não tivesse dado trabalho, eu tive que rir disso, vai que me mandam pra terra de Consuela, não queria ir pra Tihuana, muito quente e muito mexicano pra mim. Ela se virou e saiu, provavelmente babar no pescoço de algum outro coitado.
   Consuela já estava de volta a sua mesa, digitando no computador. Aquele tec-tec frenético era mais comum entre os jovens, mas ela digitava com grande maestria, devia fazer aquilo à tempos. Eu então pude voltar a ser quem eu realmente sou. Me dirigi apático a um sofá vermelho. Sentei-me e abri minha mochila, de lá eu saquei meu livro e notas de um dólar. “O crepúsculo dos ídolos” era o livro, quando fiz isso, Consuela me olhou esquisito. Eu era o único ali com um livro em mãos. Levantei e fui pegar um refrigerante num daquelas máquinas de um dólar. Coloquei a nota de um dólar e apertei o botão... Ouvi o som da lata caindo. Me virei e vi uma máquina de salgadinhos. Coloquei mais um dólar e peguei um Cheetos. Não que eu estivesse com fome, mas aquela sala de jardim de infância me dava tédio. E só então eu me dispus a prestar atenção em todos os que estavam naquela sala. Tinham dois garotinhos loiros, irmãos gêmeos, de uns sete anos, que estavam jogando vídeo-game. Tinha também uma menina mexicana de uns onze anos, sentada na mesa redonda, e olhando fixamente para uma foto, ela tinha uma expressão perigosa, do tipo que enfia um canivete na sua barriga se você tentar falar com ela... Não valia o esforço. Mas não foram eles que chamaram a atenção. Pois, logo que estava voltando pro meu lugar, com meu salgadinho e minha lata de refrigerante, notei uma das coisas mais lindas e intrigantes que eu já tinha visto na minha vida. Aquele espelho devia ter uns dois metros, e estava incrivelmente limpo, era quase como se eu estivesse andando em direção à mim mesmo, e como eu sou bonito... Devo ter ficado um minuto todo olhando o espelho (ou uma hora, quem liga pra tempo quando se vê alguém tão incrível quando eu mesmo?).
   Eu sentei no sofá, e comecei a comer o salgadinho. Era salgado demais, e sujou muito minhas mãos. Mas logo acabei o pacote e tomei meu refrigerante. Eu queria ler, mas minhas mãos não deixariam que eu lesse sem sujar todo o meu livro. Pedi à Consuela que me mostrasse onde era o banheiro, eu ia aproveitar a ocasião e tirar a água do joelho. Ela me pediu pra esperar na porta da sala “por um instante”. E então aconteceu algo que eu devia ter previsto. Um guarda chegou e falou que iria me acompanhar até o banheiro. Era tão difícil assim chegar ao banheiro? Ou eles achavam que eu realmente queria fugir? Tanto faz, eu já estava seguindo o guarda até o banheiro, ele me esperou na porta, enquanto eu usava. Pelo menos ele não entrou comigo... Lavei a mão, mijei, e lavei as mãos de novo – sou limpinho. Quando sai, o guarda esticou o pescoço pra dentro do banheiro (devia estar procurando alguma bomba ou drogas/ armas que eu devia ter largado lá). E me escoltou até a sala dos menores de novo.
   Quando eu cheguei na sala, tive uma surpresa que faz meu tédio sumir tão rápido quanto possível. Tinha uma pessoa a mais, sentada num banco de madeira junto à parede. Uma garota de uns quinze anos. Linda. Era japonesa, com certeza, parecia uma boneca, ou alguma coisa ainda mais bonita e perfeita. Tinha a pele muito branca, os cabelos negros e brilhantes que chegavam até o meio de suas costas, e os olhos... Aqueles olhos eram incríveis. Eram negros e profundos. E tinha um brilho perigoso no fundo daqueles olhos tão lindos. Como se tivesse alguma fera aprisionada ali. E com certeza entendia de moda. Pois apesar de estar viajando ela ainda estava impecável. Vestia uma camiseta do Motorhead, uma jaqueta de couro, uma calça jeans escura, justa e rasgada, e botas, que lembravam algo do tipo “botas de pirata”, pois tinham fivelas grandes e prateadas. Enquanto eu... Minha camiseta do Ac/Dc já estava toda amassada, meus tênis estavam velhos e desamarrados, eu tinha derrubado óleo de hambúrguer na minha calça, e também no meu casaco – sim, um charme, como sempre.
    Mas notei também, que apesar de estar impecável, e ser absurdamente linda, ela não se mostrava exatamente empolgada. Parecia, na verdade, que ela não se sentia muito bem, espero que não seja diarréia, ou alguma coisa que não seja sexy... Isso quebra o clima.
   E eu, como a doce pessoa que sou, tive de ir ajudá-la, sem segundas intenções, é claro. Eu bem sei que em alguns momentos as pessoas precisam de um abraço, um carinho, ou qualquer coisa do tipo... E porque não eu? Fui o mais rápido que pude para a maquina de refrigerante e peguei mais uma lata. Voltei e sentei-me ao lado dela. Abri o refrigerante, e pra puxar assunto, eu ofereci pra ela um gole de coca-cola (e é nessa hora que se espera que aconteça igual na propaganda da televisão, eu dou a coca pra ela, ela sorri, e depois de quinze segundos nós estamos nos beijando, sem segundas intenções, é óbvio). Ela me olhou fixamente, de maneira fria e ao mesmo tempo intensa, e por um instante eu me senti transparente, senti um enorme calafrio apenas com o olhar dela, e naquele mesmo instante eu pensei em abandonar toda e qualquer posição cavalheiresca que eu tivesse dentro de mim, e ir correndo pro sofá chorar igual uma garotinha sem sua barbie. Mas por algum motivo, qualquer estúpido motivo que fosse, eu não fui pro sofá. Eu fiquei lá, e abracei Nietzsche o mais forte que podia, e desejei que ele tivesse deixado o pobre e fraco Deus vivo, assim talvez ele pudesse me ajudar. De qualquer jeito, naquele momento era eu, Nietzsche e aquela linda garota que com certeza era uma super ninja que trabalhava pra máfia. Mas em vez de pular em mim, arrancar meus braços e enfia-los nos orifícios mais óbvios, ela só disse, com a voz mais doce que já tinha ouvido “não, obrigado”. A voz era doce, mas o tom era frio. E parou de olhar pra mim, simplesmente esqueceu de que eu estava ali, e voltou a fitar a parede oposta. Que diabos tinha acabado de acontecer?  Eu tinha de puxar assunto, era compulsório. “Muito legal sua camiseta”, eu disse, tentando parecer alguém com classe, com meu sotaque de brasileiro. Ela olhou pra mim de novo, me salva Nietzsche, joga seu bigode nela! E sorriu. Eu tive uma experiência de quase morte nesse momento, eu tenho certeza que meu coração parou. “Deus está morto, né? Eu logo logo também vou estar...”, pensei. E eu ouvi Nietzsche rir de mim. Era o sorriso mais perfeito que eu já tinha visto. Era a prova que eu precisava pra continuar puxando assunto. Mas depois de quase ter me matado, ela só disse um tímido “Obrigada”, e voltou a olhar para aquela parede... De novo. Quê? De novo? Eu fiquei muito intrigado com ela. Tinha alguma coisa muito esquisita com ela. Se fosse qualquer outro cara, tudo bem, eu entenderia se ela desse “um pé” e ignorasse, mas eu? É impossível resistir... Eu sou incrível demais pra você me dar um pé.  Devia só estar fazendo charme, sim, era isso. Ela me queria, eu podia sentir isso no ar, e eu até admirei ela por um instante, devia estar fazendo um esforço tremendo pra não me beijar ali mesmo. “Overkill é meu álbum favorito deles”, continuei como se nós já estivéssemos conversando há muito tempo. Agora sim, ela teria de me dar uma resposta decente. E logo ela começou a virar a cabeça, mais uma descarga de adrenalina, eu devia estar com minhas pupilas do tamanho de bolas de gude, e provavelmente estava tremendo. Mas ela só me fitou, e dessa vez não parou de olhar. Eu falei alguma coisa errada? Tinha cheetos nos meus dentes? Era outra banda na camiseta dela? Não, não – chequei os meus dentes – e não. Não fazia a mínima idéia de que atitude tomar. Não sabia qual tinha sido o erro. Eu me senti corar enquanto ela me encarava. Tinha a sensação de estar na frente de um estádio de futebol lotado de pessoas em silêncio e me encarando.
   Por sorte Consuela conseguiu me salvar. Ela viu, ainda por detrás do monitor, tudo que se passava ali. Então, quando ela viu que eu já tinha sofrido o suficiente, ela se levantou e veio até mim. Pronto, fui deportado. Vão me proibir até de pensar nos Estados Unidos. Eu cheguei tão perto de L.A... Quase lá!
   A mexicana parou na minha frente e falou:
_Ela não fala inglês, menino.
_Sério? – respondi.
_Sim, ela não entende você, menino, desculpa, devia ter te contado antes – disse a senhora. Eu estava a ponto de rir do sotaque dela, mas lembrei que o meu não devia ser muito melhor.
  Logo que Consuela voltou pro seu computador eu levantei, acenei levemente com a cabeça pra garota japonesa – que continuou a olhar a parede e não pareceu ver meu gesto. E voltei pro sofá vermelho de onde eu nunca deveria ter saído. Era o sofá mais distante daquele banco onde ela estava, mas ainda dava pra ficar olhando pra ela, e ela só perceberia se olhasse diretamente para mim. Comecei a ler, pra ver se me acalmava, não deu nada certo, eu lia duas palavras e tornava a encará-la. Fato é que li umas cinco páginas sem realmente entender coisa alguma. Não que fosse culpa do Nietzsche, era culpa daquela menina que continuava a ser bonita daquele jeito. Era quase tão bonita quanto eu.
   Eu parei de ler, porque uns dez minutos depois de ter ido pro outro sofá, e Consuela deu pra menina um celular. Ué, não sabia dessa, será que isso era parte do procedimento padrão deles? Eu já não tinha passado por uma entrevista suficientemente constrangedora? Todos os menores iriam receber ligações? Até aqueles dois garotinhos gêmeos? Não faz muito sentido, mas esses americanos não são uns bons exemplos de “pessoas que fazem sentido”, não depois de alguns aviões e prédios caindo... Eu não os culpo, todo cuidado é pouco, mas mesmo assim, ligar pros menores perguntando se esses eram terroristas não parecia uma coisa muito útil.
   Me perdi nesse raciocínio por um tempo, e quando voltei a prestar atenção no que ocorria naquela sala, eu vi a menina com os olhos vermelhos, e pela primeira vez expressando alguma emoção. Mas não que isso fosse bom sinal, se aquele rosto, sem nenhuma expressão já quase me parava o coração, o rosto dela a ponto de chorar fazia meu mundo desabar. Aquela carinha de choro era ao mesmo tempo a coisa mais linda e a coisa mais triste que eu já tinha presenciado. Ela desligou o telefone e desabou. Ela chorou igual uma criança. Ela soluçava e estava inconsolável, lembrou-me aquela garotinha do filme “Monstros S.A.”. Aquela cena me cortou o coração, mas, como eu não sabia dizer “relaxa ai, pô, isso ai passa” em japonês, eu continuei com a minha cara de bunda, fazendo de conta, pra variar, que eu não ligava. Deve ter dado certo, porque logo depois que ela desligou e chorou um pouco, a mexicana foi lá pegar o telefone, deu também uns tapinhas no ombro da menina. Que apesar de chorar, não fazia nenhum barulho, muito pelo contrário, continuava em silêncio e tentava não chamar atenção. Era a pessoa mais linda que eu já tinha conhecido. Ok, não. Essa pessoa sou eu, tudo bem, agora eu exagerei. Tudo bem que ela era linda, e se vestia bem, mas “ser mais” que eu é exagero.
  Fiquei naquela sala mais uns dez minutos, vendo a pobre garota soluçar, e aos poucos ir se acalmando, e imaginando o motivo de tanto choro. Que será que disseram pra ela? Será que vai pra Tihuana? Consuela se levantou da mesa e chamou meu nome. Disse que era pra colocar a minha mochila, pois teríamos de ir para a área de embarque do meu vôo, pois em cerca de meia hora, meu avião iria decolar, e como menor desacompanhado, eu tinha de ser o primeiro a embarcar. Peguei minhas coisas e dei uma última olhada pra menina. Ela me olhou de relance, mas fingiu não ter ficado triste por ter deixado o homem da vida dela escapar. Consuela me chamou de novo, já da porta da sala, dizendo alguma coisa do tipo “Pare de babar e ande logo, cara!”. Ela não tinha reparado que não era eu quem estava babando. Olhei-a uma única vez mais, e então virei-me para a tal mexicana que me encarava com uma expressão desgostosa. Ela era baixinha e redondinha, parecia mesmo uma vovó.
   Logo que nos afastamos da sala de menores eu me senti tentado a perguntar quem era a menina, e, é claro, perguntar o motivo de tanto choro por causa de uma ligação telefônica. E a mexicana, como toda boa mulher, começou a matraquear com todo fôlego que tinha, e com aquele inglês esquisito que tinha:
_A menina da sala é japonesa, veio passar as férias com os tios, que moram em Nova Iorque. Agora ela tinha que voltar pro Japão, o único problema é que não tem vôo hoje pro Japão.
_Até ai – eu disse – um dia a mais longe dos pais não mata, pelo contrário, te deixar um dia a mais vivo – nós dois rimos.
_O problema – recomeçou ela- é que não tem vôo amanha, nem amanhã, aliás, acabaram de dizer pra ela que não vai ter vôo a semana toda, e que não é certeza que tenha vôo na semana que vem. E já faz um mês que ela está ai.
_Um mês? Ela ta aí faz um mês? E porque não volta pros tios em Nova Iorque?
_Eles viajaram para a Europa. Parece que tem uma empresa ou algo do tipo lá.
_Entendo... Mas como ela come? Onde dorme? – eu devo ter feito umas setenta perguntas pra ela.
E ela, com calma, começou a responder:
_ Sim, está ai faz um mês, a companhia aérea paga tudo. Hotel, comida, e algumas outras coisas que ela precisa, lavanderia, por exemplo. Mas mesmo assim, não deve ser fácil pra ela. Sozinha num país estrangeiro, sem falar inglês, sem ter com quem conversar, e todo dia receber a mesma noticia. Ela é forte, eu mesma não conseguiria-.
   É tudo pago? Eu não teria problemas. Sozinho e sem conversar com ninguém? Isso é quase um sonho. Imagine eu, um mês longe dos meus pais. Sem aquele monte de gente me torrando o saco. Não sei porque ela chora tanto, eles até lavam a roupa dela.
  Eu teria dito isso pra Consuela, mas isso acabaria com a imagem de bom moço que eu tinha que ter pra não acabar deportado pra Cancun. Então eu fingi que estava triste.
_Isso é triste, ela parece uma menina boazinha.
_E é, não reclamou uma vez sequer, mas ela já não está mais agüentando – disse ela.
_É verdade, eu não agüentaria uma semana – eu sei mentir bem, isso é verdade. Mas não sabia que era bom assim... Cheguei a me convencer de que ficaria triste na situação da menina japonesa.
   Infelizmente esse não era o meu caso. O meu vôo sairia em vinte e cinco minutos, e eu estava cruzando os corredores daquele aeroporto, acompanhado da minha fiel escudeira, a mexicana Consuela. Íamos rápido por entre os saguões e corredores bem iluminados daquele aeroporto. Passamos por vários terminais de embarque. Conferi minha passagem, precisava chegar ao terminal quarenta e um, estávamos no trinta e três. Tranqüilo, vai ser tudo tranqüilo... Continuamos caminhando, ainda num ritmo acelerado. Eu, como menor desacompanhado, tinha que ser o primeiro a entrar no avião, como se fosse um retardado, assim eu entro primeiro e eles colocam o babador em mim... Que seja, pelo menos é só pedir e eu ganho outro cookie. Chegamos ao bendito quarenta e um. E olha que legal, o vôo iria atrasar.
   Tudo por causa do piloto, que não estava muito afim de voar. Disse que primeiro tinham que consertar a porta de seu banheiro particular. Palhaço... E ainda assim ele era o palhaço que iria me tirar do chão por seis horas, então era melhor que consertassem logo aquele banheiro, já que o piloto queria assim. Não quero morrer por causa de alguma coisa que o piloto comeu e não caiu bem. Imaginem “Avião cai porque piloto estava na fila do banheiro para passageiros comuns”, não... Não é bem assim que eu quero morrer.
   Tinha um balcão no saguão quarenta e um, então eu e Consuela nos dirigimos a ele. Era um balcão de informações, no momento, mas era inicialmente onde eles pegavam suas passagens, olhavam pra tua cara, e aí decidiam se você voava ou se tinha muita cara de terrorista pra isso. O cara do balcão era um homem negro de mais ou menos um e oitenta e cinco de altura, e ele trajava um uniforme diferente de Consuela, era uma paletó azul marinho, com a gravata vermelha e a camisa branca, tinha um lenço vermelho que parecia ter sido cuidadosamente dobrado e colocado no bolso do peito do paletó pela mãe dele. Logo que chegamos o cara começou a falar com ar superior e entediado. Ele devia ser o príncipe do saguão quarenta e um.
_O piloto se recusa a decolar sem que seu banheiro privativo esteja disponível. Nós teremos um atraso de mais ou menos uma hora. E esse garoto – olhou pra mim pela primeira vez desde que começou a falar – é o menor, certo?
   Não é que eu seja um cara violento nem nada, mas aquele sujeito me dava nos nervos. Todo metidinho a poderoso, eu devia enfiar um cabo de vassoura nele.
 _Sim, ele é o menor, por quê? – respondeu-lhe minha fiel mexicana, com um tom que mostrava que não era somente eu que me incomodava com a presença daquele sujeito. Willis era o nome que mostrava no crachá.
_Nada demais – disse Willis com ar desinteressado – é tudo do procedimento padrão.
   Puta que o pariu, ele deve achar que eu sou terrorista, ou então que tenho drogas enfiadas na bunda, era tudo que faltava, eu tento ir pra Los Angeles e enfiam uma câmera no meu rabo.
_Porque ainda estão de pé na minha frente? – recomeçou nosso príncipe – sentem ali naquele banco enquanto eu não chamo vocês para embarcar, ok?
   Então ele apontou para um banco, era logo atrás do balcão, assim ele não tirava o olho de mim. Mas, diferente do balcão que ficava de frente para o saguão, nosso banco ficava de frente para uma janela, uma grande janela que ia do chão ao teto daquele saguão, devia ter uns cinco metros de janela de cima abaixo, e ela substituía a parede. Ou seja, eu tinha uma visão de metade da pista de pouso, do avião que eu iria usar e de mais uns três.
_Fiquem aqui, e só levantem se for extremamente necessário, ok?
_Senhor, sim senhor! – respondi.
_Está certo – respondeu Consuela com seu sotaque. Por um momento eu pensei no porque de pessoas com sotaque tão forte trabalharem exatamente naquilo, sabe, num emprego onde tudo que se tem que fazer é falar. Mas eu gostava dela, era uma vovó mexicana bem tranqüila.
  Então eu comecei a observar aquele cara do balcão de informações, ele realmente devia pensar que era superior, não foi apenas comigo que ele usou aquele tom, ele falava com todo mundo daquele jeito, como se fosse o próprio Obama. Então ele derrubou uma caneta, e na primeira tentativa de pega-la chutou pra debaixo do meu banco, eu peguei a caneta, e enquanto ele vinha andando em minha direção reparei que ele estava com a braguilha da calça aberta, e que saia uma boa parte de sua cueca por ali. Era uma cueca verde de patinhos amarelos, e era impossível não reparar naquilo, pois com suas calças azuis, fazia aquilo quase brilhar, aposto que não fui o primeiro a reparar, e com certeza não seria eu quem avisaria da calça dele. E era, pra todo caso, uma bela cena, ele com aquela cara de tacho, de quem grita que é rico e tem um iphone, e ainda assim com as cuecas de fora. Já não se fazem esnobes como antigamente.
   Depois que ele voltou pro balcão, olhei para Consuela, ela estava pegando no sono. A idade chega, né? Ela estava com a cabeça pendendo pra frente, de um jeito muito esquisito, nada natural, acho que com a idade o corpo deve mudar bastante pra ela se sentir confortável com aquela posição. E eu vi que se ela continuasse naquela posição iria se babar toda, mas quem sou eu para acordar aquela pobre senhora, tão prestativa, e que me acompanhava de tão bom grado? Só o cara que tinha pago pra ela me acompanhar poderia fazer aquilo, e não acho que ele realmente esteja afim de acordá-la. E além do mais, eu simpatizava com ela, apesar do jeito doce, ela tinha cara de vovô que fazia bolo e depois ia treinar boxe e correr uma maratona. Era a vovó Clint Eastwood. Falava o suficiente, e se eu não comesse meus vegetais provavelmente ia tomar um tiro. E eu já tinha até memorizado o nome dela.
   Deixei a velhinha dormir, e guardei o livro na mochila, já que estava até essa hora estava socado no bolso do meu casaco. O livro estava meio amassado, provavelmente aquele bigodudo tinha pago o preço por não me ajudar, e além do mais, aposto que ele nada tinha a dizer sobre atraso de aviões e negros que não colocam a cueca dentro da calça.
  Então, depois de guardar o livro, lembrei-me de que tinha uma janela do tamanho de um trem na minha frente, alguma coisa pra prestar atenção... Pessoas, sempre elas. Dava pra ver todo mundo trabalhando lá embaixo, nos aviões. Devia ter uns cinqüenta caras trabalhando no avião em que eu iria voar. E eram todos parecidos, de capacete branco, colete alaranjado com duas listras verticais verdes fluorescentes, de calça jeans e botas. A maioria tinha uma barriga protuberante e barba por fazer, eram homens do trabalho, provavelmente não sabiam fazer outra coisa se não trabalhar e tomar cerveja.
   Tinha um grupo encarregado das malas. As malas vinham em containers brancos com o logotipo da empresa pintado neles. Eram puxados por um carrinho de aeroporto até próximo do avião, onde tinham esteiras. Essas esteiras levavam os containers, um por um até uma espécie de elevador, que nivelava com a entrada de cargas do elevador, e então tinha outra esteira que levavam eles pro fundo do avião, onde provavelmente alguém ia procurar alguns relógios e computadores.
   Tinha também outra turma, cuidando do reabastecimento do avião. O faziam usando uma grande mangueira amarela – que devia ser grande o suficiente pra passar uma pessoa por dentro. Eles colocavam a mangueira em algum lugar embaixo da asa, ai tinha um cara que apertava alguns botões, e logo depois ficavam conversando, tinha uns dez caras fazendo isso, aposto que dava pra fazer usando só três.
   Uns outros levando comida pra dentro do avião, outros checando os pneus, e ainda tinham alguns só pra andar de um lado pro outro sem fazer nada, usando quadriciclos vermelhos e coletinhos alaranjados. Era uma grande confusão arrumada, fiquei hipnotizado por uns quarenta minutos nisso, tentando ver exatamente quem era quem, e tudo que tinha que fazer. Até dei nomes pra eles. Tinha o Joe, o Jack, Nick, Greg, Chris, Lou, John, Bob, entre alguns outros. E eu sabia exatamente quem era quem. Enquanto isso Consuela chegava a roncar do meu lado.
   Perguntei para Willis se aquilo tudo ainda demoraria muito, e eles disse que agora o problema era na cozinha do avião – ótimo – e que agora teríamos de esperar mais meia hora. Que legal, eu realmente gostava daquele aeroporto, não estava com pressa de sair dali.
   E lá fora todos os caras de colete já tinham feito tudo que era preciso no avião, e a maioria tinha ido num carrinho esquisito pro outro lado da janela, e recomeçaram a trabalhar no avião do lado do meu. Menos Henry e Charles, que estavam sentados numa caixa de madeira, e fumavam cigarros enquanto conversavam. Provavelmente falavam de futebol, dinheiro, sobre as esposas... Ou então, eles poderiam ser atores e poetas, só esperando o sucesso chegar, já vi essa história antes.
   Logo a meia hora tinha se passado, e finalmente o cara das cuecas pra fora veio me chamar, e enquanto acordava a vovó ali do lado, eu notei que ele finalmente tinha tentado colocar a cueca pra dentro, mas ainda dava pra ver um pedaço que ficou preso no zíper. E finalmente depois de uma hora e meia, nós poderíamos embarcar – eu e os passageiros, a vovó fica. Consuela tava acordada, e deu pro Willis os meus documentos e as passagens, enquanto íamos até o balcão. Ele passou um leitor de código de barras na passagem e nos liberou. Consuela mandou que eu a seguisse novamente, e eu fiz exatamente aquilo que ela mandou.
   Fomos andando até um corredor de aspecto esquisito, ai me dei conta que era, na verdade, não um corredor, mas uma plataforma. E essa plataforma tinha sido erguida pelo caminhão que Henry tinha estacionado. Ainda bem que ele era bom motorista. Enquanto isso, as pessoas que estavam jogadas nas cadeiras do saguão começaram a se levantar, de modo que pareciam zumbis com passagens aéreas, e eu só escutava o barulhinho do leitor de código de barras, cada vez que lia uma passagem.
   Consuela entregou meus documentos, se despediu e virou as costas, e eu reparei que ela mancava da perna direita. Logo apareceu uma aeromoça boazuda – daquelas que aparecem nos filmes pornôs não que eu saiba exatamente como elas são, é que um amigo meu me contou – e pediu meus documentos e falou que eu parecia educado e sério demais pra ser um menor desacompanhado. Eu concordei. Levou-me pro meu lugar, e começou aquele discurso sobre como usar a máscara de gás – que ela disse ser oxigênio, mas eu aposto que era gás mostarda, sabe como é né? Melhor te matar antes do avião cair.  E ai depois falou aquela frase que faz os tarados terem ereção “Por favor, apertem seu cinto de segurança durante a decolagem”, é, agora eu entendo, estou apenas no meu segundo vôo, e já sei porque ninguém presta atenção naquela besteira toda. E outra, duvido que se fosse pro avião cair, deixar meu cinto de segurança ajustado iria me salvar, aliás, se fosse pro avião cair, eu preferia ter ficado olhando o Henry fumar sentado naquela caixa.
   _Senhor, poderia guardar sua mochila no bagageiro que se encontra logo acima da sua cabeça?- disse a aeromoça.
_Claro! Só me deixe pegar meu livro – respondi.
_ Tudo bem, pegue seu livro. Nossa, você é realmente um garoto legal, até lê livros, devia poder andar desacompanhado sempre – ela devia entender das coisas, e se não entendia, pelo menos ficava ótima naquele uniforme.
_É verdade, eu deveria – respondi já com o livro em punho.
   Ela mesma pegou a mochila e a guardou. O bagageiro se fechou com um “click”. Ela se despediu, e disse que estava “a toda disposição”... Aham... Espero que esteja mesmo.
   Abri o livro e procurei por alguma coisa do tipo “Como lidar com medos de altura”...
     Talvez Nietzsche tivesse alguma coisa pra falar sobre medos irracionais...nao que eu os tenha.


Nenhum comentário:

Postar um comentário